102.12

Só penso na Copa

Leandro Marçal 12 de dezembro de 2017

Já faz mais de uma semana que disfarço, olho para um lado e para o outro, confiro se o chefe ou algum colega de escritório não ronda minha mesa e clico naquele link salvo na pasta dos favoritos. Não há nada a fazer, então tento decorar pela milésima vez o chaveamento da Copa do Mundo na Rússia.

Se dependesse de mim, dispensaria a sonolência dos estaduais e toda a programação do futebol nos 164 dias que antecedem a abertura do maior evento esportivo em 2018 – e em todos os tempos – para já tratarmos exclusivamente do que realmente importa no mundo da bola ano que vem.

Ter quase 30 anos não vai me impedir de ir até à banca trocar as figurinhas do álbum e alimentar minha obsessão paranoica de finalizá-lo antes dos 30 dias de 64 jogos.

Poster Oficial FIFA Word Cup Russia 2018
Lev Yashin é meu papel de parede pelos próximos meses.

Que se danem o desastre das eleições uns meses depois e as dívidas acumuladas uns meses antes. Só importam as desculpas que arrumarei para passar mais de seis horas diárias entre pré-jogos, partidas espetaculares, debates e prognósticos.

Longe de qualquer pachequismo, acho até que gosto mais do evento que da seleção brasileira (ou da CBF, sei lá). Basta ouvir duas pessoas conversando sobre o que pode acontecer na Rússia para eu chegar perto, tropeçar de propósito ou esbarrar em alguém para me aproximar do bate-papo, citando números e histórias desde 1930 para esbanjar todo meu conhecimento sobre Copa.

Já separei meu almanaque com tudo das 20 edições anteriores, rascunhei o tradicional bolão para garantir bons jantares com o dinheiro que certamente vou ganhar, lamentei a Itália e a Holanda fora, tentei acalmar os ânimos de quem não tem dúvidas que Tite e seus comandados já estão com a mão na taça e olhei as datas de folga forçada.

É como se eu arrastasse minha vida para lá e para cá como os móveis da casa e só me acomodasse para curti-la em sua plenitude a cada quatro anos. Podem me oferecer dinheiro, riquezas, luxúria e todo o conforto do mundo, mas nada será capaz de me tirar da frente da televisão entre junho e julho do ano que vem. Quando muito, vou até à casa de amigos reunidos num churrasco se houver garantia registrada em cartório de que a programação será inteiramente voltada à Copa.

Em outras edições, vi dois gols do Messi no meio de um casamento, culpei a emoção em um enterro para ir embora e curtir as oitavas de final, troquei um encontro por uma decisão, pedi as contas do trabalho e fiz da minha casa uma central com programação exclusiva ao suprassumo da bola.

Podem até mostrar planilhas com os números gigantescos dos campeonatos europeus, falar dos esportes americanos e sua maior audiência da galáxia ou apresentar profecias de livros sagrados sobre o fim do mundo no próximo ano. Não tem problema, só espero que o apocalipse venha depois do apito final, com meu álbum preenchido e a tabela com o resultado preenchido à caneta.

Porque acreditem: a Copa do Mundo é tão grande, mas tão grande, que sobrevive até aos desmandos da FIFA e seus escândalos de corrupção, piorando o mundo e o mundo do futebol.

Sua chegada a cada quatro anos é mais que justa, porque rara. Me sinto num aeroporto, olhando aquele painel luminoso, à espera da Copa chegar com suas malas pesadas. Sei que ela vai embora dali a trinta dias, mas eles são inesquecíveis antes mesmo de começarem. A todo aviso no megafone, meu ouvido se atenta.

Copa do Mundo não se explica, se sente, se vive. E deixa eu parar por aqui, o pessoal do escritório voltou do almoço e meu chefe vem em minha direção. Minimizei a tela e abri uma planilha do Excel.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Só penso na Copa. Ludopédio, São Paulo, v. 102, n. 12, 2017.
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