Quem sou eu para falar de idolatria num programa de pós-graduação que tem o mestre Ronaldo Helal em seu time titular, mas o texto a seguir fala de um ídolo inconteste, pelo menos para os húngaros. Falo de Ferenc Puskás.

Mesmo para quem não está muito antenado com a história do futebol mundial, o nome pode soar familiar. Afinal, a premiação de gol mais bonito do ano, concedida pela FIFA, leva seu nome.

Sempre me interessei muito pela história de Puskás, Kocsis, Bozsik, Czibor e companhia. Estrelas do Honvéd e da Seleção Húngara que maravilharam o mundo na década de 1950. Uma história que mistura futebol e política; talento e ditadura; insubordinação e exílio. Jogadores de um time considerado pelo regime comunista como o “Exército Vermelho da Bola” e que acabaram por se tornar nômades dos gramados.

Puskas
Real Madrid contra Feyenoord 0-5, Kuiver com bola pede assinatura de Puskas, em1965. Foto: Eric Koch/Anefo.

Pós-guerra

Após o término da Segunda Grande Guerra, o governo da Hungria, então parte da “Cortina de Ferro” comunista, decidiu estatizar um modesto clube de Budapeste, o Kispest A.C., onde já atuavam os jovens Jozsef Kocsis e Ferenc Puskás. O objetivo era montar uma das mais fortes equipes da Europa, que também se tornaria a base da Seleção Húngara. E eles conseguiram. Nascia o Budapeste Honvéd F.C.

Os melhores jogadores de todo país foram convocados, ou melhor, obrigados a se incorporarem à nova equipe e os resultados não demoram a aparecer. O Honvéd conquistou o campeonato nacional em 1949, 1950, 1952, 1954 e 1955.  Além disso, o selecionado húngaro foi medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinque, na Finlândia, e campeão da Copa da Europa Central, em 1953.

Foi também em 53 que conseguiram derrotar a Inglaterra no estádio de Wembley pelo incrível placar de 6×3 (3 gols de Hidegkuti, 2 de Puskás e 1 de Bozsik). Pra se ter ideia da grandiosidade do resultado, o English Team nunca havia sido derrotado por um país não britânico naquele templo sagrado do futebol. Não bastasse, a Inglaterra defendia uma invencibilidade de 5 anos (32 jogos). No livro As Melhores Seleções Estrangeiras de Todos os Tempos, o jornalista Mauro Beting define a partida como o amistoso mais importante da história do futebol. Segundo ele, “nenhuma outra partida que não valia nada valeu tanto”.

No bairro judaico de Budapeste essa partida é relembrada todos os dias por um enorme grafite em um muro.

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Um jogo eterno para os húngaros (foto do autor).

O desempenho dos “poderosos magiares”, como eram conhecidos os jogadores húngaros, fez com que sua seleção chegasse como grande favorita na Copa do Mundo de 1954, na Suíça. O esquema de jogo adotado por eles, o 4-2-4, era totalmente inovador e envolvente. Na fase de grupos, fizeram nada menos que 17 gols contra Coreia do Sul e Alemanha Oriental. Nas quartas de final, derrotaram o Brasil por 4×2 e, na semifinal, superaram o Uruguai (então campeão mundial) pelo mesmo placar. Ninguém esperava, portanto que fossem derrotados pela Alemanha Ocidental na grande final. A vitória germânica por 3×2 para sempre vai ser lembrada como o “Milagre de Berna”. Uma derrota para o futebol bonito de se ver (se a liberdade poética me permitir, um tipo de decepção semelhante àquela que sentimos com a eliminação do Brasil para a Itália na Copa de 1982).

Destino incerto

Quando o time do Honvéd estava na Espanha para enfrentar o Athletic Bilbao, pela Liga dos Campeões da Europa, em 1956, tanques de guerra soviéticos invadiram Budapeste para reprimir um movimento revolucionário que defendia a independência da URSS e a retomada da democracia no país. Ninguém da delegação sabia o que fazer, nem qual seria o futuro da equipe. Acabaram sendo eliminados da competição após uma derrota em Bilbao e um empate no jogo de volta, na Bélgica (não havia condições da partida acontecer em solo húngaro).

Como tinham uma licença do governo para permanecerem no exterior até março do ano seguinte, acertaram uma excursão por Itália, Portugal e Espanha, onde aconteceu outra célebre partida: 5×5 com o poderoso Real Madrid. O governo interino húngaro exigiu a volta dos atletas, mas o grupo se rebelou e decidiu continuar viajando. A FIFA foi acionada e decidiu desfiliar o clube, além de ameaçar fazer o mesmo com qualquer equipe que aceitasse jogar contra eles. Foi então que surgiu um convite do Flamengo e os nômades da bola atravessaram o Atlântico e desembarcaram no caloroso e calorento verão do Rio de Janeiro.

O Maracanã foi palco da chamada “partida proibida” e recebeu um enorme público. Na estreia da série de amistosos, em 19 de janeiro de 1957, um resultado surpreendente, o rubro-negro derrotou os húngaros por 6×4. Nos três jogos seguintes, mais descansados e aclimatados, três vitórias dos visitantes. Duas sobre o Botafogo e uma sobre o Flamengo (no Pacaembu). O último e mais incrível amistoso foi contra um combinado Botafogo/Flamengo que reuniu craques como Nilton Santos, Didi, Evaristo Garrincha e Dida. Um inapelável 6×2 a favor dos brasileiros.

Em Caracas, na Venezuela, Flamengo e Honvéd ainda fizeram mais duas partidas, mas a pressão sobre os jogadores húngaros e seus familiares era enorme. O time se desfaz e cada jogador segue seu destino. Puskás, o mais cobiçado de todos vai para o Real Madrid, onde, ao lado de Di Stefano comandaria uma das maiores equipes de futebol de todos os tempos.

O Honvéd foi novamente filiado à FIFA que, aliás, nunca puniu Botafogo ou Flamengo, conforme havia ameaçado. O time húngaro, porém, nunca mais alcançou o mesmo nível anterior. E o mesmo pode se dizer da seleção da Hungria.

Nas pegadas do craque

Ao chegar à Hungria, neste ano de 2023, logo me deparei com a presença da figura de Ferenc Puskás na capital Budapeste, mesmo mais de 15 anos após sua morte. Figura “maldita” nos tempos comunistas, passou a herói nacional com a desvinculação do país com a União Soviética, em 1989.

Antes mesmo de chegarmos à estação central, passamos pelo estádio que leva seu nome. Na verdade, a Arena Puskás, construída no local onde ficava o velho estádio e inaugurada em 2017. A estação de metrô onde desembarcam os torcedores também tem o nome do maior craque húngaro, além de fotos dele, de seus companheiros de Honvéd, da seleção local e de outros atletas húngaros de destaque.

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Estação Ferenc Puskás, em Budapeste (Foto do autor)

Nas lojas de souvenirs também é possível comprar diversos produtos relacionados ao jogador. Camisas da seleção da Hungria, livros, cachecóis, canecas, copos e pratos. Me contive, no entanto, e trouxe apenas um belo livro sobre ele. Bem que queria comprar uma camisa “retrô” do Honvéd, mas não encontrei (meu bolso agradeceu).

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A imagem de Puskás sempre presente e pronta para virar um presente (Foto do autor)

Mas, o mais interessante dessa minha marcação cerrada ao maior jogador magiar da história, foi descobrir um bar/ restaurante que leva seu nome e que mantém expostos alguns itens do acervo do jogador, como taças, bolas e camisas. Nas TVs, além de uma “pelada” do campeonato local, muitas fotos e vídeos da carreira de Puskás. Um prazer devidamente acompanhado de um bom goulash e uma cerveja bem gelada.

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Puskás Gozdu, o restaurante temático do craque (Foto do Autor)
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Quando dois gênios da bola se encontram (Foto do autor)

Um brinde, portanto, a Puskás e ao povo húngaro, que sabe manter viva a imagem de um ídolo não apenas de seu país, mas de todos aqueles que amam o futebol.

Egészségedre! (sim, isso é o nosso tin-tin, em húngaro).

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Rafael Casé

Jornalista e professor universitário. Autor de sete livros sobre o mundo do futebol, mais especificamente sobre a história e ídolos do Botafogo de Futebol e Regatas. E com um novo projeto em andamento, o livro Hoje é dia de Botafogo, a ser lançado no final de 2020.

Como citar

CASé, Rafael. Procura-se um ídolo. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 28, 2023.
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