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Performances masculinas midiatizadas

Enrico Spaggiari 28 de maio de 2018

A figura dos jogadores profissionais, principalmente os dos grandes clubes brasileiros e estrangeiros que compõem o sistema futebolístico, tem um grande impacto no imaginário brasileiro e mundial. Trata-se de uma projeção orquestrada pelo universo espetacularizado e pelo sucesso das trajetórias de muitos jogadores profissionais bem-sucedidos. Revela-se uma admiração pelo sucesso que esses jogadores, muitos deles de origem pobre, conseguem nos clubes europeus. O sucesso destes jogadores alimenta não só o sonho da carreira no futebol, como também a vida cotidiana das crianças e jovens, projetada em produtos que desejam e almejam comprar.

As composições midiáticas do sistema futebolístico – partidas, reportagens, propagandas, moda –, ao transferirem e redefinirem significados da vida cotidiana dos consumidores, objetificam estilos de vida atrelados aos jogadores de futebol: uma vida de ostentação, conforto, sucesso, prosperidade e alegria. Os jovens futebolistas criam estilos de vida próprios a partir da imagem do jogador de futebol por meio do consumo de diversos produtos, aqui considerados símbolos de prestígio, conforme aponta Erving Goffman, formas de categorizar as expectativas em relação aos outros, as pessoas, suas características, experiências sociais e atributos considerados importantes dentro e fora do sistema futebolístico. Ter a chuteira utilizada por jogadores famosos significa se aproximar de certos valores e qualidades idealizados pelos jovens futebolistas; permite desfrutar de relances do que é ser um jogador de futebol, ao mesmo tempo em que oferece possibilidades – pontuais e efêmeras – de momentos e posições diferentes das que vivenciam nas condições atuais. A adoção de símbolos de prestígio é também de uma forma de deixar de ser estigmatizado.

Nas conversas diárias, os garotos citam diversos itens de consumo que comprariam com os sonhados altos salários recebidos pelos jogadores no mercado europeu, bem como em outros países: carros importados, roupas de marcas caras, bonés e outros acessórios; os melhores telefones celulares e jogos eletrônicos, viagens para diversos países etc. Durante os treinos, as crianças e jovens trocam dicas, informações e dão conselhos aos mais novos sobre chuteiras. Lançamentos e compra de chuteiras são tema de conversa antes e durante os intervalos dos treinos, embora a maioria deles possua apenas uma chuteira, e só comprem ou ganhem uma nova quando esta desgasta ou rasga. Falam sobre marcas, cores e tipos de travas (metálica ou de borracha). Não se trata, contudo, de um consumo desmedido, de compras sucessivas de novas mercadorias disjuntas da renda mensal individual e familiar. Os modos de consumir se articulam à necessidade de garantir aquilo que é mais imediato para a vida cotidiana. Novos consumidores, criados ou fortalecidos pelo aumento de renda e de consumo das famílias pobres observado nos últimos anos, esses jovens empregam o dinheiro que recebem trabalhando, executando pequenas tarefas ou como mesada no consumo de objetos e símbolos de apelo juvenil relacionados à distinção social, em produtos para cuidar da aparência física ou nas atividades de lazer dentro ou próximas ao bairro. Frente ao pouco acesso a equipamentos de lazer, os shoppings são os lugares mais frequentados por eles. Os jovens de Guaianases percorrem dois shoppings com mais regularidade: o Shopping Metrô Tatuapé e o Shopping Metrô Itaquera. A ida ao shopping para passear, comer na praça de alimentação, comprar ou somente olhar as vitrines das lojas é considerada uma forma de lazer. Ressaltam, porém, que fazem compras com frequência somente em lojas populares, como as Lojas Americanas e C&A, espaços com preços mais acessíveis e onde não precisam ter contato com vendedores e seguranças, evitando assim possíveis constrangimentos.

A mídia esportiva desempenha um papel central no processo de atualização do mercado de bens de consumo materiais e simbólicos relacionados ao futebol. As reportagens e manchetes esportivas sobre de jogadores profissionais, principalmente aqueles de origem humilde, nutrem as trajetórias dos jovens futebolistas, que observam continuidades em suas vivências com as daqueles que os inspiram. Reportagens que impulsionam desejos e sonhos dos garotos, bem como fortalecem os alicerces de construção dos projetos familiares. Ao mesmo tempo, ajudam a mascarar as dificuldades, restrições e obstáculos enfrentados por grande parte dos jogadores, que vivenciam um cenário distante do imaginário futebolístico ostentoso, veiculado pelas diferentes mídias e tecnologias de redes sociais, e desproporcional às projeções de mobilidade social e ascensão econômica.

Neymar é a principal referência para os meninos e garotos da escolinha. Foto: C.Gavelle/PSG.

Dentre os jogadores, Neymar – ex-jogador do Santos F.C. e do Barcelona, atualmente no Paris Saint-Germain – é a principal referência para os meninos e garotos da escolinha. Se comparada à pesquisa de campo anterior, realizada em 2007 e 2008, quando observei uma profusão de jogadores consagrados como ídolos pelas crianças e jovens da Zona Leste de São Paulo, a etnografia atual revela um período marcado pelo predomínio do culto à figura de Neymar, fazendo de outros jogadores meros coadjuvantes, já que transformado em ídolo esportivo do momento, espaço ocupado por diferentes jogadores em outras épocas. Tal jogador tem sua posição de destaque definida não apenas pela performance em campo, mas por uma conjuntura midiática. Mais do que outros jogadores, sua figura de ídolo midiatizada influencia uma juventude que reproduz sua postura, movimentos, dribles e formas de execução das jogadas, ao mesmo tempo em que almeja alcançar as mesmas qualidades e atributos distintivos. Contemplam Neymar como um jovem possuidor do “dom” futebolístico que conseguiu alcançar a condição de um dos melhores jogadores do mundo por mérito e competência individual e coletiva. Projetam seus futuros na trajetória de um jovem associado ao sucesso e riqueza. Porém, mais do que um talento esportivo com ótimo desempenho nas competições, observa-se um caso de marketing esportivo, com a produção do ídolo em peças publicitárias diversificadas que exploram a imagem do jogador.

O problema, segundo um professor da escolinha do Botafogo, surge quando a representação é incorporada nos treinamentos e partidas: “Eles começam a levar a sério e achar que são tão bons quanto o Neymar, só porque estão parecidos com ele”. As recorrentes tentativas das crianças e jovens de reproduzirem embaixadinhas e lances de efeito com a bola durante ou fora do tempo de jogo não são proibidas, embora muitas vezes repreendidas. “É isso aí, o moleque sabe fazer mil firulas, faz embaixadinha até sentado, mas não sabe dar um passe certo”, reclamou o mesmo professor/treinador, durante uma partida da Taça Cidade de São Paulo. Ser habilidoso e saber jogar são duas coisas diferentes. Aqueles que conseguem fazer embaixadinhas e floreios com a bola muitas vezes não conseguem repetir o mesmo desempenho nas dinâmicas de jogo dentro de campo. Diferenciação essa que foi explicitada com a presença de um jovem praticante de futebol freestyle durante uma tarde na escolinha em 2011 por conta de uma campanha de promoção da Copa Coca-Cola. Nessa ocasião, o jovem percorria as turmas de alunos, exibindo suas habilidades ao lado de uma modelo que também fazia embaixadinhas, porém poucas.

As crianças e jovens não tentam apenas reproduzir os malabarismos do Neymar. São influenciados e se mostram extasiados com os penteados, cortes de cabelo, comemorações de gol, vestimentas de grife, além dos diversos apetrechos; tudo que está relacionado a Neymar (bem como às marcas que o mesmo representa como garoto-propaganda). A apreciação de apenas uma tarde de treinos é suficiente para revelar a miríade de diferentes tipos e cortes de cabelo, muitos deles copiados dos jogadores profissionais, principalmente de Neymar. As diferentes expressões dos cabelos se orientam pelos sucessivos e diferenciados cortes adotados pelo jogador: moicano, liso, arrepiado etc. Conforme o corte de cabelo do Neymar muda, crianças e jovens de diferentes idades também aparecem com variações de cortes, dentre os quais o visual moicano é o mais copiado. Nas conversas antes, durante e depois dos treinos, os garotos compartilham com os amigos e colegas modos de arrumar o cabelo. Termos como “tinturas”, “chapinha”, “colorir” e “alisar” fazem parte do dia a dia da escolinha. Ainda que em alguns momentos contem com a ajuda dos pais e mães, afirmam que arrumam sozinhos seus penteados carregados de gel. Preocupam-se com a aparência e recorrem a procedimentos estéticos – produtos cosméticos, cortes de cabelo, compra de acessórios e adornos–, principalmente nos momentos de disputa de partidas em competições, quando são mais observados. A preocupação com a aparência, disseminada também pela forte influência da mídia esportiva no imaginário esportivo – bem como a moda, que utiliza a imagem de jogadores de futebol nas publicidades e os vincula a diversas marcas –, está relacionada diretamente à vaidade, mas também a determinados tipos de masculinidade, composta por valores arrolados por certos tipos de arquitetura corporal.

Portanto, inspirados por jogadores de futebol, principalmente Neymar, as crianças e jovens reproduzem uma corporalidade esportiva: os modos de se vestir, de se comportar, gostos, atitudes, virilidades. Os jovens transformam seus corpos, mudam de aparência e incorporam outros pontos de vista sobre si mesmos num processo de construção e desconstrução constante da pessoa: “É legal usar o cabelo diferente, todo mundo fica me olhando”, comenta Jonathan. Nesse recorte transformacional, a compra de produtos relacionados aos jogadores de futebol, considerados modelos de identidade masculina, revela não só a identificação entre o consumidor e o produto, mas também o consumo de imagens, estilos de vida e corporalidades específicas que contribuem para a constituição dos jovens futebolistas e suas formas de atuação no mundo social. Não se trata apenas, porém, da elaboração de uma região de fachada (Goffman, 1985, p.101), embora seja uma representação identificável no vestuário, aparência, expressões corporais e formas de linguagem. O processo de ornamentação e manipulação corporal das crianças e jovens revela, sobretudo, uma personificação de signos atrelada a um processo frenético de constituição de futebolistas que não se limita aos domínios atrelados à configuração do jogo.

Neymar quando foi apresentado ao Paris Saint-Germain. Foto: C.Gavelle/PSG.

Para os professores e varzeanos, certas ações e comportamentos não se mostram adequados aos modelos de masculinidade esperados. Sabem que defendem uma perspectiva nostálgica, vinculada a certas tradições, crenças e valores que diferenciam a prática futebolística de hoje daquela que vivenciaram antigamente. Estranhamento explicitado ao questionarem o fato de os jovens gastarem tanto dinheiro em roupas, chuteiras, bonés e tênis de determinadas marcas, bem como os modos de cuidar do corpo e do cabelo. Além disso, recriminam certas condutas consideradas impróprias nas dinâmicas relacionais dentro e fora da escolinha, como passar creme e pintar o cabelo, e criticam o tempo e dinheiro gastos pelos jovens nos penteados desenhados principalmente nos momentos de competição, bem como a preocupação com os cabelos durante as atividades.

Para os professores, cuidar da aparência e utilizar adornos são formas acionadas pelos jovens como elementos do se fazer e reconhecer futebolista num processo de identificação com os jogadores profissionais. Revelam, assim, uma imagem estereotipada do jogador de futebol que nem sempre está relacionada às práticas dos jovens, visto que estes reinventam os significados dos produtos. Elementos que são significados pelos professores como próprios dos jogadores de futebol, mas que também estão relacionados ao funk ostentação, estilo musical pautado por letras veiculadas em clipes no YouTube de diversos artistas que enfatizam a ostentação de dinheiro, carros de luxo, roupas de grife, tênis, anéis e colares, bebida importadas, perfumes, óculos escuros, boné e artigos de luxo. Signos de consumo e bens materiais observados também na valorização da figura do jogador de futebol.

Deste modo, observa-se uma masculinidade composta por valores relacionados principalmente à estética corporal, tradicionalmente entendidos como femininos, e que se afasta dos signos de uma imagem masculina convencional observada no futebol varzeano.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. Performances masculinas midiatizadas. Ludopédio, São Paulo, v. 107, n. 28, 2018.
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