Em meados de março, a nadadora estadunidense Lia Thomas ganhou a prova de 500 jardas (cerca de 460 metros) do Campeonato de Primeira Divisão da Associação Atlética Universitária Nacional (NCAA), dos EUA, com um tempo de 4’33”24, apenas 1.75 segundos à frente de Emma Weyant, a segunda colocada. Até aí, sem novidades: mais uma boa marca no esporte universitário daquele país.
Mas, finalizada a prova, uma polêmica brotou dos bastidores da competição. Lia é uma mulher trans e, segundo suas concorrentes diretas, todas mulheres cisgênero, ela levou vantagem por ter uma “biologia masculina”.
O problema aqui é que, mais uma vez, o esporte embaralha o bom senso, pois suas categorias competitivas assentam-se em diferenças sexuais. Lia tem uma identidade transgênero e as outras atletas estão negando-lhe esta possibilidade de existência, a partir do binarismo (homem/mulher) que impera no esporte.
Uma carta foi endereçada a Ivy League, que reúne as 8 melhores e mais prestigiadas universidades privadas dos Estados Unidos. As 16 atletas que a redigiram não a assinaram. Apenas repetiram insistentemente o argumento de que elas eram “mulheres biológicas” de fato e que contra Lia Thomas era impossível ganhar.
Ora, o que essas anônimas atletas querem dizer com “mulheres biológicas”? Será que se iludem pensando que a presença de vagina e órgãos reprodutores de um corpo de mulher as definem? Ou será que consideram que, por serem “mulheres biológicas”, elas têm idênticos níveis de hormônios circulantes no corpo?
Infelizmente, quem pensa o mesmo que elas (ou seja, que “mulheres biológicas” possuem iguais órgãos reprodutores e mesmos níveis hormonais) está bastante equivocado. Não existe “pureza” de condição e as taxas hormonais (e de outras substâncias) variam de um corpo a outro, mesmo entre mulheres. E isso vale para “homens biológicos” também. Eu não tenho a mesma taxa de testosterona que meu irmão, por exemplo.
Um argumento na carta, no entanto, deve ser visto com cautela: elas pediram regras mais rigorosas para a participação de mulheres trans em esportes de elite. Tal argumento não é novo, mas expõe duas facetas perigosas em dias atuais de ondas globais de conservadorismo.
A primeira é a afirmação tácita sobre a “verdade do sexo”, isto é, que mulheres cisgênero são “biológicas de fato”, sendo as detentoras do direito de competirem em arenas esportivas e, apenas e tão somente, entre elas.
A segunda é decorrente da reiteração do fator biológico como definidor. Ou seja, o termo “mulheres biológicas” invalida e nega a identidade de mulheres transexuais, deixando claro que essas últimas não são realmente mulheres.
Uma questão, então: quem é e quem não é uma mulher? Se houve um ganho lá no início dos debates feministas, que deram origem aos Estudos de Gênero, este é o caráter não natural (e, portanto, social) do que se reconhece como uma mulher. É famosa a frase de Simone de Beauvoir que escreveu “não se nasce mulher, torna-se!”.
Aqui no Brasil vivemos algo parecido com o episódio da entrada profissional de Tifanny Abreu na equipe Vôlei Bauru, em 2017. E apesar de muita falação sobre o caso, percebeu-se que outras jogadoras, notadamente Tandara Caixeta, tinham ataques ou arranques mais potentes do que os de Tifanny.
A situação de Lia Thomas e de outras mulheres trans em esportes de alto nível noutras partes do mundo (como as africanas velocistas) mostram-nos que estamos diante do que eu chamaria de especulações cisgênero. Isto é: opiniões infundadas de senso comum, que propagam suas verdades sobre o sexo como ele está num corpo.
Há inúmeros fatores que devemos considerar quanto tomamos o caso de um corpo trans (de mulher ou homem) no esporte. Ao invés de criticarmos sua presença, talvez devamos questionar nosso sentido de normatividade.
Tomar parâmetros cisgênero do que é uma “mulher biológica” e um “homem biológico” – para usar duas expressões simplórias que estão nas falas –, para decidir pela exclusão de mulheres e homens trans dos espaços esportivos é algo cientificamente questionável.
No início dos anos 1990, Michael Warner intitulou um livro que virou clássico pela proposição de que minorias sexuais postulariam novas formas de ocupar a sociedade e de fazer política. Seu título, Fear of the Queer Planet, indagava sobre quem tem medo de um “planeta queer”, ou de um planeta cheio de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, pessoas trans e demais?
Diante disso, nada mais atual que o questionamento de Warner: quem tem medo de Lia Thomas e de mulheres e homens transgênero propondo novas formas de estar no esporte?