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Ottavo Re

Eterno ídolo do Internacional. Foto: Reprodução/Site oficial do Sport Club Internacional

A torcida cala. O estádio fica vazio. O time não comemora. De repente, tudo para. Não há mais bola rolando, nem dribles em alto nível e o hino do clube não soa mais. O corpo já não se sente bem em campo e o departamento médico se torna um lugar mais aconchegante. É chegada a hora de pendurar as chuteiras.

Segundo Paulo Roberto Falcão, “o jogador de futebol morre duas vezes. A primeira, quando para de jogar”. O ex-volante, que brilhou nessa posição no elenco da Seleção de 1982, deixou os gramados em 1986, aos 33 anos, e teve sua primeira morte decretada. Nascido em 16 de outubro de 1953, natural de Abelardo Luz, Santa Catarina, foi revelado pelo Internacional e desde então, é tido como um dos melhores jogadores do Brasil e um dos maiores ídolos do time gaúcho.

O Puro Sangue: Internacional

Muitas pessoas acreditam em destino, e sendo esse ou não o seu caso, leitor, o fato é que desde os seis anos, Falcão tinha gosto pela bola. O menino, que despretensiosamente já brilhava nas peladas de rua entre os amigos, foi aprovado em uma peneira do Internacional, aos 11 anos, pelo professor Jofre Funchal. Sua família, muito humilde, morava em Caxias do Sul e a fim de conseguir o dinheiro da passagem até Porto Alegre, para comparecer aos treinos do colorado, Falcão vendia garrafas.

Na base do Inter, começou como meia-esquerdo, porém, quando chegou à categoria infanto-juvenil, Falcão passou a atuar na primeira linha do meio campo e se consolidou como volante. A nítida habilidade na posição durante os anos que se passaram proporcionou sua primeira ida à Seleção Brasileira, nos Jogos Olímpicos de Verão de 1972. Apesar da péssima campanha brasileira naquela competição, o futebol do jovem, que atuou ao lado de Dirceu, mais tarde, renderia ainda mais brilho com a camisa verde e amarela.

Em 73, Falcão chegou ao time profissional do clube gaúcho. Incialmente, disputando vaga com Tovar e Carbone, o jogador era a terceira opção do técnico, mas isso não abalou sua habilidade. No ano seguinte, encantou a todos com seu estilo de jogo – que ora lhe fazia ir ao ataque, ora o mantinha na primeira linha do meio campo – e se consagrou no elenco profissional do colorado, fato que deu a ele o apelido de ‘Puro Sangue’, devido ao futebol inovador que apresentava em campo.

Ídolo do Colorado. Foto: Reprodução/Site oficial do Sport Club Internacional

O eterno camisa 5 do Internacional ergueu as taças dos títulos do Campeonato Brasileiro de 75, 76 e 79 – esse último de forma invicta –, além de outras cinco conquistas estaduais. Falcão ainda foi premiado com duas Bolas de Prata (75 e 79), além de uma Bola de Ouro (76), todas dadas pela Revista Placar.

A boa fase era nítida e, para o torcedor, a ida à Seleção Canarinho em 78 era esperada. No entanto, isso não aconteceu. De acordo com Falcão, em uma entrevista para o Diário do Nordeste, em 2009:

“Achei que foi uma injustiça. Não pelo Chicão, que era uma grande figura, mas eu estava num ótimo momento. Não foi uma questão de ter ou não condições. Foi por uma discussão que tive lá atrás com o Coutinho. Até nem gosto de lembrar disso, porque ele não está mais aqui, já morreu, e não seria ético ficar lembrando a situação. Mas o que posso te dizer é que não foi um problema de falta de futebol. Tanto que, naquele ano, ganhei a Bola de Ouro como melhor jogador do Brasileiro no final do ano.”

Em 30 de julho de 1980, Falcão pisou no gramado do Beira-Rio pela última vez. Naquele dia, o placar não saiu do 0 a 0, no jogo de ida da final da Libertadores, diante do Nacional do Uruguai. Quando o juiz apitou o fim da partida, a torcida presenciou a última vez do ‘Puro Sangue’ em solo vermelho e branco. No jogo da volta, o Uruguai recebeu o que foi uma das melhores equipes que o Inter já teve, mas naquele ano, o título de campeão da América ficou com os donos da casa, depois do Nacional vencer por 1 a 0.

O título da Libertadores poderia ter encerrado com chave de ouro a ótima atuação de Falcão no clube gaúcho, mas, mesmo assim, o vice-campeonato conseguiu eternizá-lo ainda mais na memória do torcedor colorado.

O oitavo Rei de(a) Roma

Quis o destino, ou o próprio Falcão, que a carreira no Internacional tivesse um ponto final. Após 161 jogos e 21 gols marcados pelo clube do Rio Grande do Sul, entre 1973 e 1980, ele arriscou e se lançou ao ataque nos gramados italianos. Ainda em 80, transferiu-se para a Roma e fez história com os giallorossos.

Sua estreia com a nova equipe aconteceu num amistoso contra o Internacional, em agosto daquele ano. No mês seguinte, passou a defender a Roma no Campeonato Italiano e começou a trilhar mais um ótimo caminho em sua carreira.

Da esquerda para a direita: Tancredi, Superchi e Falcão. Foto: Wikipedia

Na Itália, Falcão chegou e encarou uma certa desconfiança por parte da torcida – pois o clube havia especulado contratar nomes como Rivelino e Zico –, mas, em campo, ele se mostrou vencedor e foi muito além disso. Com a camisa da Roma, ganhou o Scudetto – como é conhecido o Campeonato Italiano – de 82/83 e ajudou o time a quebrar um jejum de 40 anos sem títulos.

Idolatrado pela torcida, o jogador recebeu um novo apelido: naquele momento, ele era o Ottavo Re – oitavo Rei, em português – . Além disso, o Divino, como também ficou conhecido, conquistou três Copas da Itália (80-81; 81-82; 83-84). Herói de títulos, ele tinha mais um país para chamar de seu.

O destino: Brasil

O ano era 1982 quando o Rei de Roma vestiu a camisa da Seleção Brasileira principal e, mesmo sem ter feito parte do time das eliminatórias, assumiu a titularidade no elenco. Ao lado de Toninho Cerezzo, Sócrates, Zico e companhia, Falcão foi um dos principais destaques daquele Mundial.

O Brasil, comandado por Telê Santana, integrava o grupo F da Copa junto a Escócia, Nova Zelândia e União Soviética. Na fase inicial, foram 3 jogos e 3 vitórias, além de dois gols de Falcão. Na segunda etapa, um grupo que muitos chamariam ‘da morte’: Argentina, Brasil e Itália. A confiança do torcedor no time de ouro brasileiro era grande, mas nem mesmo o futebol de alto nível daquele elenco foi capaz de conseguir a classificação.

Apesar de mostrar ao mundo todo o seu talento como meio-campista e contar com a ajuda de outros nomes grandiosos da Seleção Canarinho, por ironia do destino, ou não, Falcão viu a Itália desbancar o Brasil no último jogo das quartas de final do Mundial, depois de vencer por 3 a 2, e adiar o sonho do tetra. Dois jogos depois, a Seleção Italiana se sagrou campeã da Copa de 82.

Da esquerda par a direita: Bruno Conti, Nils Liedholm e Falcão, em 1982. Foto: Wikipedia

Depois da eliminação, Falcão voltou à rotina nos gramados italianos, onde jogou até 1985. Após 107 jogos e 22 gols, ele retornou ao Brasil. Na época, atribuíram sua partida à divergências com o então presidente do time italiano, Dino Viola, que acreditava que o alto salário do jogador não estava de acordo com seus resultados. Além disso, uma lesão crônica no joelho esquerdo já vinha atrapalhando sua carreira.

Sua saída da Itália também é atribuída a um pedido do Papa da época, João Paulo II, que como torcedor fervoroso da Roma, havia rogado para que seu time do coração não negociasse o volante com nenhum outro clube do país. O fato é que Falcão deixou a Itália com a certeza que marcara seu nome na história do calcio e completamente amado pela torcida.

Ainda em 85, ele aceitou jogar no São Paulo, mesmo longe daquele ótimo futebol que o tornara eterno na mente de muitos. Após 10 jogos com a camisa do tricolor, conquistou seu último título: o Campeonato Paulista. No ano seguinte, sua pior passagem com a camisa verde e amarela: sem condição de ser titular, atuou em apenas dois jogos, sem nenhum prestígio.

As idas ao departamento médico devido à lesão se tornaram mais constantes e Falcão sentiu que, naquele momento, o luto seria mais aconchegante. Em 86, quando seu corpo e seu condicionamento físico já não eram os mesmos, Falcão decretou sua primeira morte, quando anunciou sua aposentadoria com apenas 33 anos.

Pós primeira morte

Quando se tem amor por algo, ou alguém, dificilmente o sentimento se apaga, geralmente, a intensidade é o que muda. No caso de Falcão, o amor pelo futebol nunca saiu dele, tampouco diminuiu, então, depois de sua primeira morte, o ex-volante ainda voltou aos gramados como técnico.

Falcão no comando técnico da Seleção Brasileira, em 1991. Foto: CBF

Em 91, comandou a Seleção Canarinho e conquistou o 2º lugar da Copa América, porém, não chegou a ficar um ano no cargo, devido à pressão que sofrera por apresentar resultados encarados como insossos. Mesmo assim, seu trabalho ajudou na conquista do tetra, em 94, de acordo com Carlos Alberto Parreira, seu sucessor na seleção.

Enquanto dirigiu o América do México, conquistou a Copa Intramericana de 1991 e a Copa dos Campeões da CONCACAF no ano seguinte. Em 93, comandou, pela primeira vez, o time que o revelou. De 94 a 95 foi técnico da Seleção Japonesa e, após isso, dedicou-se ao rádio e à TV, como comentarista esportivo.

Falcão só assumiu aquele cargo novamente em 2011, quando voltou a comandar o Internacional. Ganhou o Estadual daquele ano e, na Libertadores, o colorado foi precocemente eliminado nas oitavas de final. No ano seguinte, teve uma breve passagem no comando do Bahia e, em 2015, dirigiu o Sport, clube em que permaneceu até 2016, após ser eliminado na semifinal da Copa do Nordeste. Ainda naquele ano, voltou ao Inter, mas foi desligado do time com menos de um mês de trabalho.

Em 2019, o ex-volante recebeu uma homenagem em Roma: a Embaixada do Brasil fez uma exposição das camisas usadas por Falcão, junto a um par de chuteiras e mais 52 fotos da carreira do jogador, além de um painel biográfico. Naquele mesmo ano, ainda foi eleito “Lenda do Futebol Mundial” pelo comitê organizador do Golden Foot Monaco Award.

É inegável que, até hoje, a passagem de Falcão pelo futebol brasileiro é lembrada. Seja Rei, seja Puro Sangue, o fato é que o jogador que encantou, driblou, arrancou sorrisos e lágrimas de inúmeras torcidas, e que já decretou sua morte uma vez, hoje, comemora mais um ano de vida.


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Lúcia Oliveira

Amante da comunicação, da escrita, da fotografia, do futebol, da literatura, do jornalismo, entre outras coisas. Escrevo para eternizar e vivo para escrever.

Como citar

OLIVEIRA, Lúcia. Ottavo Re. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 39, 2020.
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