No início de 1973 a imprensa santista chamava a atenção para a campanha da torcedora do alvinegro praiano, Maria José, empenhada em obter inscrições para a formação na Vila Belmiro de uma “torcida organizada feminina”.[1] No transcorrer de 1977 os jornais especializados mencionavam a existência, no Corinthians, de uma “torcida só de mulheres”, autodenominada: As Gaivotas.[2] Pouco depois, em meados de 1978, um grupo de cem mulheres do bairro da Vila Maria se reunira para fundar a Torcida Feminina do Corinthians, TUFICO.[3] Entretanto, a imagem mais desestabilizadora da percepção social do estádio enquanto espaço exclusivamente masculino adviria do gesto audacioso de uma simples integrante dos Gaviões da Fiel, levado a cabo durante a partida do Corinthians contra o XV de Jaú, no Interior, pelo Campeonato Paulista de 1977. Com efeito, para surpresa geral, a equipe local se impôs sobre o time da capital com uma vitória de 3 a 0. Inconformados com o revés, e valendo-se do pretexto fornecido por um gol anulado, torcedores do alvinegro começaram a pular o alambrado. Ao total foram registradas quatro invasões. Estas, de acordo com a imprensa esportiva, constituíam, então, um fato corriqueiro e àquela altura já não surpreendiam mais ninguém, nem mesmo o coronel Erasmo Dias: “Esse negócio de invasão está se tornando moda”.[4]
O inaudito, na verdade, ficaria por conta de uma solitária torcedora. “Depois do terceiro gol”, conforme o relato do Jornal da Tarde, “Madalena Pereira da Silva, dos Gaviões da Fiel”, saltara “o alambrado que alguns ameaçavam derrubar”. Os guardas, ato contínuo, “começaram a persegui-la”.[5] A imagem da perseguição – salientava a revista Placar – tornar-se-ia “famosa em todo o Brasil”.[6] Ainda hoje chama-nos a atenção a ação do policial militar que se achava no encalço da torcedora, desferindo-lhe por trás um carrinho desleal. Eis o ponto que convém colocar em relevo: a torcedora não havia simplesmente perturbado a ordem pública ao interromper o desenrolar do espetáculo esportivo como os demais invasores que a precederam. Ao traçar uma linha de fuga através do campo da dominação masculina, ela transgredira, na verdade, a ordem sócio-sexual considerada natural, evidente e inquestionável.[7] Por certo, se a presença feminina na arquibancada por si só já constituía um atrevimento, a sua aparição inesperada no gramado representava uma violação intolerável do espaço que lhe era interdito em vários sentidos, inclusive, à época, o da simples prática lúdica.[8] O ato da torcedora do Corinthians, desse modo, encerrava uma dupla transgressão: a da ordem pública do evento e a da ordem simbólica do futebol. Entreguemos a palavra à Madalena: “Por um momento fiquei fora de mim. Subi no alambrado e quando percebi já estava dentro do campo correndo. Não sei para onde. Acho que em direção ao juiz. Mas levei uma rasteira por trás”.[9]
Todavia, na sequência da competição, ela seria recompensada pela classificação do time para a tão ansiada final do estadual. A Manchete Esportiva contabilizava, no Morumbi, a presença de trinta e duas organizadas do Corinthians.[10] Ao lado delas também marcava presença a Coligay, do Grêmio, integrada por pessoas dispostas a desafiar alguns dos tabus sexuais do campo esportivo. Segundo Volmar Santos, líder da torcida gaúcha, Vicente Matheus os chamara “para aplaudir o time” na decisão do Paulista. “A gente foi lá e não aconteceu outra coisa. O maior sucesso”.[11] Formada no início de 1977, ou seja, no mesmo ano em que o Grêmio havia arrebatado o título regional, após o jejum de quase dez anos sem conquistas, a Coligay trouxe para o Morumbi, junto com o inevitável estigma que a acompanhava, a fama de pé-quente que explicava o convite feito pelo presidente do Corinthians. Entusiasmado com a repercussão alcançada pelo agrupamento, Volmar Santos lançava um “apelo” para que as torcidas com a mesma orientação sexual assumissem sua condição, “como nós assumimos”, gesto que ele julgava “muito importante para o movimento gay em todo o Brasil”.[12]
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A República dos Torcedores, com efeito, contemplava a coexistência da diversidade das formas do torcer e ensejava inúmeras possibilidades de ser torcedor no espaço das arquibancadas. Esta coexistência, decerto, não estava isenta de tensões, não implicava a ausência de conflitos ou, mesmo, de manifestações de intolerância. Todavia, embora a partir de uma correlação de forças desigual, e a despeito das contradições internas, podemos afirmar que, para além da celebração da masculinidade viril, do ethos guerreiro e da heteronormatividade, ela assegurava ao mesmo tempo a possibilidade de ampliar o campo de atuação do “segundo sexo”, de multiplicar os pontos de resistência das “sexualidades ilícitas”, de conferir visibilidade às alteridades extremas cujas presenças reordenavam o universo simbólico das organizadas, mantendo aberta a interrogação acerca do ato de torcer. Esta interrogação, por sua vez, encontrava-se emoldurada pelo processo de redemocratização da sociedade brasileira, adquirindo conotação política através da proposta do “sócio-torcedor”, categoria concebida originalmente no bojo do movimento de oposição à ditadura de Wadi Helu, no Parque São Jorge, e retomada pelas organizadas alvinegras no contexto do movimento da Democracia Corinthiana.[13] O intuito da proposta consistia em ampliar o colégio eleitoral no clube a fim de assegurar o direito de voto para presidente ao torcedor que pagasse uma mensalidade estimada em dois por cento do salário mínimo. Tratava-se, então, de democratizar o processo da tomada de decisões relativas ao time.
A construção da esfera pública no futebol apoiava-se na categoria inovadora do sócio-torcedor e incorporava a estratégia de luta tomada de empréstimo ao movimento operário. De fato, em meados de 1978 os militantes da TUP articularam uma “greve” nos estádios contra o então presidente Bruno Saccomani, acusado de desvio de dinheiro na gestão do Palmeiras.[14] A ação de protesto foi promovida no momento em que a cidade de São Paulo registrava em média seis paralisações por dia, inspiradas pela onda grevista deflagrada em maio daquele mesmo ano pelo novo sindicalismo do ABC.[15] Sem dúvida, a esfera esportiva não permanecia imune à centelha de rebeldia que percorria e animava os movimentos populares da sociedade civil no contexto da luta pela redemocratização.[16] Mas o senso comum das arquibancadas erguia-se como um imenso desafio à elaboração de uma visão de mundo coerente, crítica e refletida acerca dos interesses em jogo, conforme nos indica o desdobramento da ação da TUP. Poucos meses depois de colocar em prática a greve contra a direção do clube, a organizada voltaria suas baterias contra os atletas da equipe, aplicando-lhes uma punição moral através de uma faixa tingida com a ideologia do amadorismo: “Cartão vermelho aos mercenários”.[17]
A verdadeira torcida – para empregarmos a expressão de Flávio La Selva – atribuía-se a tarefa de salvaguardar o ideal de pureza que cingia a agremiação, sentimento ameaçado pelo dirigente “corrupto”, pelo juiz “ladrão” ou pelo jogador “mercenário”. Vistas por esse prisma, as agressões físicas direcionadas aos atletas profissionais, cada vez mais recorrentes a partir da segunda metade dos anos setenta, adquiriam uma dimensão simbólica inesperada, constituindo-se, por assim dizer, em “ritos de rejeição do mal”.[18] O perigo, no entanto, rondava as próprias torcidas organizadas, como podemos inferir da assertiva do líder dos Dragões da Real, Airton Massaru: “Apenas nós e a Independente não recebemos dinheiro de ninguém” E completava em termos ainda mais veementes a crítica endereçada às congêneres de arquibancadas: “Pagamos tudo do nosso bolso e não ficamos puxando o saco da diretoria para receber dinheiro”.[19] Os agrupamentos organizados, afinal, também se revelavam permeáveis aos interesses mundanos da classe dirigente. A discussão sobre a autonomia do movimento tocava o cerne do problema. A verdadeira torcida, com efeito, tinha diante de si o desafio gramsciano de empreender a passagem do momento econômico-corporativo, centrado na defesa dos benefícios materiais e das vantagens particulares, para o momento ético-político, baseado na produção de objetivos comuns e na defesa da unidade de interesses dos torcedores das camadas populares.[20]
O movimento hegemônico, contudo, esbarrava na esfera do futebol em uma série de dilemas e incongruências, ou, como acreditava o presidente dos Gaviões, Luiz Antonio, de armadilhas: “Acusam as torcidas organizadas pela violência porque querem manter a gente, o povo, separado”.[21] Fosse como fosse, em meados dos anos oitenta, tiros de revólver começaram a ecoar com mais intensidade no entorno dos estádios, pressagiando um novo ciclo de violência que não permitia mais divisar com clareza e segurança quais eram as armas válidas para o combate, em que circunstâncias e condições ele poderia se desenrolar e, sobretudo, com quais participantes.[22] Cosme Damião, presidente da Torcida Jovem, dizia-se preocupado com a ruptura do “pacto de não agressão”. O vice-presidente da TUP, Moacir Salgado, admitia sem rodeios o “medo de me envolver numa briga e morrer”. A Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo, ATOESP, esvaziada e inativa, mostrava-se incapaz de articular um armistício e de repactuar as relações a fim de mantê-las dentro das regras implícitas que durante todo o período anterior haviam balizado os enfrentamentos dentro e fora dos estádios. Hélio Silva, presidente da Torcida Uniformizada do São Paulo, TUSP, soava o sinal de alerta: “As torcidas viraram gangues sem controle”. E evocava um episódio que lhe parecia emblemático do desrespeito ao padrão de comportamento instituído pelas organizadas mais tradicionais: “Contra o Palmeiras, depois do jogo, vimos nossa sede, no Morumbi, invadida, uma mulher espancada, instrumentos e faixas roubados”. [23] O dirigente dos Gaviões, Luís Antonio, não hesitava em apontar a torcida alviverde como “a mais covarde de todas” por incluir na luta os espectadores comuns “não pertencentes a grupos organizados”.[24]
Embora sem nomeá-la, as críticas apontavam na direção de uma nova “facção” constituída a partir dos associados “banidos” da TUP e do ingresso nos estádios de uma “garotada” decidida a modificar as relações de força prevalecente na configuração dos estádios. De certa forma, ela entrava em campo para reparar a situação descrita na carta enviada à revista Placar por Antônio Araújo, integrante da TUP: “Já estamos cansados de, nas partidas contra o Corinthians, ter que esconder a camisa ao sair do estádio e guardar as faixas e bandeiras 5 minutos antes de acabar o jogo, pois ganhando ou perdendo os corinthianos levam tudo da gente”.[25] A aparição da Mancha Verde remontava, a rigor, ao ano de 1978. Notícias esparsas davam conta da existência quase anônima do grupo nos jogos do Palmeiras durante o Campeonato Brasileiro. Na partida contra o Internacional, no estádio Beira Rio, “uma grande faixa com o título ‘Mancha Verde’ foi sequestrada pelos gaúchos e devidamente rasgada em pedaços”.[26] Em 1983, contudo, ela iria reaparecer nas mãos de uma nova geração imbuída do propósito de cindir a história das organizadas do alviverde em dois momentos distintos. De fato, em pleno pânico moral suscitado pelos arrastões na orla marítima carioca, atribuídos às galeras do funk, a revista Veja explicava em tom didático aos leitores: “As tribos que aterrorizam as praias do Rio de Janeiro podem ser comparadas aos hooligans ingleses ou à torcida Mancha Verde, do Palmeiras, em São Paulo”.[27]
Dez anos após ter sido recriada, a Mancha Verde arrebatava às associações rivais o título de torcida mais temida. Mas não havia motivos para comemorações. Aqui, com efeito, chegamos a uma etapa bastante avançada na estrada do antagonismo violento, muito próximos da Batalha do Pacaembu – ponto de inflexão no itinerário complexo percorrido pelas organizadas -, bem distantes da República dos Torcedores – ponto de articulação das lutas internas e externas à esfera do futebol, horizonte utópico onde estudantes e operários, gays e mulheres, brancos e negros, jovens provenientes de todos os estratos sociais, projetaram suas exigências de participação política nas instâncias de poder, ao mesmo tempo em que expressavam suas urgências em jogar o jogo indefinido “dos limites e da transgressão”.[28]
[1] Cf. “Elas só querem liberdade”, A Tribuna, 18 de abril de 1973.
[2] Cf. “O maior grito organizado do mundo”, Jornal da Tarde, 19 de setembro de 1977.
[3] Cf. “Surge nova torcida organizada no Corinthians, só de mulheres”, O Estado de S. Paulo, 26 de fevereiro de 1978.
[4] Cf. “Erasmo justifica policiais e culpa FPF”, O Estado de S. Paulo, 7 de junho de 1977.
[5] Cf. “A torcida briga, invade o campo, mas não evita o desastre”, Jornal da Tarde, 6 de junho de 1977.
[6] Cf. “As últimas do esporte em primeira mão”, revista Placar, nº 438, 15 de setembro de 1978.
[7] Héritier, Françoise (1996) Masculino/Feminino. O pensamento da diferença. Lisboa, Instituto Piaget, p.192.
[8] A prática do futebol pelas mulheres foi proibida pela CBD durante os anos de 1965 a 1979. A regulamentação do futebol feminino só foi adotada em 1983. Cf. Silva, Giovana Capucim e (2015) Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1965-1983). Dissertação de Mestrado, História Social, Universidade de São Paulo.
[9] Cf. “Quem é o maior, Santos ou Corinthians?”, revista Manchete Esportiva, nº 54, 24 de outubro de 1978.
[10] Cf. “Ninguém segura a Fiel”, revista Manchete Esportiva, Edição Histórica, outubro de 1977.
[11] Cf. “Na terra dos machões a Coligay já é aceita e tem fama de pé-quente”, revista Manchete, nº 59, 28 de novembro de 1978.
[12] Cf. “Na terra dos machões a Coligay já é aceita e tem fama de pé-quente”, revista Manchete, nº 59, 28 de novembro de 1978. Gerchmann, Léo (2014) Coligay. Tricolor e de todas as cores. Porto Alegre, Libretos.
[13] Florenzano, José Paulo (2009) A Democracia Corinthiana: práticas de liberdade no futebol brasileiro. São Paulo, Educ/Fapesp.
[14] Cf. “E a greve da torcida não deu certo”, O Estado de S. Paulo, 20 de julho de 1978.
[15] Cf. “Há seis greves por dia em São Paulo”, O Estado de S. Paulo, 14 de julho de 1978.
[16] Sader, Eder (1988) Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro, Paz e Terra.
[17] Cf. “Palmeiras empata e aumenta revolta da torcida”, O Estado de S. Paulo, 14 de setembro de 1978.
[18] Douglas, Mary (2012) Pureza e perigo, p.201. São Paulo, Perspectiva. Sobre a faixa dos “mercenários”, Cf. “Palmeiras empata e aumenta revolta da torcida”, O Estado de S. Paulo, 14 de setembro de 1978.
[19] Cf. “Baby Consuelo quebra silencia da torcida”, Folha de S. Paulo, 19 de maio de 1980.
[20] Gramsci, Antonio (2004) Cadernos do Cárcere. Vol.I Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 3º ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp.314-315. Cf. Fontana, Benedetto (2003) Hegemonia e nova ordem mundial. In: Ler Gramsci, entender a realidade. Carlos Nelson Coutinho e Andréa de Paula Teixeira (orgs.) Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, pp.117-118.
[21] Cf. “Na rota da torcida, a marca da violência”, Folha de S. Paulo, 4 de dezembro de 1983.
[22] Cf. “Corinthians unido para apoiar Ataliba”, Folha de S. Paulo, 28 de novembro de 1983.
[23] Cf. “Na rota da torcida, a marca da violência”, Folha de S. Paulo, 4 de dezembro de 1983.
[24] Roversi, Antonio (2006) L`ódio in Rete. Siti ultras, nazifascimo online, jihad elettronica. Bologna, Il Mulino/ Contemporanea, pp.79-80.
[25] Cf. “Um protesto palmeirense”, seção “Camisa 12”, revista Placar, nº 715, 3 de fevereiro de 1984.
[26] Cf. “Gaúchos comemoram a derrota com chuva e garrafas”, revista Placar, n°433, 11 de agosto de 1978
[27] Cf. “Baile só é bom se tem briga”, revista Veja, edição 1.259, 28 de outubro de 1992.
[28] Foucault, Michel (2013) Prefácio à transgressão. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ditos e Escritos. Vol.III, Rio de Janeiro, Forense Universitária, p.32