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Quando a morte chega cedo demais: o rubro-negro Geraldo e o indígena Coaraci

Fabio Zoboli, Elder Silva Correia 9 de fevereiro de 2022

O tema de nossa crônica de hoje faz alegoria a um mito da cultura ameríndia brasileira, o mito fundador do povo indígena amazônico Sataré-Mawé[1]. A fábula narra a estória do indígena Coaraci, um indiozinho que, por sua morte precoce, teve os olhos plantados e deles nasce a planta que dá origem ao guaraná. O personagem da Gávea que contracenamos com o mito indígena é Geraldo Cleofas Dias Alves, uma promessa que iniciou na base do Flamengo fazendo dupla com Zico no meio de campo, nos idos dos anos 1970. A exemplo de Coaraci, Geraldo morreu cedo. Aos 22 anos, padeceu vítima de um choque anafilático quando operado das amígdalas (Geraldo é uma das mortes que a torcida “nunca engoliu”).

O mito tupi-guarani narra que um casal de indígenas, não conseguindo ter um filho, pediu auxílio ao seu pajé, que o orientou a suplicar o primogênito a Tupã (o deus do fogo e da vida).  A palavra Tupã significa “Trovão” e por isso esse deus se manifestava pelo som. O pedido foi concebido e nasceu, assim, o pequeno Coaraci, um presente abençoado da divindade maior. Uma coisa chamava demasiada atenção no pequeno indígena (curumim[2]): seus olhos negros e grandes.

Washington era um jogador do Flamengo, cujo irmão menor vivia em Minas Gerais. Rondinelli (zagueiro do Fla na época), a pedido de Washington, embarca no ônibus na capital carioca e vai buscar o garoto de 15 anos na sua cidade natal, Barão de Cocais. Dias depois, Rondinelli desembarca na Gávea com o menino Geraldo a tiracolo, o qual se inseriria para jogar nas categorias de base do clube. Uma coisa chamava demasiada atenção no pequeno Geraldo: a facilidade e o modo debochado com que jogava futebol. O deboche estava muito ligado ao fato dele jogar cantarolando e assoviando, e por tal característica, era conhecido pelo apodo de “Geraldo assoviador” – um deus da Gávea que se manifestava pelo som.

Geraldo Zico
Geraldo e Zico. Foto: reprodução

O nascimento de Coaraci trouxe muita alegria a seus pais e toda sua tribo. Mas o espírito do mal de Jurupari[3], invejoso da bendição de Tupã, não suportou tal contentamento e decidiu tirar a vida do curumim. Ele então, o espírito das mil formas, tomou o contorno de uma cobra peçonhenta, e num instante de cochilo de Coaraci, o picou letalmente. Quando os pais notaram a falta do menino, a tribo se mobilizou e saiu a procura do curumim. A busca não tardou e, aos pés de uma majestosa e frondosa árvore, o corpo morto de Coaraci foi encontrado. A marca dos dentes da serpente nos pés do indiozinho era a prova cabal de quem o havia matado: Jurupari.

Geraldo iniciou na base do clube em 1969, jogando ao lado de Zico. Uma dupla que encantava as preliminares em dias de jogo do Flamengo. Em 1973 Geraldo começou a atuar pelo profissional e em 1974 ganhou seu único título pelo clube em tal condição, o campeonato Carioca daquela temporada. O camisa 8 era considerado uma das maiores revelações do futebol da década de 1970 e, por este motivo, já vinha sendo convocado para atuar pela seleção canarinho. No Fla havia uma política no departamento médico baseada na extração das amigdalas dos atletas que subiam para o profissional. Zico e Jaime de Almeida tiraram as suas em 1975, porém, Geraldo não os acompanhou por medo. Em 1976 marcaram a cirurgia uma segunda vez e outra vez Geraldo se ausentou receoso. Meses depois, o procedimento é marcado pela terceira vez, e então o atleta se fez presente.

Flamengo 1974
Fonte: reprodução Placar

Para fazer a intervenção cirúrgica Geraldo ficou de fora da viagem do Flamengo, que foi jogar em Fortaleza contra o Ceará, numa quarta-feira à noite. Na quinta pela manhã, ele entrou cedo para a cirurgia, foi anestesiado pelo médico e suas amigdalas foram extirpadas. No entanto, seu corpo não tolerou a anestesia e colapsou, vitimado por um choque anafilático. O elenco do clube escutou a morte de Geraldo pela rádio no hotel da capital cearense naquela fatídica manhã e, imediatamente, retornou ao Rio para o velório do companheiro. Assim como Coaraci, Geraldo faleceu cochilando, picado pela anestesia que seu corpo assimilou em forma de “veneno letal”.

No mito, a tribo entrou em desespero e comoção pela perda do menino Coaraci. Foi quando um trovão caiu estrondosamente no meio deles. O clã Sataré-Mawé se assustou com o raio, pois o céu estava limpo e claro. Foi então que o pajé disse ter entendido ser uma mensagem de Tupã que, através do som do trovão, profetizou: “plantem os olhos do menino e o reguem durante quatro luas com as lágrimas da tristeza”. E assim o fizeram, plantaram os olhos de Coaraci e a mãe do menino o regou com seu pranto durante quatro luas. 

Fechado o ciclo lunar, da terra sai um broto, um broto que virou folha, uma folha que virou arbusto e que se transformou em uma planta que produzia belos frutos vermelhos. Quando cresciam, esses frutos se abriam e se assemelhavam aos lindos olhos de Coaraci. O pajé, ao ver aqueles olhos esbugalhados, piscando dentro daquelas frutinhas vermelhas, deu o nome a elas de guaraná. Depois ele colheu as frutas e colocou dentro de um prato e, com um pilão, produziu uma pasta espessa. Quando secou a pasta, ele ralou a mesma na língua seca do peixe pirarucu até decompor o mesmo em formato de pó. O pajé, desse modo, misturou o pó em água e adoçou com mel transformando a bebida num energizante para a tribo. Em torno da fogueira consagraram a bebida/guaraná que trazia dentro de si a alma de Coaraci. Esse foi o presente de Tupã para recompensar a tribo pela morte de Coaraci.

O triste e prematuro falecimento de Geraldo aos 22 anos (em agosto de 1976) causou comoção no país e, principalmente, entre os jogadores do Flamengo. Em homenagem a Geraldo foi feito um jogo entre a seleção brasileira campeã da Copa de 1970 contra a equipe rubro-negra. O Flamengo venceu a contenda por 2 x 0 num maracanã lotado e emocionado. Daquele dia em diante, durante todo o resto do ano de 1976, o clube carioca jogou de calção preto em luto a Geraldo.

A fatídica perda de Geraldo foi chorada por um longo ciclo por seus amigos jogadores, pois na equipe de 1976 já atuava toda uma geração que, após o ciclo de quatro anos, começou a ganhar muitos títulos. Os quatro anos da morte de Geraldo (1976-1979) inauguram outro ciclo de quatro anos (1980-1983) subsequentes de uma era abençoada por diversos títulos. A conquista do primeiro campeonato brasileiro em 1980 pelo clube é tida como um marco histórico. O ano de 1981, por sua vez, reafirmou esse marco na medida em que o clube também ganhou a libertadores e o mundial de clubes. Nos anos de 1982 e 1983, mais dois títulos de campeão brasileiro foram conquistados. Acredita-se que tudo isso tenha sido obra da força da alma de “Geraldo guaraná”.

“Geraldo assoviador” era fã de música, vivia cantarolando/assoviando e dançando um sem-fim delas, mas sua preferida era uma de Billy Paul intitulada “YOUR SONG” (ironicamente o título significa “SUA MÚSICA”). Parte da letra diz assim: “Se, se (se), se estivesse em cima de um telhado chutaria longe meus sapatos, oh sim (Chutaria longe meus sapatos) … Vou escrever um pouco de versos para afastar minhas tristezas…”. Em se tratando de Geraldo, poderíamos traduzir a letra ao idioma “rubro-negro carioquês”: “Se, se (se), se estivesse no vestiário do Maracanã eu colocaria minhas chuteiras, oh sim (Colocaria minhas chuteiras) … Vou entrar em campo e fazer versos com a bola… afastar a tristeza de uma nação que sempre foi a música que mais dancei”.

Tupã:  faça cair um raio no Maracanã em meio a tribo flamenguista em dia de jogo; personifique Geraldo, ao menos por um dia. Ele não precisa entrar em campo e jogar futebol, basta ficar na arquibancada “assoviando” alegremente com sua torcida.

O Coaraci de nossa crônica também é alegoria a outros indígenas (e de toda a sua cultura ancestral), que a cada dia morrem no Brasil por “choque anafilático” de uma cultura branca e ocidental, que “cochila anestesiada”, destilando o “veneno” de sua prepotência. A estes indígenas: Que Tupã, e todos os demais espíritos encantados da floresta, os protejam!

Notas

[1] Na língua tupi-guarani Sateré quer dizer “lagarta de fogo” e Mawé significa “papagaio inteligente e curioso”. Esta tribo é tida como a criadora da cultura do guaraná, na medida em que domesticaram a trepadeira silvestre Paullinia Cupana e criaram o processo de beneficiamento do que hoje conhecemos como guaraná.  

[2] Na língua tupi-guarani curumim significa: rapaz, menino, criança de pouca idade.

[3] Jurupari é um personagem mitológico dos povos indígenas da América do Sul. Também é conhecido como Iurupari e Yurupari. No seu livro Amazônia: mito e literatura, Marcos Federico Kruger menciona que há uma dificuldade ao personificar Jurupari, pois ele tem a dupla e antitética configuração de ser simultaneamente deus e demônio. No caso do mito fundador do guaraná, ele age a partir de seu espírito maligno.

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Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Como citar

ZOBOLI, Fabio; CORREIA, Elder Silva. Quando a morte chega cedo demais: o rubro-negro Geraldo e o indígena Coaraci. Ludopédio, São Paulo, v. 152, n. 10, 2022.
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