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Traumas coletivos e o racismo no esporte

Ricardo Pinto dos Santos 20 de novembro de 2017

Em geral, o racismo no esporte é compreendido de forma equivocada. Na verdade, rotineiramente, salvo para as vítimas, as atitudes racistas vivenciadas no campo esportivo são encaradas como brincadeiras ou, como dizem alguns, são coisas do jogo que, quando proferidas, não tornam ninguém um racista.

De forma objetiva, essa compreensão é bem eficiente para esvaziar o fenômeno e os seus desdobramentos legais e sociais. Nesse contexto, assistimos o crime de racismo se travestir em qualquer coisa bem distante da gravíssima violência que ele, efetivamente, representa. Quase sempre enquadrado como injúria racial, onde a pena é menor e os danos facilmente absorvidos, o crime de racismo no Brasil, especialmente no esporte, se torna quase que um crime impossível.

Tentando encarar o desafio de expandir a nossa compreensão acerca desse fenômeno e, de algum modo, demonstrar o quanto somos condescendente com o crime de racismo, resolvi aproximar esse tema aos novos estudos denominados: pedagogia do ensino dos traumas coletivos.

Com ênfase inicial no Holocausto, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Karl Schurster, em texto publicado em 2016[1], apresentam essas novas análises e, principalmente, revelam uma demanda urgente em revisitarmos os estudos realizados sobre o tema e, sobretudo, a forma de ensinar esse fenômeno nos diversos níveis escolares. Dessa forma, enquanto ferramenta de ensino, a proposta visa combater a violência e as diversas manifestações de ódio presentes no cotidiano social.

Ainda que o foco inicial seja o holocausto, os estudos dos traumas coletivos se aplicam perfeitamente ao racismo enquanto fenômeno que atingiu um grupo especifico da sociedade e que, dia a dia, continua sofrendo com os reflexos do seu passado. No caso do racismo, no Brasil, ainda possuímos alguns agravantes que são, em geral, difíceis de serem superados sem uma reestruturação completa na forma de ensinar e no conteúdo ensinado sobre o tema.

Como sabemos o racismo é um tema pouco estudado no Brasil. Quase sempre tratado de forma periférica nas escolas e universidades, assim como ocorre com o holocausto que é visto na periferia do estudos da Segunda Guerra Mundial, o racismo acabou se tornando um fenômeno pouco explicado e, consequentemente, pouco entendido.

Quando aproximamos esse tema do esporte isso se torna ainda mais grave, visto que, quase sempre, as manifestações esportivas estão imersas naquilo que definimos como sendo o espaço do “não sério” e, principalmente, seguem sendo definida por um perspectiva completamente romantizada.

Nesse sentido, há sempre a desculpa de que o que se faz em campo/arquibancada, diante de suas especificidades e sendo um lugar de catarse, não devem ser levados tão a sério. Tudo, no final, não passaria de um ação momentânea sem desdobramentos maiores.

Esse trato peculiar sobre o tema é visto nos desdobramentos dos casos de racismo no esporte. Apenados, quase sempre, de forma branda, os que agridem não compreendem a dor do “outro”, tampouco a gravidade da sua violência. Via de regra, os agressores se escondem sobre a desculpa de que “não são racistas” e que foi apenas um momento quente do jogo.

racismo

Sobre isso, em seu texto, Silva e Schurster trazem uma reflexão importante sobre a experiência alemã que pode nos ajudar a trilhar nossos primeiros passos nessa nova tentativa de aprofundar sobre o racismo. Gitta Sereny (historiadora, austríaca, 1921-2012), citam os autores, revela em seu livro, Trauma Alemão. Experiência e reflexões, que “ foi através de um melhor entendimento sobre o idealismo e a capacidade de uma determinada tirania de perversão dos instintos humanos, que conseguiu chegar a uma definição do ‘trauma alemão’”. Ou seja, explicam os autores, o “trauma alemão teria sido capaz de causar e deixar profundas feridas com as quais as futuras gerações do processo histórico tiveram e ainda têm, para o bem e para o mal, a obrigação de lidar”.

A ideia de um passado que não passa é fundamental para a compreensão desse sistema onde se distanciam aqueles que sentem e sofrem com a dor e aqueles que agridem e a negam o dano. No Brasil, como sabemos, “não reconhecemos” o racismo porque acreditamos que ele ficou no passado. Ademais, há um esforço brutal em negar as consequências e, fundamentalmente, as responsabilidades sobre ele.

E isso é facilmente explicável, vejamos: como quase sempre atrelamos os estudos sobre o racismo ao tema escravidão e pós-escravidão (aqui até os anos de 1930), dessa forma, conseguimos afastar nesse tempo histórico as nossas relações e conexões com esse fenômeno social. Assim, parece muito bem resolvido uma renúncia em revisitar o tema.

Talvez por isso, na maior parte dos casos de racismo no Brasil, encerramos o debate com o enquadramento dos fatos como injúria racial. Pela sua natureza jurídica, a injúria são “apenas” palavras proferidas que acabariam se encerrando nelas mesmas. Nesses casos, não se compreende a continuidade da violência estrutural na qual a injúria está inserida. Ou seja, retiramos o racismo que estruturou a injúria e resolvemos a questão para seguirmos em frente.

Quando vamos debater o racismo no esporte contamos ainda com outro desafio. Cotidianamente, definido a partir de uma perspectiva estéril e romântica, qualquer fenômeno que afete essa estrutura são consideradas desvios do esporte e não parte dele. Assim, como ocorre com a análises apressadas acerca da violência no esporte, que busca rapidamente defini-la como algo externo ao campo esportivo, o racismo também é um desses fenômenos que nada tem haver com o esporte.

Enfim, já passou da hora de reconhecermos o racismo no esporte como um fenômeno bem mais complexo e grave do que tratamos hoje. Do contrário, de nada vai adiantar times entrando em campo com faixas dizendo “não ao racismo”, quando, na verdade, eles não sabem nada sobre o tema. Igualmente, de nada vai adiantar respostas apressadas aos eventos de racismos no esporte, se elas não vierem substanciadas de uma compreensão mais ampla, realista e corajosa sobre o tema. Em síntese, precisamos falar seriamente sobre o racismo no esporte.

[1] SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. SCHURSTER, Karl. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 42. N.2. p. 744-772, mai-ago 2016.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ricardo Pinto

Doutor em História Comparada - PPGHC - UFRJ - autor de diversos livros, dentre eles: ENTRE RIVAIS - Editora MAUAD.

Como citar

SANTOS, Ricardo Pinto dos. Traumas coletivos e o racismo no esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 20, 2017.
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