Quem foi para a rua? – Alguns significados da propaganda da Fiat
Dada a onda de protestos da última semana em meio à Copa das Confederações, cremos ser – mais uma vez – fundamental reafirmar o futebol enquanto fenômeno social total, como afirma Mauss:
Nestes fenômenos sociais totais, como propomos chamar-lhes exprimem-se ao mesmo tempo, e de uma só vez, todas as espécies de instituições: religiosas, jurídicas e morais – e estas políticas e morais ao mesmo tempo; econômicas – e estas supõem formas particulares da produção e do consumo (Mauss, 2001, p. 52).
Em tempos de vida virtual em redes sociais, de mobilização social em torno do futebol e enaltecimento do nacionalismo, o lema “Vem pra rua” se espalhou rapidamente tal qual um vírus. Elaborada para servir de trilha sonora de uma campanha de uma montadora de automóveis para a Copa das Confederações, a música (ver o comercial no final do texto) foi rapidamente apropriada pelas manifestações que explodem por todo o país há cerca de uma semana.
Inicialmente organizados pelo Movimento do Passe Livre – SP, os protestos que reivindicavam o retorno da tarifa de ônibus, trem e metrô ao preço original (R$3,00) tomaram conta da cidade de São Paulo onde os manifestantes convocavam os transeuntes e observadores a aderirem à paralisação embalados pela canção:
Vem vamos pra rua / Pode vir que a festa é sua / Que o Brasil vai tá gigante / Grande como nunca se viu / Vem vamos com a gente / Vem torcer, bola pra frente / Sai de casa, vem pra rua / Pra maior arquibancada do Brasil / Se essa rua fosse minha / Eu mandava ladrilhar / Tudo em verde e amarelo / Só pra ver o Brasil inteiro passar / Vem pra rua / Porque a rua é a maior arquibancada do Brasil
Dessa forma, a subversão da ordem e dos sentidos propostos pelo comercial ocorria pela primeira vez. Em comum às duas cenas, restaria apenas o dispêndio de energia por meio da experiência corporal. Se o vazio das ruas retratadas no comercial seria ocupado pelos torcedores brasileiros em um misto de euforia e ufanismo nacional que produzia um amálgama harmônico entre automóveis e pessoas, nas ruas da cidade em que foram realizados os protestos era o congestionamento gerado pelos carros que deveria dar lugar ao conjunto de reivindicações sociais capitaneadas pela exigência da redução da tarifa do transporte público, devolvendo às vias asfaltadas a sua característica original de espaço de disputa política e de manifestação das tensões entre os diversos grupos sociais. Em lugar da uniformidade das bandeiras verde e amarela da televisão, surgiam a heterogeneidade das mais diversas bandeiras – de partidos políticos ou não – a favor da ampliação dos direitos sociais. Os torcedores e suas tensões estavam nas ruas.
Durante o Quarto Ato pela redução da passagem, a truculência policial – prática contínua nos estádios e nas manifestações populares contra o governo – mostrou que não seria apenas a trilha sonora do comercial que abandonaria o universo estritamente futebolístico e ocuparia às ruas. Em cobertura semelhante às ações policiais nas partidas de futebol, a Folha de S. Paulo categorizava até quarta-feira retrasada (12/06/2013) os manifestantes como vândalos e o movimento como expressão da desordem a ser combatida. Na quinta-feira, apresentando a foto do policial acuado e ensanguentado apontando a arma para o leitor sob a manchete de que o governador Geraldo Alckmin prometia uma maior repressão estatal, o jornal sobe ainda mais o tom no seu editorial:
Oito policiais militares e um número desconhecido de manifestantes feridos, 87 ônibus danificados, R$ 100 mil de prejuízos em estações de metrô e milhões de paulistanos reféns do trânsito. Eis o saldo do terceiro protesto do Movimento Passe Livre (MPL), que se vangloria de parar São Paulo –e chega perto demais de consegui-lo. […] São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados (Folha de S. Paulo, 13/06/2013, p.A2, grifo nosso).
No entanto, em menos de 24 horas a vítima virou algoz como em um passe de mágica. Diante das fotos em que um policial espancava um casal de namorados e da repórter do jornal Giuliana Vallone atingida por uma bala de borracha no olho, agora era a força policial a responsável pela desestruturação da ordem. Que a ação policial que feriu a profissional do jornal influenciou o teor da abordagem no dia seguinte – muito mais simpática aos manifestantes – não há dúvidas. Mas a explosão no número de manifestantes que participaram do Quinto Ato contra o aumento da tarifa dos transportes públicos não pode ser atribuído à imprensa escrita. Foi por meio do Facebook e das demais redes sociais que uma indignação contra a repressão ao direito de livre manifestação se alastrou a ponto de colocar na rua cerca de 100 mil pessoas no Quinto Ato contra o aumento da tarifa, ocorrido a partir do Largo da Batata.
No evento da segunda-feira (17/06/2013), a ordem e os sentidos dos acontecimentos seria subvertida mais uma vez. O Largo da Batata, que no início só contava com a presença maciça do policiamento e dos manifestantes dos partidos políticos de esquerda, via a “população civil” se retirar lentamente do local como se esperasse a tragédia anunciada. Seria uma partida de torcida única. O número de policiais intimidava, assim como a declaração do governador Geraldo Alckmin que o contingente da tropa de Choque seria reforçado. No entanto a passeata pode prosseguir tranquila por todo o trajeto. A princípio, a euforia e o alívio de não sofrer agressão policial enebriava os sentidos a ponto de gerar um encantamento diante da massa. Contudo, com o passar do tempo os elementos mais sombrios do universo do futebol tornaram-se mais visíveis.
Se, aparentemente, o governo havia se rendido diante da mobilização popular, a ausência completa de policiamento ao decorrer do protesto sob o pretexto de não reprimir os manifestantes era o argumento perfeito para um futuro choque de ordem diante de uma eventual explosão de violência. O recrudecimento aos moldes fascistas estava arquitetado. O esvaziamento do espaço público tinha como objetivo permitir que os insatisfeitos de sempre caminhassem pelas ruas desertas com a sensação de vitória como nunca tiveram.
Com a partida da manifestação, ocorreu o inchaço do bloco e surgiram diversos agrupamentos de manifestantes que, embora pouco tivessem em comum, buscavam um elemento que agregasse a todos. Tal qual o processo de setorização/sectarização ocorrida nos estádios – que separa os indivíduos de acordo com a sua renda – as ruas mostravam-se fragmentadas na medida em que a multidão carregava as mais diversas bandeiras, agora conflitantes entre si. Dessa forma, aos poucos, iniciava-se a cooptação da mobilização original. Os objetivos concretos da luta original que visava dar visibilidade aos invisíveis (a redução da tarifa e o futuro passe livre) dava lugar à demandas por demais abrangentes como a luta contra a corrupção, contra a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, contra a já famosa PEC 37, assim como a defesa da retirada de políticos do poder.
Tal inversão de sentido acabava por neutralizar o potencial reivindicatório inicial da manifestação e não demorou para que a busca pelo discurso homogêneo encontrasse seu inimigo. Bandeiras do Brasil pipocavam na mesma medida em que aumentava o coro pedindo para que as bandeiras dos partidos políticos fossem abaixadas. A massa encantava-se com si mesma e não tinha mais condições de identificar o(s) seu(s) rival(is) com exatidão. O ufanismo nacionalista tão característico das competições futebolísticas (e esportivas em geral) era a saída para que o bloco esquizofrênico não se dividisse no meio da Av. Faria Lima pois devolvia o sentimento de pertencimento a todos os envolvidos. Ingenuidade seria avaliar que essa polarização ocorrida não tivesse relação direta com o momento histórico em que vivemos e com o universo do futebol e suas tensões.
Em lugar da rivalidade torcedora proposta por meio da apropriação da música “Vem pra rua” realizada pelos manifestantes do Movimento Passe Livre, o protesto de segunda-feira passada abraçava novamente o ideal de união nacional sugerido pelo comercial da montadora de automóveis. O destaque para a ação propriamente dita, o encantamento com a experiência corporal em si mesma causado em pessoas que haviam ido à uma manifestação pública pela primeira vez, a expressão de anseios dos mais diversos e difusos de forma que não ameaçassem a unidade do bloco popular e a diluição de demandas sociais que exigem uma reorganização do tecido social no meio do coro da multidão restaurava o clima de festa nacional e abria a Caixa de Pandora. Mas como é próprio das disputas esportivas, o resultado da partida ainda não está definido.
Referências:
MAUSS, Marcel (2001). Ensaio sobre a dádiva. Lisboa, Edições 70.