No primeiro semestre de 1971, durante o Campeonato Carioca, os jornais noticiaram o surgimento de uma nova moda entre os atletas profissionais. Depois das “cabeleiras” Black Power, dos jogadores “barbados”, das bermudas e sandálias coloridas, chegara a vez da “fita apache”, consoante a denominação empregada pela imprensa esportiva.[1] Ao que tudo indica, dos filmes de faroeste nos quais compunha o estereótipo dos indígenas abatidos pelos Cowboys, a fita branca foi apropriada pelos atletas de tênis com uma intenção ao mesmo tempo estética e prática: prender os cabelos compridos durante os jogos. Com essa dupla finalidade, ela empreendia um outro deslocamento: das quadras de tênis para os campos de futebol. Introduzida em General Severiano por Carlos Roberto, volante do Botafogo, a partir do exemplo de Thomas Koch, à época o principal nome do tênis brasileiro, a “moda apache” rapidamente se espalhou pelos principais clubes da cidade:
As fitinhas também invadiram a Gávea ontem, depois que [o atacante] Roberto apareceu com a bossa-nova, todos os rubro-negros arranjaram forma de imitá-lo”.[2]
A princípio, portanto, tratava-se de um simples modismo, despojado de conotações políticas. Todavia, um editorial publicado na seção de esportes de O Globo soava o alerta sobre a “moda apache”. Ele argumentava que, em contraste com o caráter elitista do tênis, o futebol se revelava como o esporte mais popular do país, e, nessa condição, “deveria ficar alheio às manifestações sociais, políticas e religiosas”. Noutras palavras: a referida moda não era tão inocente assim como se imaginara inicialmente. Ao contrário, em linha de convergência com outros “modismos” adotados pelos atleta profissionais, ela concorria para o advento de uma nova – e perturbadora – cultura visual nos gramados de jogo:
Gestos “hippies” ainda vá lá, mas não tanto o aceno do “Black Power”, que muitos querem ou pretendem introduzir, não fosse o Brasil felizmente uma pátria sem complexos dessa natureza. De repente, surgiu mais uma novidade, que esperávamos não “pegar” pelo quase ridículo que representava.[3]
Ora, se, de um lado, o uso da “fita apache” para prender os cabelos compridos inseria-se nas expressões mais popularizadas da contracultura; de outro lado, não está claro a razão pela qual o autor do editorial a inscrevia na problemática do racismo, cuja existência no país, aliás, ele não admitia. Para compreendermos o nexo estabelecido entre o uso da “fita apache” e o gesto do Black Power, no entanto, devemos evocar uma cena ocorrida no momento em que a “bossa nova” começava a se difundir pelos coletivos de atletas, despertando a atenção da imprensa carioca.
Em meados de maio, um grupo de pesquisadoras da Abril Cultural encontrava-se nas Laranjeiras para entrevistar o atleta Flávio Almeida da Fonseca. À época com 26 anos, ele era reconhecido como um dos maiores centroavantes do futebol brasileiro, revelado no Internacional (1961-1964), com uma longa passagem pelo Corinthians (1965-1969), onde se destacara em 1967 como artilheiro do Campeonato Paulista, antes de se transferir em 1969 para o Fluminense. De forma generosa, Flávio atendia às jovens pesquisadoras na entrada da sede, quando foi surpreendido pela chegada de Francisco Laport. Conforme o registro feito pelos setoristas que cobriam o dia a dia do tricolor carioca: “O presidente do clube repreendeu com veemência” o artilheiro da equipe, “deixando-o constrangido, como também as moças que o entrevistavam”.[4]
De acordo com as normas instituídas nas Laranjeiras, era proibida a livre circulação de atletas de futebol pelas demais dependências do clube. Os profissionais do futebol só podiam transitar entre os vestiários e o campo de jogo. A entrada e saída só era permitida pelo “portão dos fundos”, localizado na Rua Pinheiro Machado, jamais pelo portão principal, situado na Rua Álvaro Chaves. Flávio, portanto, encontrava-se em um espaço que lhe era interdito, sujeitando-se consequentemente à situação vexatória presenciada pelas pesquisadoras.
A palavra “racismo” não aparece em nenhum momento da cobertura jornalística para caracterizar o ocorrido na porta do clube; tampouco existe qualquer menção à identidade negra do centroavante tricolor. Para todos os efeitos, a discriminação incidia sobre a categoria do atleta de futebol. A charge de Henfil no Jornal dos Sports, porém, evocava uma imagem que destoava do enfoque geral a respeito do caso. De forma irônica, o cartunista salientava o fato de que a “ Semana da Abolição da Escravatura” tinha sido “comemorada com grande pompa e requinte no Fluminense”.[5] Com efeito, o ritual de humilhação do jogador negro ocorrera no 13 de Maio.
A senzala, porém, vivia um sentimento crescente de “revolta” diante do estado de coisas instituído nas Laranjeiras. “Isso foi um dos maiores absurdos que já vimos” – diziam os atletas, assim designados nas matérias e reportagens para evitar possíveis retaliações.[6] Na terça-feira, 18 de maio, expressando abertamente o sentimento de “revolta” com o ato discriminatório, dois jogadores negros do elenco, Flávio e Toninho, apresentaram-se no treinamento usando a “fita apache” -, uma iniciativa “bastante criticada dentro do clube”, conforme noticiava O Globo.[7] Todavia, sem se deixarem intimidar pelas reações dos dirigentes, na quinta-feira, Flávio e Mickey (atacante branco da equipe), compareceram ao treinamento usando mais uma vez “a fita apache na cabeça”.[8] Já não se tratava mais apenas de uma moda, como admitia abertamente o Jornal dos Sports:
Os jogadores do Fluminense aderiram integralmente à moda apache. Daqui por diante, todos vão usar aquela fitinha no cabelo, como já vinha fazendo Carlos Roberto no Botafogo. A diferença é que o apoio que o time tricolor dará à moda será como protesto à determinação da diretoria do clube, que proibiu a entrada dos jogadores pelo portão principal do Fluminense.[9]
Esboçava-se, assim, entre os atletas do tricolor carioca um movimento de protesto inédito, cujo principal desafio consistia em driblar as ameaças de represálias e punições proferidas pela direção do clube. A correlação de forças passava por inúmeras variáveis, a saber: a coesão interna do grupo no enfrentamento da questão; o capital simbólico de cada atleta para assumir a liderança do movimento; a posição mais frágil dos que eram vistos como simples coadjuvantes no elenco; caso do lateral direito Toninho, recém promovido da base, o qual, depois de acompanhar Flávio no uso da fita apache no treino, desistiu de usá-la, “temendo qualquer repreensão por parte dos dirigentes”.[10]
A rigor, nem os jogadores de maior prestígio estavam a salvo de retaliações. Por “coincidência”, logo após o episódio da humilhação na porta do clube, Flávio foi posto à margem do elenco, afastado pelo vice-presidente de Futebol, João Boueri, sob a justificativa de estar “saindo da linha”, frequentando as “noitadas”, além de enfrentar problemas financeiros que supostamente impediam-no de se concentrar no trabalho.[11] Uma vez reintegrado ao grupo, ele passaria a liderar o movimento de protesto que a esta altura extravasava os limites das Laranjeiras, despertando a solidariedade de atletas negros de outros clubes, como por exemplo a dos atacantes Fio, do Flamengo, e Silva, do Vasco. [12]
A apropriação da “moda apache” pelos jogadores negros pegava de surpresa a estrutura racista do futebol brasileiro, desvelando uma articulação insuspeitada em torno de uma questão considerada tabu. O grande ato do movimento estava agendado para o sábado, no Maracanã, na partida do Fluminense contra o Bonsucesso. Se, do ponto de vista futebolístico, ela não suscita maiores interesses, vista sob o prisma do jogo político, ela prometia fortes emoções. Com efeito, o movimento idealizado pelo elenco pretendia utilizar a partida para veicular uma mensagem inequívoca de repúdio contra a “medida discriminatória” implantada nas Laranjeiras. De acordo com a proposta, o time todo deveria entrar em campo, no Maracanã, 22 de maio, usando a “fita apache”.[13]
Não é difícil imaginarmos a aflição dos próceres tricolores. E se além do uso da “fita apache”, os jogadores negros do elenco decidissem se inspirar no exemplo de Paulo César, do Botafogo, e saudar as gerais e arquibancadas com o gesto do Black Power? [14]Sem dúvida alguma, um cenário de pesadelo: no clube mais aristocrático do país, o Fluminense; no principal palco do futebol brasileiro, o Maracanã; uma manifestação de protesto que desnudava o real significado de que se revestia a discriminação praticada nas Laranjeiras.[15] Urgia, portanto, deter o movimento, dissuadir os atletas, coagir as lideranças. E, como se depreende do registro jornalístico feito pelo Jornal do Brasil, as medidas repressivas surtiram o efeito desejado:
O movimento para o uso da fita apache foi forte no início, mas depois perdeu consistência quando Denílson, como capitão do time, ponderou com os demais pedindo para que o episódio da proibição fosse esquecido.[16]
Dessa maneira, chegava ao fim a “moda apache”. Embora de existência efêmera, ela teve o mérito de mobilizar parte da categoria profissional dos atletas na luta por dignidade, indicando o avanço da tomada de consciência a respeito do racismo na esfera do futebol. Nesse sentido, não resta dúvida, a luta que ela simbolizava não foi esquecida.
[1] Cf. “O sucesso da equipe hippie”, 25 de março de 1971 e “Fla entra na luta de fitinha”, 22 de maio de 1971, ambas as matérias em O Globo Cf. “Paulo César pede que Botafogo venda seu passe”, 5 de janeiro de 1971 e “Botafogo chega no carnaval com jogadores lamentando a desorganização da viagem”, 25 de fevereiro de 1971, ambas as matérias as matérias no Jornal do Brasil.
[2] Cf. “Fla entra na luta da fitinha”, O Globo, 20 de maio de 1971.
[3] Cf. “Hora da fitinha`”, O Globo, 21 de maio de 1971.
[4] Cf. Proibição do presidente deixa o time revoltado”, Jornal do Brasil, 14 de maio de 1971. De acordo com as lembranças do atleta: “Eu fui levar até o portão duas moças que estavam fazendo pesquisas…” Cf. “Flávio, ao sair: ´Eu sou tricolor`”, O Globo, 28 agosto de 1971.
[5] Cf. “Notas de um Urubu”, Henfil, Jornal dos Sports, 18 de maio de 1971. A rigor, Henfil seguia a leitura geral de uma afronta cometida contra a categoria dos atletas profissionais, citando, na charge, episódios envolvendo outros clubes, como, em especial, o América. Mas a referência ao 13 de Maio inseria um dado ausente nas matérias e artigos sobre o ocorrido nas Laranjeiras.
[6] Cf. “Jogadores dedicam a Flávio a vitória sobre o Flamengo”, Jornal dos Sports, 13 de maio de 1971.
[7] Cf. “Moda da fitinha atinge o Flu”, O Globo, 19 de maio de 1971.
[8] Cf. “Flávio treina como titular e fica na reserva amanhã”, Jornal do Brasil, 21 de maio de 1971.
[9] Cf. “A moda como protesto”, Coluna: “Jogo Perigoso”, Jornal dos Sports, 21 de maio de 1971.
[10] Cf. “Flávio treina como titular e fica na reserva amanhã”, Jornal do Brasil, 21 de maio de 1971.
[11] Cf. “Flávio só foi afastado por estar mal fisicamente”, Jornal do Brasil, 13 de maio de 1971.
[12] Para o uso da fita apache por Fio e Silva, ver, respectivamente, “Fio se amarra na fita”, Jornal dos Sports, 22 de maio de 1971; “Andrada só opera amídalas segunda-feira e sábado deve entrar contra Olaria”, Jornal do Brasil, 3 de junho de 1971.
[13] Conforme reportagem do Jornal dos Sports, “Flu não abre mão de Flávio”, 20 de maio de 1971, havia “uma corrente para que o time todo entre de apache”. No mesmo jornal, uma nota publicada na Coluna: “Jogo Perigoso”, 21 de maio de 1971, explicitava a apropriação política da “moda apache” pelos atletas do Fluminense.
[14] Na edição de domingo, 9 de maio, na primeira página, o Jornal dos Sports publicava a foto de Paulo César, deixando o gramado do Maracanã, fazendo o gesto do punho cerrado. A legenda não esclarece em qual jogo exatamente ocorre a saudação do Black Power, mas, ao que tudo indica, ela se tornou comum durante o Campeonato Carioca daquele ano.
[15] Paulo César não era o único a fazer a saudação do Black Power. A foto estampada no Jornal dos Sports, da comemoração do gol de empate do América contra o Flamengo, no Maracanã, 1 x 1 no Campeonato Carioca, mostra o jogador negro Sérgio Lima com os braços erguidos, mas cruzados sobre a cabeça, e o punho cerrado. Cf. “O gol e a euforia de Sérgio Lima”, 12 de abril de 1971.
[16] Cf. “Zagalo lança Flávio durante o jogo em que Flu terá Didi”, Jornal do Brasil, 22 de maio de 1971.