Ir à padaria antes do café da tarde sempre foi motivo de discórdia e debates intermináveis em casa. As irmãs se recusavam a ir, como se carregar uma sacola com pães quentes fosse um símbolo de decadência moral. Eu não tinha problema algum de ir até à esquina, mas reivindicava um revezamento nas tardes com futebol na TV.
Lá pelos idos de 2003, comecei a ter contato com futebol internacional. Mal havia dinheiro em casa para cada um de nós comer mais do que dois pães – aqui na Baixada Santista, chamamos média. TV por assinatura era um sonho distante, como hoje é o de crescer cabelos.
Começava a entender que a tal Liga dos Campeões era como a Libertadores dos europeus e esperava o pai chegar em casa para lhe atualizar dos resultados. Não haviam players, streamings e tudo mais que nos informa o tempo todo do que acontece do outro lado do mundo e comemorava a falta de algum professor para dar tempo de ver a partida.
Ainda estava de férias quando me deparei com o primeiro mata-mata europeu na TV de 29 polegadas da sala – na época, era das maiores. Não sei se pelo pagamento dos direitos de transmissão, mas eram constantes os merchandisings indicando um número qualquer de interatividade, no qual poderíamos enviar perguntas para o comentarista. Aquilo era muito novo para minha geração, que nem imaginava o que estava por vir na década seguinte.
Ter a graça de ser respondido nas suspeitas perguntas do internauta da Plim Plim não era coisa para mim, um suburbano que só conhecia o acesso a computadores na internet discada dos padrinhos ou na aula de informática da sala cheirando a mofo do colégio público.
Ali estava a oportunidade, pensava.
O narrador vomitava nome e sobrenome dos europeus e logo em seguida a tela era poluída mais uma vez pelo número ao qual o telespectador deveria recorrer para interagir com o comentarista. Começava a descobrir o que era a sedução da publicidade, sem pensar nas consequências.
Pedi à mãe que fosse à padaria por mim, afinal as férias também podiam ser de buscar os pães, não? E eram oitavas de final da Liga dos Campeões, que eu nem sabia como falar naquele nome oficial em inglês. E que não me perguntassem o que era UEFA, por favor!
Liguei uma vez: completou! Depois de uma mensagem automática, ia perguntar sobre o palpite do jogo. Não satisfeito, resolvi ler uma pergunta anotada em um papel qualquer, sobre algum meio de campo, estratégias, táticas. A mãe chegou, desliguei.
Pouco me importava o decorrer da partida, estava mais preocupado em acompanhar o letreiro embaixo da tela. Aparecia um “L” no canto direito e a expectativa era quebrada quando não era meu nome o que aparecia ali.
– Que pergunta idiota!
Minha mãe não sabia do que se tratava e o cheiro de café percorria a cozinha, passava pela sala e chegava no quarto em que as irmãs se recusavam a ver futebol, essa coisa chata.
O pai chegou, de bicicleta, sem tempo de ver um minuto dos acréscimos que fosse. Disse a ele o resultado e à noite vimos algum dos primeiros jogos de seu Santos na primeira Libertadores que acompanhei do início ao fim.
Lembro a volta para casa, semanas depois. Vez ou outra, passava na padaria depois da escola para evitar discussões com um final já conhecido por mim. A mãe segurava em uma das mãos a conta de telefone: 60 reais em duas ligações para um mesmo número de outro DDD. Os pães quase caíram no chão e a boca balbuciava parcas palavras de improviso. Não convenceria o mais ingênuo dos santos. O medo mesmo foi ao ver a cinta na outra mão.
Dia desses, assistia a algum desses campeonatos europeus em um dos tantos canais esportivos da TV fechada. Não haveria motivos para surra, a mãe acompanhava comigo no sofá da sala. Além disso, já posso interagir pelo celular, sem ninguém saber, com retorno mais rápido do que naquela época.
Até hoje não lembro o que perguntei ao comentarista, hoje apresentador (daqueles bem chatos, amantes de polêmicas vazias e odiado por muita gente). Mas, nem me importo com a resposta.