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Porta dos fundos

José Paulo Florenzano 10 de fevereiro de 2022

No primeiro semestre de 1971, durante o Campeonato Carioca, os jornais noticiaram o surgimento de uma nova moda entre os atletas profissionais. Depois das “cabeleiras” Black Power, dos jogadores “barbados”, das bermudas e sandálias coloridas, chegara a vez da “fita apache”, consoante a denominação empregada pela imprensa esportiva.[1] Ao que tudo indica, dos filmes de faroeste nos quais compunha o estereótipo dos indígenas abatidos pelos Cowboys, a fita branca foi apropriada pelos atletas de tênis com uma intenção ao mesmo tempo estética e prática: prender os cabelos compridos durante os jogos. Com essa dupla finalidade, ela empreendia um outro deslocamento: das quadras de tênis para os campos de futebol. Introduzida em General Severiano por Carlos Roberto, volante do Botafogo,  a partir do exemplo de Thomas Koch, à época o principal nome do tênis brasileiro, a “moda apache” rapidamente se espalhou pelos principais clubes da cidade: 

As fitinhas também invadiram a Gávea ontem, depois que [o atacante] Roberto apareceu com a bossa-nova, todos os rubro-negros arranjaram forma de imitá-lo”.[2]

A princípio, portanto, tratava-se de um simples modismo, despojado de conotações políticas. Todavia, um editorial publicado na seção de esportes de O Globo soava o alerta sobre a “moda apache”. Ele argumentava que, em contraste com o caráter elitista do tênis, o futebol se revelava como o esporte mais popular do país, e, nessa condição, “deveria ficar alheio às manifestações sociais, políticas e religiosas”. Noutras palavras: a referida moda não era tão inocente assim como se imaginara inicialmente. Ao contrário, em linha de convergência com outros “modismos” adotados pelos atleta profissionais, ela concorria para o advento de uma nova – e perturbadora – cultura visual nos gramados de jogo:

Gestos “hippies” ainda vá lá, mas não tanto o aceno do “Black Power”, que muitos querem ou pretendem introduzir, não fosse o Brasil felizmente uma pátria sem complexos dessa natureza. De repente, surgiu mais uma novidade, que esperávamos não “pegar” pelo quase ridículo que representava.[3]

Ora, se, de um lado, o uso da “fita apache” para prender os cabelos compridos inseria-se nas expressões mais popularizadas da contracultura; de outro lado, não está claro a razão pela qual o autor do editorial a inscrevia na problemática do racismo, cuja existência no país, aliás, ele não admitia. Para compreendermos o nexo estabelecido entre o uso da “fita apache” e o gesto do Black Power, no entanto, devemos evocar uma cena ocorrida no momento em que a “bossa nova” começava a se difundir pelos coletivos de atletas, despertando a atenção da imprensa carioca.

Em meados de maio, um grupo de pesquisadoras da Abril Cultural encontrava-se nas Laranjeiras para entrevistar o atleta Flávio Almeida da Fonseca. À época com 26 anos, ele era reconhecido como um dos maiores centroavantes do futebol brasileiro, revelado no Internacional (1961-1964), com uma longa passagem pelo Corinthians (1965-1969), onde se destacara em 1967 como artilheiro do Campeonato Paulista, antes de se transferir em 1969 para o Fluminense. De forma generosa, Flávio atendia às jovens pesquisadoras na entrada da sede, quando foi surpreendido pela chegada de Francisco Laport. Conforme o registro feito pelos setoristas que cobriam o dia a dia do tricolor carioca: “O presidente do clube repreendeu com veemência” o artilheiro da equipe, “deixando-o constrangido, como também as moças que o entrevistavam”.[4]

De acordo com as normas instituídas nas Laranjeiras, era proibida a livre circulação de atletas de futebol pelas demais dependências do clube. Os profissionais do futebol só podiam transitar entre os vestiários e o campo de jogo.  A entrada e saída só era permitida pelo “portão dos fundos”, localizado na Rua Pinheiro Machado, jamais pelo portão principal, situado na Rua Álvaro Chaves. Flávio, portanto, encontrava-se em um espaço que lhe era interdito, sujeitando-se consequentemente à situação vexatória presenciada pelas pesquisadoras.

Flávio Minuano
Flávio Almeida da Fonseca no Fluminense. Foto: reprodução.

A palavra “racismo” não aparece em nenhum momento da cobertura jornalística para caracterizar o ocorrido na porta do clube; tampouco existe qualquer menção à identidade negra do centroavante tricolor. Para todos os efeitos, a discriminação incidia sobre a categoria do atleta de futebol. A charge de Henfil no Jornal dos Sports, porém, evocava uma imagem que destoava do enfoque geral a respeito do caso. De forma irônica, o cartunista salientava o fato de que a “ Semana da Abolição da Escravatura” tinha sido “comemorada com grande pompa e requinte no Fluminense”.[5] Com efeito, o ritual de humilhação do jogador negro ocorrera no 13 de Maio.

A senzala, porém, vivia um sentimento crescente de “revolta” diante do estado de coisas instituído nas Laranjeiras. “Isso foi um dos maiores absurdos que já vimos” – diziam os atletas, assim designados nas matérias e reportagens para evitar possíveis retaliações.[6] Na terça-feira, 18 de maio, expressando abertamente o sentimento de “revolta” com o ato discriminatório, dois jogadores negros do elenco, Flávio e Toninho, apresentaram-se no treinamento usando a “fita apache” -, uma iniciativa “bastante criticada dentro do clube”, conforme noticiava O Globo.[7] Todavia, sem se deixarem intimidar pelas reações dos dirigentes, na quinta-feira, Flávio e Mickey (atacante branco da equipe), compareceram ao treinamento usando mais uma vez “a fita apache na cabeça”.[8] Já não se tratava mais apenas de uma moda, como admitia abertamente o Jornal dos Sports:

Os jogadores do Fluminense aderiram integralmente à moda apache. Daqui por diante, todos vão usar aquela fitinha no cabelo, como já vinha fazendo Carlos Roberto no Botafogo. A diferença é que o apoio que o time tricolor dará à moda será como protesto à determinação da diretoria do clube, que proibiu a entrada dos jogadores pelo portão principal do Fluminense.[9]  

Esboçava-se, assim, entre os atletas do tricolor carioca um movimento de protesto inédito, cujo principal desafio consistia em driblar as ameaças de represálias e punições proferidas pela direção do clube. A correlação de forças passava por inúmeras variáveis, a saber: a coesão interna do grupo no enfrentamento da questão; o capital simbólico de cada atleta para assumir a liderança do movimento; a posição mais frágil dos que eram vistos como simples coadjuvantes no elenco; caso do lateral direito Toninho, recém promovido da base, o qual, depois de acompanhar Flávio no uso da fita apache no treino, desistiu de usá-la, “temendo qualquer repreensão por parte dos dirigentes”.[10]

A rigor, nem os jogadores de maior prestígio estavam a salvo de retaliações. Por “coincidência”, logo após o episódio da humilhação na porta do clube, Flávio foi posto à margem do elenco, afastado pelo vice-presidente de Futebol, João Boueri, sob a justificativa de estar “saindo da linha”, frequentando as “noitadas”, além de enfrentar problemas financeiros que supostamente impediam-no de se concentrar no trabalho.[11] Uma vez reintegrado ao grupo, ele passaria a liderar o movimento de protesto que a esta altura extravasava os limites das Laranjeiras, despertando a solidariedade de atletas negros de outros clubes, como por exemplo a dos atacantes Fio, do Flamengo, e Silva, do Vasco. [12]      

A apropriação da “moda apache” pelos jogadores negros pegava de surpresa a estrutura racista do futebol brasileiro, desvelando uma articulação insuspeitada em torno de uma questão considerada tabu. O grande ato do movimento estava agendado para o sábado, no Maracanã, na partida do Fluminense contra o Bonsucesso. Se, do ponto de vista futebolístico, ela não suscita maiores interesses, vista sob o prisma do jogo político, ela prometia fortes emoções. Com efeito, o movimento idealizado pelo elenco pretendia utilizar a partida para veicular uma mensagem inequívoca de repúdio contra a “medida discriminatória” implantada nas Laranjeiras. De acordo com a proposta, o time todo deveria entrar em campo, no Maracanã, 22 de maio, usando a “fita apache”.[13]

Não é difícil imaginarmos a aflição dos próceres tricolores. E se além do uso da “fita apache”, os jogadores negros do elenco decidissem se inspirar no exemplo de Paulo César, do Botafogo, e saudar as gerais e arquibancadas com o gesto do Black Power? [14]Sem dúvida alguma, um cenário de pesadelo: no clube mais aristocrático do país, o Fluminense; no principal palco do futebol brasileiro, o Maracanã; uma manifestação de protesto que desnudava o real significado de que se revestia a discriminação praticada nas Laranjeiras.[15] Urgia, portanto, deter o movimento, dissuadir os atletas, coagir as lideranças. E, como se depreende do registro jornalístico feito pelo Jornal do Brasil, as medidas repressivas surtiram o efeito desejado:

O movimento para o uso da fita apache foi forte no início, mas depois perdeu consistência quando Denílson, como capitão do time, ponderou com os demais pedindo para que o episódio da proibição fosse esquecido.[16]   

Dessa maneira, chegava ao fim a “moda apache”. Embora de existência efêmera, ela teve o mérito de mobilizar parte da categoria profissional dos atletas na luta por dignidade, indicando o avanço da tomada de consciência a respeito do racismo na esfera do futebol. Nesse sentido, não resta dúvida, a luta que ela simbolizava não foi esquecida.


[1] Cf. “O sucesso da equipe hippie”, 25 de março de 1971 e “Fla entra na luta de fitinha”, 22 de maio de 1971, ambas as matérias em O Globo Cf. “Paulo César pede que Botafogo venda seu passe”, 5 de janeiro de 1971 e “Botafogo chega no carnaval com jogadores lamentando a desorganização da viagem”, 25 de fevereiro de 1971, ambas as matérias as matérias no Jornal do Brasil.

[2] Cf. “Fla entra na luta da fitinha”, O Globo, 20 de maio de 1971.

[3] Cf. “Hora da fitinha`”, O Globo, 21 de maio de 1971.

[4] Cf. Proibição do presidente deixa o time revoltado”, Jornal do Brasil, 14 de maio de 1971. De acordo com as lembranças do atleta: “Eu fui levar até o portão duas moças que estavam fazendo pesquisas…” Cf. “Flávio, ao sair: ´Eu sou tricolor`”, O Globo, 28 agosto de 1971.

[5] Cf. “Notas de um Urubu”, Henfil, Jornal dos Sports, 18 de maio de 1971. A rigor, Henfil seguia a leitura geral de uma afronta cometida contra a categoria dos atletas profissionais, citando, na charge, episódios envolvendo outros clubes, como, em especial, o América. Mas a referência ao 13 de Maio inseria um dado ausente nas matérias e artigos sobre o ocorrido nas Laranjeiras.

[6] Cf. “Jogadores dedicam a Flávio a vitória sobre o Flamengo”, Jornal dos Sports, 13 de maio de 1971.

[7] Cf. “Moda da fitinha atinge o Flu”, O Globo, 19 de maio de 1971.

[8] Cf. “Flávio treina como titular e fica na reserva amanhã”, Jornal do Brasil, 21 de maio de 1971.

[9] Cf. “A moda como protesto”, Coluna: “Jogo Perigoso”, Jornal dos Sports, 21 de maio de 1971.

[10] Cf. “Flávio treina como titular e fica na reserva amanhã”, Jornal do Brasil, 21 de maio de 1971.

[11] Cf. “Flávio só foi afastado por estar mal fisicamente”, Jornal do Brasil, 13 de maio de 1971.

[12] Para o uso da fita apache por Fio e Silva, ver, respectivamente, “Fio se amarra na fita”, Jornal dos Sports, 22 de maio de 1971; “Andrada só opera amídalas segunda-feira e sábado deve entrar contra Olaria”, Jornal do Brasil, 3 de junho de 1971.

[13] Conforme reportagem do Jornal dos Sports, “Flu não abre mão de Flávio”, 20 de maio de 1971, havia “uma corrente para que o time todo entre de apache”. No mesmo jornal, uma nota publicada na Coluna: “Jogo Perigoso”, 21 de maio de 1971, explicitava a apropriação política da “moda apache” pelos atletas do Fluminense.

[14] Na edição de domingo, 9 de maio, na primeira página, o  Jornal dos Sports publicava a foto de Paulo César, deixando o gramado do Maracanã, fazendo o gesto do punho cerrado. A legenda não esclarece em qual jogo exatamente ocorre a saudação do Black Power, mas, ao que tudo indica, ela se tornou comum durante o Campeonato Carioca daquele ano.

[15] Paulo César não era o único a fazer a saudação do Black Power. A foto estampada no Jornal dos Sports, da comemoração do gol de empate do América contra o Flamengo, no Maracanã, 1 x 1 no Campeonato Carioca, mostra o jogador negro Sérgio Lima com os braços erguidos, mas cruzados sobre a cabeça, e o punho cerrado. Cf. “O gol e a euforia de Sérgio Lima”, 12 de abril de 1971.

[16] Cf. “Zagalo lança Flávio durante o jogo em que Flu terá Didi”, Jornal do Brasil, 22 de maio de 1971.

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Porta dos fundos. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 11, 2022.
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