¡No me hables mal del Pibe!, Disse o amigo argentino na mesa ampla em um bar do bairro Cidade Norte, em Hannover, Alemanha, onde eu morava em 1996. Respondia a uma brasileira que lhe provocara evocando a dependência de Diego Maradona à cocaína. Estava posta a velha rivalidade, sempre revivida, entre nós e os hermanos. Rivalidade que pode ser graciosa e animada quando não deriva em insultos e incompreensões. Um casal argentino com o filho pequeno, amigos pessoais muito queridos para mim, foi ofendido no metrô do Rio de Janeiro por policiais brasileiros. Era 2014, dia de final de Copa e a seleção dos vizinhos acabara de ser derrotada pelo time alemão.

Faz parte da rivalidade, em sua versão estúpida, tripudiar sobre Maradona, desabilitando-o como pessoa, ídolo, jogador e técnico de futebol, conforme a conveniência. Do outro lado da fronteira ele permanece o ídolo que sempre foi, desde que surgiu de forma avassaladora no Argentinos Juniors e logo foi ser ídolo no Boca Juniors. Aos dezessete anos esteve entre os quarenta inscritos para a Copa da Argentina, em 1978, mas não figurou no plantel final de Cesar Luis Menotti, mesmo tendo sido relacionado antes para dois amistosos preparatórios. Do Boca para o Barcelona e de lá para o Napoli, o grande momento. Depois, o Mundial de 1994, depois de já ter cumprido suspensão por uso de cocaína. Nos Estados Unidos, sua última Copa como jogador, o debacle de ser flagrado no antidoping por uso de efedrina presente em um medicamento usado para perder peso depois da longa inatividade.

A primeira vez em que ouvi falar de Maradona foi em 1979, quando os argentinos venceram o Campeonato Mundial de Juniors, no Japão, com uma equipe liderada por ele e pelo decisivo artilheiro Ramón Díaz, ídolo do grande rival do Boca, o River Plate. Dois anos antes eu vira a seleção brasileira alcançar o terceiro lugar no mesmo campeonato, que fora disputado na Tunísia, depois de perder a semifinal nos pênaltis, por cinco a três. O triunfo no campeonato, que no Brasil nunca valeu muito quando vencido pela nossa seleção, foi muito celebrado na Argentina, talvez na esteira do triunfo local da seleção adulta no ano anterior. A conquista recebeu foto e chamada de capa nos jornais portenhos. De lá para cá o valor não diminuiu, ao ponto de o principal técnico de las inferiores lá, José Pekerman, ter chegado à seleção principal, inclusive em um Mundial. Ele é hoje o atual responsável pela seleção colombiana.

Grafite de Maradona em muro no bairro de La Boca. Foto: Wagner Fontoura (CC BY 2.0).

Logo, Maradona chegou à seleção principal e brilhou na Copa América do ano seguinte. Lembro-me de um lance singular em seus primeiros jogos como titular da seleção principal. Dentro da grande área livra-se do marcador e vai à linha de fundo, mas está pela direita e teria que cruzar com o respectivo pé, com o qual pouco tratava a bola. De trivela, sobre a linha, de pé esquerdo para o gol de cabeça de Ramón Díaz. Incrível a velocidade e habilidade empregadas.

No mesmo ano de 1979, em amistoso comemorativo ao primeiro aniversário do título mundial conquistado um ano antes, os argentinos enfrentaram uma seleção “do resto do mundo” que levava o escudo da FIFA. Era praticamente o mesmo time campeão, mas com Maradona e alguém mais entre os titulares. O astro que envergava a camisa 10 marcou um golaço contra o arqueiro brasileiro Leão. No segundo tempo, com a entrada de Zico e Toninho, lateral do Flamengo e da seleção do Brasil, o jogo virou para 2 a 1, um dos tentos do grande craque rubro-negro que envergava nesse dia a incomum camiseta 14.

Maradona não fez uma boa Copa do Mundo da Espanha, em 1982. Ficou marcado, inclusive, por uma falta violenta em Batista, do Brasil, já no fim da partida que resultou em derrota argentina por 3 a 1. O bom volante do Internacional de Porto Alegre não pode jogar a partida seguinte, fatídico jogo contra a Itália, o Desastre do Sarriá. Uma defesa mais bem protegida por Batista teria evitado algum dos gols de Paolo Rossi?

No Mundial seguinte, que deveria ser disputado na Colômbia, que em função da violência renunciou à condição de sede, e para o qual o Brasil também se candidatou, Maradona foi um pouco mais que o Soberano. Nos estádios do México, onde o Brasil fora tricampeão do mundo com a seleção dos sonhos de 1970, El Diez fez o gol mais bonito de todas as Copas, driblando metade do time inglês depois de sair de seu próprio campo. Se o futebol não pode ser entendido sem as narrativas de todo tipo sobre ele, vale a pena escutar a de Victor Hugo, o uruguaio que ajudou a imortalizar o gol dos gols em Mundiais.

Antes o craque fizera outro, com la mano de Dios, fazendo unir Comédia e Tragédia em uma mesma catarse. Argentina e Inglaterra não mantinham relações diplomáticas naquele momento, situação motivada pela Guerra das Malvinas quatro anos antes. De resto, final vencida, taça entregue ao capitão, recepção de Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito depois da última ditadura, no balcão da Casa Rosada frente a uma multidão na Praça de Maio – a mesma que frequentam, até hoje, as Mães e Avós de desaparecidos políticos.

Em 1990 eu estive em Napoli para participar de uma competição de atletismo. O time local, campeão nacional e da Supercopa da Itália naquele ano tinha em Maradona o ídolo dos ídolos. Como grande coadjuvante, Careca, o mortífero centroavante revelado pelo Guarani de Campinas campeão brasileiro de 1978, e que atuara com brilho também pelo São Paulo. O brasileiro conta que para saírem a jantar, havia que reservar um restaurante para a madrugada, ou os tiffosi napolitanos não deixavam Maradona caminhar. A dupla infernal de atacantes se apresentaria em campos adversários na Copa da Itália, no mesmo ano do duplo triunfo napolitano. As seleções de Brasil e Argentina se enfrentaram em jogo eliminatório com domínio absoluto da primeira, mas vitória da segunda. Ao final, os amigos trocaram camisas e Maradona vestiu pela primeira vez a amarela do Brasil. A segunda seria em um comercial para um refrigerante brasileiro, duas décadas depois.

No país vizinho, Maradona é Diego. Há alguns anos, li em uma coletânea de ensaios sobre Herbert Marcuse, a dedicatória a Diego, por el aguante. Quando perguntei a Alicia Entel, organizadora do livro e autora de sua introdução, se se referia a Maradona, ela negou, mas não mostrou surpresa pela pergunta, muitos já lhe a haviam feito.

Marcuse e Maradona, pulsão irrefreável do novo. Gênios.

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2017.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Recordações de Diego Maradona. Ludopédio, São Paulo, v. 100, n. 14, 2017.
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