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Pelo futebol, pelo direito de torcer, pela democracia!

Victor de Leonardo Figols 14 de novembro de 2022

A última vez que escrevi sobre a importância política das torcidas organizadas do Brasil foi em 2016. O texto fazia parte de uma série que foi originalmente publicada no meu antigo blog (O Campo), e posteriormente republicada aqui no Ludopédio. O texto que fechava a série se chamava: A revolução virá das arquibancadas, nele eu fazia um breve balanço do papel político das torcidas, e como, a partir dos anos 1980 e 1990, as reivindicações contra o chamado “futebol moderno” ganharam força entre as torcidas pela Europa. Na mesma série de textos, lembrei da fundação de uma das mais importantes instituições do futebol brasileiro, a Gaviões da Fiel, que foi fundada no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, e que teve um papel importante questionando dirigentes do Corinthians que mantinham relações promíscuas com a ditadura. Ainda na A revolução virá das arquibancadas, lembrei que as torcidas dos quatro grandes clubes de São Paulo – estimuladas, em parte, pela Gaviões da Fiel e outras torcidas ligadas ao Corinthians, – tiveram um papel importante denunciando a Máfia da Merenda no Estado de São Paulo, e depois, tomando as ruas nas manifestações contra o golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder.

De lá pra cá, muita coisa mudou, principalmente no cenário político nacional. Michel Temer assumiu o poder, após dar o golpe na Dilma. Dois anos depois, o ex-juiz Sérgio Moro determinou a prisão – com base em convicções e não em provas – de Luiz Inácio Lula da Silva. O processo, que foi conduzido de forma parcial, viria ser anulado em 2021. A prisão tirou Lula das eleições de 2018. E o então deputado federal pelo Rio de Janeiro, Jair Messias Bolsonaro – após uma facada muito suspeita – venceu as eleições presidenciais daquele ano. No governo de Bolsonaro, o tal ex-juiz assumiria o ministério da Justiça e Segurança Pública, escancarando que a prisão de Lula foi uma jogada política para tirá-lo das eleições.

O governo de Bolsonaro foi um dos piores, se não o pior, governo da história deste país. Para além do completo desmonte de todas as políticas públicas, o que se viu foi inflação, desemprego em alta, aumento do preço dos combustíveis, aumento do preço dos alimentos. Além disso, o Brasil voltou para o mapa da fome: mais de 30 milhões de pessoas passam fome atualmente no país, sem contar um sem número de pessoas em insegurança alimentar.

Somado ao desmonte das políticas públicas e aos ataques constantes à democracia, o governo Bolsonaro também foi marcado pelo descaso e pela péssima gestão da pandemia de coronavírus. Os esforços do governo federal em minimizar a seriedade da pandemia levou a morte de cerca de 700 mil vidas, sem contar que o governo também negou a vacina para a população. A vacinação contra o coronavírus foi fruto da pressão de parlamentares (vide a CPI da Pandemia) e da sociedade civil, e ainda assim, o governo esteve envolvido em suspeitas de corrupção na compra de vacinas.

No campo das torcidas antifascistas – ou progressistas –, se em 2016 era possível registrar mais ou menos 30 coletivos organizado nas redes sociais, alguns anos depois esse número passava dos 60. Aqui vale lembrar que grande parte destes coletivos nasceu no contexto pós-manifestações de junho de 2013, e principalmente, em 2014, com a realização da Copa do Mundo da FIFA, que foi realizada no Brasil. Entretanto, após a ascensão de Bolsonaro no poder, estes coletivos se multiplicaram, nas redes e nas ruas. E com um objetivo muito claro: barrar o fascismo dentro e fora dos estádios.

Ato pela democracia em Brasília, 7 jun. 2020. Foto: Ricardo Stuckert/Fotos Públicas.

Ainda em 2020, enquanto o país enfrentava uma das piores ondas de contágio – e mortes – pelo coronavírus, as torcidas foram às ruas defender a democracia. Não bastasse a crise sanitária que o Brasil vivia, o país ainda sofria com atos golpistas dos apoiadores de Bolsonaro. Em maio e junho daquele ano, diversos bolsonaristas – que também podem ser chamados de fascistas – tomaram às ruas em manifestações de apoio ao presidente da República, com um tom golpista e militarizado. Não demorou muito para que as torcidas organizadas e antifascistas também fossem às ruas.

Aqui a gente precisa lembrar de uma coisa: o mundo vivia uma onda de protestos contra a violência policial que a população negra nos Estados Unidos da América vinha sofrendo. As manifestações do Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”) tomaram as ruas do mundo todo, e por aqui não foi diferente. Se por um lado havia manifestações antidemocráticas, do outro, as pessoas estavam nas ruas lutando por justiça e igualdade racial. Em meio a isso, coletivos antifascista somaram-se nas manifestações do Black Lives Matter, e não demorou muito para que as torcidas antifascistas de todo o país também engrossassem os protestos do BLM.

A disputa das ruas era inevitável. Tanto que a Avenida Paulista, em São Paulo, ficou dividida entre golpistas – que traziam bandeiras de grupos de extrema-direita da Ucrânia – e antifascistas, sobretudo torcedores de futebol. Os torcedores, literalmente, colocaram os fascistas para correr, e limparam a avenida. Esses embates também foram registrados em várias cidades do país.

Avancemos para 2022, mais especificamente para o dia 30 de outubro, também conhecido como o segundo turno das eleições presidenciais. No páreo, Lula e Bolsonaro. Depois de uma eleição completamente desigual, com Bolsonaro usando toda a máquina do Estado para fazer campanha, além das suspeitas de compra de votos e doações milionárias para a sua campanha, Lula venceu com quase 60 milhões de votos, ou quase 51% dos votos válidos. Tão logo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciou a vitória de Lula, grupos bolsonaristas (de extrema-direita, portanto, golpistas) começaram a ocupar e bloquear as principais rodovias federais. Os primeiros bloqueios foram registrados na região do sul do país, especificamente, em Santa Catarina. Durante o dia 31 de outubro, os bloqueios foram se espalhando por outras regiões do país, principalmente em Estados em que Bolsonaro havia vencido, enquanto a Polícia Rodoviária Federal (PRF) fazia vistas grossas, ou pior, assumia o papel de cumplice destes atos antidemocráticos, logo, golpistas.

Na noite do dia 1º de novembro, diante da 35ª rodada do Campeonato Brasileiro, Irlan Simões visou em seu Twitter: “Vai ter muita caravana de torcida organizada nessa semana… Se essa palhaçada bolsonarista se estender até o fds, Deus tenha misericórdia desses lunáticos…”. No mesmo dia, já era possível encontrar os primeiros registros de que as torcidas iriam se deslocar pelas estradas do país, e que ninguém iria impedi-las. E as torcidas conseguiram retirar os bloqueios, coisa que a PRF não fez, ou não quis fazer.

Galoucura – Tropa do Fura Bloqueio

Escudo da Galoucura

Era manhã do dia 1º de novembro, quando os primeiros vídeos da Galoucura começaram a circular no Twitter. A Galoucura, a maior torcida do Atlético Mineiro, saiu de Belo Horizonte com destino a São Paulo. O clube mineiro enfrentaria o tricolor paulista naquela noite.

O presidente da Galocura, Josimar Júnior apareceu em diversos vídeos em que ele e a torcida estavam retirando os bloqueios e liberando as rodovias, e dizendo algumas frases emblemáticas: “Ninguém impede nóis de ver o Galo, sô!”, “Vamo passa e vê o jogo do Galo!”, ou “A gente vai vê o Galo, independentemente de qualquer coisa! É a tropa do fura bloqueio”.

São Paulo 2×2 Atlético-MG

Gaviões da Fiel – Rolo Compressor de Fascista

Escudo da Gaviões da Fiel

No dia 2 de novembro, o Corinthians enfrentaria o Flamengo no Rio de Janeiro. Antes mesmo de pegar a estrada, a torcida postou um aviso no Twitter: “Se tiver bloqueio na estada, vamos passar por cima sem pena. É o rolo compressor de fascistas.” Era o começo da madrugada do dia 2 quando a Gaviões da Fiel liberou parte da Marginal Tietê, colocando os golpistas para correr. O feito rendeu uma foto na Ponte da Casa Verde, na saída de São Paulo. A torcida postou uma foto com a faixa “Somos pela Democracia” (um movimento de dentro da torcida organizada), na foto, ainda é possível ver uma bandeira antifascista e uma da campanha do presidente Lula.

Ao longo de todo o trajeto para o Rio de Janeiro, a Gaviões da Fiel desfez vários bloqueios. Em Resende, já no Rio de Janeiro, a torcida tomou uma faixa dos golpistas e posou para uma foto. Nela podemos ver a bandeira golpista de ponta cabeça. Essa prática é comum entre as torcidas organizadas, quando uma toma o material de uma torcida rival.

Flamengo 1×2 Corinthians

Império Alviverde – Não será um problema e Tropa do Sem Parar

Escudo da Império Alviverde

Ainda na quarta-feira (2 de novembro) pela noite, já entrando na madrugada, cerca de 30 ônibus da Império Alviverde saíram de Curitiba rumo à Caxias do Sul. Pelos relatos, na viagem de ida a torcida encontrou poucos bloqueios e não tiveram grandes problemas para atravessar Santa Catarina, o Estado com o maior número de bloqueios. Já na quinta-feira, no trajeto de volta, há diversos registros em vídeo. Em um deles podemos ver os torcedores subindo na carreta de um caminhão para chegarem na frente do bloqueio e começarem os trabalhos de desobstrução da pista. Há falas direcionadas para as pessoas que aguardavam para passar: “Nós vamos abrir pra todo mundo”, e falas direcionadas aos golpistas: “Vão trabalhar, porra!”. Se na ida, a torcida avisou que os bloqueio não seriam um problema, na volta para casa os torcedores apelidaram a caravana de “Tropa do Sem Parar”. 

Um dos momentos mais tensos do trajeto de volta foi em Santa Catarina, na cidade de Mafra. Houve um princípio de confusão, entre a Império Alviverde e os apoiadores de Bolsonaro. Os golpistas pediram auxílio da PFR, que escoltou a torcida até passarem pelo bloqueio.

Assim como a Gaviões da Fiel, a Império Alviverde tomou uma das bandeiras que pedia “Intervenção Federal” e também tiraram uma foto segurando-a de cabeça para baixo.

Coritiba 1×0 Juventude

Para além das caravanas

Ainda na segunda-feira (1º de novembro), tem um registro em vídeo de que torcedores da Leões da TUF (Fortaleza) liberando os bloqueios que estavam em um bairro. Na quarta-feira, temos o registro da Mancha Verde de Curitiba (Palmeiras) desfazendo os bloqueios da Régis Bettencourt. A torcida se deslocava de Curitiba para São Paulo, com o objetivo de ver o Palmeiras conquistar o título de campeão brasileiro.

A Galoucura, a Gaviões da Fiel e a Império Alviverde cruzaram Estados removendo os bloqueios bolsonaristas, fazendo o que PRF deveria ter feito desde começo. É bem verdade que as torcidas organizadas que desfizeram os bloqueios, fizeram pelo futebol, pelo direito de torcer, mas não podemos desconsiderar que também fizeram pela democracia, direta ou indiretamente, pois estavam desmobilizando os atos antidemocráticos – golpistas – da extrema-direita.

Torcida Gaviões da Fiel após liberar bloqueio na Marginal Tietê – Reprodução / Twitter


Exemplos históricos

Ao longo da história recente é possível elencar vários momentos em que torcedores foram às ruas se manifestar. O que vimos no começo deste mês aqui no Brasil se aproxima em muito de duas experiências históricas nas quais os torcedores deixaram as arquibancadas e foram às ruas para defender a democracia: no Egito (2011) e na Turquia (2013).

No Egito – no contexto da chamada Primavera Árabe – os torcedores dos dois maiores clubes egípcios (Al-Ahly Sporting Club e Zamalek Sports Club) foram às ruas para ajudar a derrubar o regime de Hosni Mubarak.

Em 2011, quando manifestantes tomaram às ruas contra o regime de Mubarak, centenas de manifestantes sofreram com a repressão policial. Os confrontos na Praça Tahrir, no Cairo, vitimaram centenas de manifestantes e levou a prisão de tantos outros. Nesse contexto de convulsão popular, os ultras do Al-Ahly e Zamalek – Ultras Ahlawy e Ultras White Knights respectivamente – tiveram um papel importante e decisivo nos protestos.

Ao longo da história, os ultras egípcios foram duramente perseguidos pelas forças policiais. Com o início dos protestos e a suspensão do futebol naquele país, os torcedores foram às ruas engrossar as manifestações. Se em um primeiro momento, os torcedores estavam nas ruas de forma não organizada em torno da torcida, foi após a recorrentes ações policiais que os ultras egípcios se mobilizaram. Valendo-se de sua experiência em confrontos com a polícia, os ultras tiveram um papel decisivo no enfrentamento nas ruas. Assumindo a linha de frente, os torcedores organizaram e mantiveram as manifestações nas ruas, adotando, entre outras práticas, táticas de ocupação e resistência nas ruas. Somou-se também às manifestações as músicas, bandeiras e faixas, que antes só eram vistas nas arquibancadas.

Na Turquia, os protestos na Praça Taskim fizeram as três maiores torcidas de Istambul se unirem contra a repressão policial. Torcedores do Galatasaray, Fenerbahçe e Beşiktaş, deixaram o longo histórico de rivalidade e brigas para somarem nos protestos que começaram em torno da demolição do Parque Gezi, e que rapidamente tomou grandes proporções, se tornando um protesto contra o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan (do Partido da Justiça e Desenvolvimento – AKP).

O grupo, que ficou conhecido como Istanbul United, teve um papel importante nas manifestações, auxiliando os manifestantes nos confrontos policiais. Assim como no caso egípcio, os torcedores assumiram a linha de frente dos protestos e valeram-se de sua experiência em confrontos policiais. O grupo de torcedores ajudou os demais manifestantes na construção de táticas e estratégias antirrepressivas.

Seja na experiência egípcia, turca ou até mesmo recentemente aqui no Brasil, eu enxergo limites na atuação política das torcidas, mas vejo com muito otimismo todas essas experiências, pois são exemplos de como as torcidas podem ajudar na construção de uma sociedade mais democrática, e até mesmo avançar na luta contra o fascismo.

E é preciso entender esses limites, a politização das torcidas organizadas vai até certo ponto. Essas entidades – apesar de terem membros unidos em nome de uma paixão clubística – formam um corpo heterogêneo e extremamente complexo, com diversas contradições internas. Entretanto, não se pode negar o potencial político das torcidas organizadas, muito menos a sua capacidade de mobilização e ação.

Enfim, o ovo do fascismo já foi chocado e as serpentes que nasceram estão por aí. E para combater, não basta apenas as torcidas nas ruas. A gente precisa de muito mais. Torcidas organizadas, movimentos sociais, movimentos populares, trabalhadores, sociedade civil, ONGs, coletivos, classe artística, políticos (principalmente aqueles que formaram a chamada Frente Ampla com Lula), imprensa, enfim, todas e todos. A disputa das ruas é urgente! A defesa da democracia é urgente!

Referências

Futebol e Política: A revolução virá das arquibancadas
As recentes manifestações de torcidas antifascistas no Brasil
Torcidas antifascistas se multiplicam no futebol brasileiro
A primavera das torcidas antifascistas
Manter mobilização é desafio para grupos políticos de torcedores
Tropa do FURA BLOQUEIO | NA BANCADA
Irlan Simões – Tweets
Glauco – Tweets
A paixão move montanhas (e libera rodovias): Não se brinca com o direito de ir e vir do torcedor quando seu clube joga
Organizada do Atlético-MG “fura” bloqueio por jogo contra o São Paulo: “Vamos ver o Galo”
Grupo de corintianos acaba com bloqueio bolsonarista em SP e viraliza
Corintianos liberam bloqueio na Marginal Tietê e na Dutra em SP; bolsonaristas fogem (vídeos)
Bravura da Gaviões e da Galoucura vai para os livros de história
Corintianos tomam faixas bolsonaristas e furam bloqueios em rodovias
Torcidas organizadas furam bloqueios bolsonaristas para assistir a jogos do Brasileirão
MAGRI, Diogo Vassão. “Torcidas Antifascistas no Brasil: O futebol como trincheira política”. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo) – Escola de Comunicações e Artes.

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Victor de Leonardo Figols

Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2022). É Mestre em História (2016) pela Universidade Federal de São Paulo - Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas (EFLCH) - UNIFESP Campus Guarulhos. Possui Licenciatura (2014) e Bacharel em História (2013) pela mesma instituição. Estudou as dimensões sociais e políticas do FC Barcelona durante a ditadura de Francisco Franco na Espanha. No mestrado estudou o processo de globalização do futebol espanhol nos anos 1990 e as particularidades regionais presentes no FC Barcelona. No doutorado estudou a globalização do futebol espanhol entre os anos 1970 a 2000. A pesquisa de doutorado foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalha com temas de História Contemporânea, com foco nas questões nacionais e na globalização, tendo o futebol como elemento central em seus estudos. É membro do Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp (GEFE). Escreve a coluna O Campo no site História da Ditadura (www.historiadaditadura.com.br). E também é editor e colunista do Ludopédio.

Como citar

FIGOLS, Victor de Leonardo. Pelo futebol, pelo direito de torcer, pela democracia!. Ludopédio, São Paulo, v. 161, n. 14, 2022.
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