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Quando Pacaembu é Guaianases

Enrico Spaggiari 24 de julho de 2017

Em 2011, acompanhei todo o calendário de participação das equipes da escolinha de futebol do Botafogo de Guaianases, clube de várzea da Zona Leste de São Paulo, em campeonatos e torneios de abrangência municipal que promovem oportunidades de circulação às crianças e adolescentes de Guaianases e bairros próximos. Os campeonatos evidenciam a importância da circulação pelos espaços urbanos propiciada por dinâmicas futebolísticas que estão entrelaçadas às experiências vividas por crianças e jovens em seus espaços de moradia, estudo, trabalho, lazer e sociabilidade. “Jogar mais” implica não só alargar momentos de aprendizado, como também ter mais chances de ser observado. Os campeonatos dão visibilidade para um público específico: empresários, agentes, olheiros e dirigentes de clubes. A cidade dos futebolistas é recortada e ordenada de acordo com os laços sociais produzidos e reproduzidos cotidianamente por meio do futebol e seus espaços. A construção das redes de relações centradas no esporte, por meio da participação em competições, amistosos e peneiras, possibilita a ampliação dessas redes para o bairro e a cidade.

Um destes campeonatos, a Taça Cidade de São Paulo, organizada pela Secretaria Municipal de Esportes, Lazer e Recreação (SEME), o clube inscreveu três equipes na competição: Mirim (sub12), Infantil (sub14) e Juvenil (sub16). Enquanto a equipe sub12 não conseguiu fazer uma boa campanha, sendo eliminada logo após a primeira fase, as outras duas categorias tiverem um bom desempenho. Na primeira fase, jogaram a maioria das partidas no campo do Botafogo. A partir das quartas de final, jogaram no campo do Parque Anália Franco (antigo CERET), parque e clube público no bairro do Tatuapé, e num campo de grama sintética próximo ao autódromo de Interlagos. Em jogos muito disputados, as equipes sub14 e sub16 alcançaram as finais, que seriam disputadas no Pacaembu no primeiro final de semana de novembro.

A final da equipe sub16 foi num sábado. Desde as sete da manhã, a área do campo do Botafogo já estava ocupada por pais e familiares dos alunos que aguardavam a chegada dos ônibus. Programada para 10h, a partida final da categoria sub16 concentrava as atenções dos treinadores, dirigentes e familiares dos alunos da escolinha. Ainda nem tínhamos saído de Guaianases e a av. Radial Leste já estava parada. Começou uma pequena agitação dentro do ônibus, pois os próprios jovens reclamavam do caminho escolhido pelo motorista e pediam para ele pegar a primeira saída. No caminho, muita bagunça e animação. Na parte da frente, comissão técnica e pais, na parte de trás, a “turma do fundão”, composta pelos jogadores e alguns colegas do sub14. Aproveitei para fazer várias filmagens. Os jovens conversavam sobre as expectativas para a final, como seria jogar no Pacaembu, mas também sobre garotas, aparelhos eletrônicos, modelos de chuteiras etc. Questionavam, ainda, qual seria a escalação inicial, que ainda não fora revelada pelo técnico.

Campo de várzea em Guaianases. Foto: Enrico Spaggiari
Campo de várzea em Guaianases. Foto: Enrico Spaggiari.

Mesmo fugindo do trânsito da av. Radial Leste, nosso ônibus quase chegou atrasado. Saímos às 7h45 e chegamos às 9h15, situação muito conhecida dos paulistanos e especificamente dos moradores de Guaianases, que enfrentam o trânsito das vias de acesso da Zona Leste para o centro da cidade. Na chegada, muita correria. Os estagiários da SEME, que ajudavam na organização, falaram que a equipe só teria tempo para vestir o uniforme e fazer um rápido aquecimento.

Nos vestiários, os jovens jogadores estavam nervosos e admirados. Observavam cada detalhe do vestiário, o mesmo utilizado pelos jogadores de clubes profissionais que atuam no Pacaembu. O grupo formou um círculo e fez uma oração, rezando o Pai Nosso e a Ave Maria. Antes de subir ao campo, muitos abraços, gritos de incentivo. Um dos garotos procurou motivar seus companheiros de time: “Vamos entrar com tudo! O jogo vale muito para a gente! Vamos lutar até o final, com dedicação, empenho! Somos melhores que eles! Vamos ganhar essa porra! Hoje, Pacaembu é Guaianases!”.

Pacaembu é Guaianases quando as crianças e jovens se relacionam com a cidade e seus múltiplos atores sociais, predominantemente, por meio do futebol. Observar as práticas, itinerários e formas de mapear das crianças e jovens permite compreender os desenhos alternativos de articulação e circulação dos futebolistas em suas inserções na vida citadina. O trânsito por diferentes territórios relacionais, que abarcam as interações vivenciadas em espaços relacionados ao “jogar bola” em distintos planos do sistema futebolístico, catalisa múltiplas experiências urbanas e proporciona oportunidades para criar relações com o outro e estabelecer modos particulares de uso do espaço público.

Além de potencializar situações de interação e encontro, a circulação reafirma o direito à mobilidade na cidade daqueles que vivenciam um distanciamento físico e simbólico, com poucas oportunidades de transitar por regiões mais centrais e turísticas. Trata-se de um modo de inclusão na vida urbana, de estar na cidade, num processo constante de integração das periferias afastadas das centralidades da cidade. Diante das contradições do espaço urbano, vivenciam um cotidiano de deslocamentos que problematiza dicotomias citadinas como centro/periferia e trabalho/lazer. A mobilidade dos jovens futebolistas coloca centros e periferias em movimento, bem como tensiona as linhas de desigualdade das fronteiras geográficas e simbólicas que os apartam do restante da cidade, demonstrando as porosidades do espaço urbano. Se os acessos a outras regiões são cingidos pelas dificuldades de circulação pela cidade em que vivem os moradores dos bairros pobres, por meio do futebol, os jovens exploram os espaços de uma cidade desconhecida, alargam suas redes e ampliam suas referências.

Nesse sentido, a circulação revela-se central no processo de produção de jovens futebolistas. Mas o futebol não é apenas um projeto de transformação das experiências das crianças e jovens moradores de bairros periféricos da Zona Leste de São Paulo com vistas a alcançar a carreira de jogador; trata-se de um espaço privilegiado de trocas acionado para responder às questões afrontadas cotidianamente. O contato com outros espaços, campos e instituições esportivas da cidade fazem os jovens questionar os próprios equipamentos e espaços que utilizam em Guaianases. Contudo, para além de uma conjectura sobre como ocupam o tempo livre num espaço urbano marcado pela ausência de equipamentos de lazer, a circulação permite refletir sobre como, por meio da prática do futebol, as crianças e jovens garantem o direito à cidade, ainda que parcialmente.

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Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. Quando Pacaembu é Guaianases. Ludopédio, São Paulo, v. 97, n. 24, 2017.
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