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Petkovic surreal…. ou sobre gols e pinturas

Fabio Zoboli 1 de setembro de 2022

Não aprendi português o suficiente para achar palavras para descrever a torcida do Flamengo

(Dejan Petkovic)

 O escrito de hoje parte da histórica relação entre esporte e arte. Victor Melo (2005) menciona que esse vínculo é perceptível em algumas expressões usadas no mundo esportivo, tais como “a equipe joga por música”, “o time jogou como se coreografasse”, “que obra de arte”, “assina que a obra é sua”. Diante de tal pressuposto, nos propomos fazer a relação dos gols do rubro-negro Petkovic com alguns quadros de aclamados pintores do surrealismo, afinal “Gol do Pet não é gol, é pintura”. A partir dessa afirmação, de imediato já dedicamos ao sérvio o quadro de René Magritte “A traição das imagens” (1929), no qual pinta um cachimbo com a frase “isso não é um cachimbo”. Com a obra, o pintor belga propõe ao espectador refletir sobre os limites da representação e do próprio objeto.

O surrealismo é um movimento artístico que surgiu na França, em 1924, idealizado pelo poeta e escritor André Breton e disseminado por meio de sua obra “O manifesto do surrealismo”. Esse movimento impactou não apenas no âmbito da pintura, mas também em outras manifestações artísticas, como o teatro, o cinema e a literatura.  Um dos pilares epistêmicos do manifesto de Breton é a obra “Interpretação dos sonhos”, de Sigmund Freud. Por isso, o surrealismo propõe uma arte centrada nas manifestações do inconsciente, a fim de ultrapassar os limites da razão consciente.  Para tal corrente, o subconsciente é mais autêntico e poderoso que o consciente, pois é nele que residem os sentimentos e os desejos ocultos. Outra característica desse estilo artístico é a utilização de objetos simples do cotidiano, assumindo na obra uma nova configuração à medida em que são retirados do seu ambiente e propósito e passam a obter novo sentido.

André Breton
André Breton. Fonte: Wikipédia

Nosso pintor goleador Dejan Petkovic iniciou sua carreira futebolística nas categorias de base do clube do Radnicki Nis, na Iugoslávia[1]. No ano de 1988, ele se tornou o mais jovem jogador da história do país a estrear profissionalmente com apenas 16 anos.  De 1992 a 1995 jogou no Estrela Vermelha (também da Iugoslávia) e ainda em 1995 mudou-se para a Espanha para jogar no célebre Real Madrid. Pet só aterrissou no Brasil em 1997, após rodar por outros clubes europeus. Chegou para atuar no Vitória da Bahia, onde jogou até 1999, ano em que foi contratado pelo Flamengo.

Sua primeira passagem pelo time ocorreu de 1999 até 2001, época em que vestiu a 10 do rei Artur Coimbra. Nesse período foi bicampeão Carioca (2000-2001) e campeão da Copa dos Campeões (2001­). Pet fez gols nos dois jogos das finais do carioca de 2001 contra o Vasco e na segunda partida da final da Copa dos Campeões contra o São Paulo. Seus gols foram importantes para o Fla nas conquistas desses dois títulos, sendo Pet digno do quadro “A caçadora de estrelas (1956)”, da pintora espanhola Remedios Varo.

O gol da final do carioca contra o time da colina, por sua dramaticidade e beleza, é com toda a certeza o gol mais lembrado de Petkovic com a camisa do Flamengo. O time perdeu o primeiro jogo para o rival por “2×1” e ganhava o segundo pelo mesmo placar. No entanto, o Vasco jogava por 2 resultados iguais e o Flamengo precisava de mais um gol. O ponteiro marcava 43 minutos do segundo tempo, quando aconteceu a falta para o Flamengo, cobrada por Pet, que coloca a bola na “gaveta” de Elton. A torcida foi ao delírio, o Flamengo venceu por “3×1” e conquistou o tricampeonato carioca. Um gol digno da pintura “A persistência da memória (1931)”, de Salvador Dalí, afinal é o gol que fixa Pet na memória da nação. Já que fizemos uso do termo “gaveta” e mencionamos o pintor espanhol oferecemos a Pet, por seus gols de “gaveta”, outras duas obras de Salvador Dalí: “O contador antropomórfico (1936)” e “Girafa em chamas (1937)”. Dalí pintava quadros com gavetas que simbolizavam a memória. Aqui neste escrito, a memória faz alusão a um lugar que utilizamos para guardar coisas que não queremos esquecer.

Meses depois, na final da Copa dos Campeões contra o São Paulo, que teve o placar agregado de “7 x 6” a favor do Fla (São Paulo 3 x 5 Flamengo – Flamengo 2 x 3 São Paulo), Pet foi decisivo outra vez. No segundo jogo fez um gol de falta semelhante àquele da final do carioca. Rogério Ceni corre, mas não alcança a bola, que entra na forquilha abaixo do “poleiro onde a coruja dorme”. Um gol digno da pintura “Personagem atirando uma pedra num pássaro (1926)”, do conterrâneo de Dali, Joan Miró. No ano seguinte, em 2002, Pet assina contrato para jogar no Vasco. Como ficou o coração dos flamenguistas? Tal como na pintura “Memória, o coração (1937)”, de Frida Kahlo, que com a obra retratou a traição de seu marido Diego Rivera com sua irmã caçula.

Mas o mundo dá voltas e sete anos depois, em 2009, Pet retornou para sua segunda passagem pelo clube. Nesse regresso à Gávea, Pet passou a atuar com a mística “camisa 43”. Foi ele quem escolheu o número 43, por lhe trazer diversos significados: foi aos 43 do segundo tempo o gol de falta que deu o título de campeão carioca ao Flamengo em cima do Vasco; a conquista desse campeonato deu ao Fla o tri do estadual, o quarto da sua história, por isso 4×3 – quatro vezes tri. Além disso, 43 foi o número de gols que Pet anotara em sua primeira passagem pelo Flamengo.

Petkovic
Fonte: reprodução redes sociais

A camisa deu sorte mesmo. Pet chegou com seus belos gols e ajudou o Mengão a conquistar o hexa campeonato brasileiro de 2009. Na 29ª rodada do campeonato, em um jogo de confronto direto na luta pelo título, o Flamengo recebeu o então atual tricampeão brasileiro, São Paulo, e de virada venceu o jogo com o brilhantismo de Pet. O time são paulino saiu na frente com Hernani no primeiro tempo e ficou em vantagem para o intervalo. No segundo tempo, pênalti para o Flamengo. Uma guerra particular entre dois grandes estrategistas: Pet e Rogério Ceni. Pet vai para a bola, Ceni se adianta e pega o pênalti. O árbitro manda voltar a cobrança e Petkovic, de modo abusado, toca com muita categoria no meio do gol para empatar a partida. A pintura desse momento não podia ser outra: “Olhos sobre a mesa (1935)”, para novamente celebrar Remedios Varo. A 10 minutos do final do jogo, o sérvio deu um passe magistral para Zé Roberto, o atacante tocou na saída de Rogério Ceni para virar o jogo, dando cifras finais ao placar: “Fla 2×1”.

Na rodada seguinte, o Flamengo foi até o Parque Antártica enfrentar o Palmeiras. Pet fez dois golaços na vitória por “0x2” sobre o verdão. No segundo, Pet bateu o escanteio, a bola passou entre as pernas do zagueiro e quicou antes de entrar, enganando o goleiro Marcos, que ficou literalmente com cara de “maçã verde”, como na pintura “O filho do homem (1964)”, de Magritte. Outro gol olímpico foi marcado por Pet na 34ª rodada desse campeonato, abrindo o placar aos 9 minutos do primeiro tempo, em pleno Mineirão. O sérvio cobrou o corner e a bola entrou rente ao travessão, fazendo o goleiro Carini cair atordoado na lateral interna da rede. A pintura desse gol, em homenagem ao arqueiro, fica por conta da mexicana Frida Kahlo: “A coluna partida (1944)”. O Flamengo venceu por “1×3” e a partir desse jogo arrancou para a conquista do hexacampeonato.

Dos 57 gols que fez pelo Flamengo, 33 foram feitos com bola parada, 15 de falta, 14 de pênalti e 4 gols olímpicos. Em decorrência disso, o funkeiro carioca Robinho da Prata compôs para Pet o funk “É o Pet, É o Pet… (Funk Do Petkovic)”. Na música, Robinho proclama Pet como “rei do gol olímpico” e faz alusão ao Imperador Adriano, artilheiro da competição na campanha do título brasileiro de 2009.  “Nós temos o imperador, também temos o Pet, o rei do gol olímpico, e o goleiro nem se mexe (olha o golaço do Pet) vaiiii vaiii. É o Pet, É o Pet, É o Pet…”.

Além das pinturas que se formavam com seus gols e da música que leva seu nome, Pet também foi protagonista de uma obra da sétima arte. O documentário “O gringo mais querido do Brasil” (2011), dirigido por Darko Bajić e Renato Martins, reconstitui episódios de sua vida futebolística e homenageia sua trajetória com um sem-fim de lindos gols feitos por ele. No Brasil, foram 196 jogos pelo Flamengo, 90 pelo Vitória da Bahia, 66 pelo Vasco, 59 pelo Fluminense, 32 pelo Atlético Mineiro, 21 pelo Santos e 9 pelo Goiás. Além de se declarar torcedor do Flamengo, foi com a camisa do clube que Pet mais jogou no Brasil e com ela também se consagrou como ídolo de uma nação.

Gostou das pinturas surrealistas? Então, pendura um gol do Pet em sua parede ou guarda na “gaveta”.

Notas

[1] A Iugoslávia se desintegrou nos finais dos anos 80 do século passado, quando o país se dividiu em dois: Sérvia e Montenegro. Em 2006, a Sérvia separa de Montenegro e se tornou uma república independente.

Referências

MELO, Victor. A. A presença do esporte no cinema: de Étienne-Jules Marey a Leni ReifenstahlMovimento. Porto Alegre, v. 11, n. 2, p.111-130, maio/agosto de 2005.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

ZOBOLI, Fabio. Petkovic surreal…. ou sobre gols e pinturas. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 1, 2022.
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