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Sobre futebol, bonecas e figurinhas

Bruna Saurin Silva 3 de agosto de 2023

No embalo da Copa do Mundo de futebol de mulheres, de 2023, revisitei um antigo texto que escrevi. Tal texto falava sobre a campanha “A Boneca Que Nunca Pedi”, estrelada pela jogadora da seleção Andressa Alves. A propaganda lançada pela NIKE, no ano de 2019, enfocava na história de meninas que, como ela, decapitaram suas bonecas, fizeram de suas cabeças bola e foram jogar futebol. Como resultado dessa campanha, Andressa tem seu rosto desenhado em forma de boneca e estampado em uma bola de futebol. O enredo versa sobre o cenário do futebol de mulheres e a figura fixada da boneca. Desafia um imaginário construído para relacionar meninas e bonecas. Pois, como uma história que se reitera cotidianamente, basta nascer para uma garota ganhar seu primeiro exemplar desse brinquedo infantil. Bonecas se tornam então símbolo de uma feminilidade normalizada que informa as pedagogias de gênero, regulando comportamentos, discursos e gostos de meninas e mulheres, negando-lhes a oportunidade de se aventurar em outros espaços, sobretudo com as bolas nos pés (DOWLING, 2001).

É evidente, todavia, o equívoco em acreditar no caráter natural desse comportamento. Tais discursos são culturalmente produzidos e reproduzidos, cujo efeito parece materializar uma “existência natural” da essência de ser menina (BUTLER, 2018). Essas tecnologias reforçam, além disso, espaços distintos de pertencimento destinando às meninas. São os espaços privados das bonecas, da casa e dos cuidados, ao passo que concedem aos meninos todo um mundo restante, da rua, da bola e do futebol. Nesse emaranhado surgem brados de: “O futebol não é para meninas”, “Meninas são frágeis para o futebol”, “Seus corpos não são aptos para dada modalidade esportiva”. Esses discursos integram uma sociedade machista, que sempre desejou afastar meninas e mulheres dos esportes. No Brasil esses discursos foram reiterados ainda pelo decreto 3.199 de 1941 o qual cerceou, por 40 anos, a prática de futebol por mulheres (GOELLNER, 2005).

Todavia, ainda que invisibilizadas, desprezadas e diminuídas, meninas e mulheres, continuavam jogando bola à despeito das proibições e interdições. (GOELLNER, 2005). Pois o Brasil continua sendo o país do futebol, e por mais que os espaços destinados para a prática de mulheres continuem sendo negligenciados elas seguem na direção contrária. E a pergunta que fica é: até quando vamos nascer e crescer no país do futebol…de homens, se brilhamos também no futebol de mulheres?

As últimas Copas do Mundo sinalizam algumas mudanças. Apesar de o futebol praticado por homens ainda ser considerado o “verdadeiro Futebol” para alguns, temos Marta – 6 vezes melhor do mundo; temos Formiga – única pessoa do mundo a ter participado, como atleta, de 7 Copas do Mundo (incluindo homens e mulheres), Cristiane – maior artilheira do futebol em Jogos Olímpicos, independente de gênero, com a marca de 14 gols, entre outras craques da seleção. São grandes atletas que até pouco tempo atrás, eram pouco conhecidas.  

 Essa mistura de apagamento e desvalorização faz com que em geral brasileiras e brasileiros se afastem do futebol de mulheres e o desenrolar das Copas do Mundo “feminina” deixa isso visível em vários sentidos (SOUZA JUNIOR; REIS, 2010). Nesse sentido, poderia falar sobre as poucas transmissões dos jogos e patrocínios, das desigualdades salariais ou até mesmo da diferença de mobilização das massas para assistirem aos jogos das meninas. Todavia, nesse texto me detenho a falar dos Álbuns de Figurinha da Copa, algo que não tem muito a ver com o rolar da bola, mas que constrói um imaginário em torno do evento e nos ajuda a pensar também, nas disparidades existentes no futebol jogado por elas.

Álbum da Copa Do Mundo FIFA Feminina Austrália – Nova Zelândia 2023

O álbum de figurinhas da Copa do Mundo é distribuído mundialmente pela Panini e, já faz um tempo, caiu no gosto popular do brasileiro. Tal artefato é composto por um álbum no qual você coleciona figurinhas com o rosto e dados de jogadoras e jogadores de todas as seleções participantes do mundial. Faz parte da coleção, também, figurinhas com elementos da Copa: bola oficial, mascote, taça, escudos das seleções, figurinhas douradas com as/os principais craques das seleções, entre outros. As figurinhas são ainda fontes de renda para jogadoras e jogadores, já que estes possuem direitos de imagem.

 O primeiro álbum de figurinhas da editora Panini foi lançado na Copa do Mundo FIFA de 1970, desde então, a editora lançou álbuns para todas as Copas – masculinas. No Brasil, editoras diversas lançaram álbuns de figurinhas da Copa entre 1970 e 1986. O primeiro álbum de figurinhas da Panini lançado no Brasil foi o da Copa do Mundo FIFA de 1990. Na época da Copa do Mundo FIFA de 2014, que teve o Brasil como anfitrião, eram fabricadas 40 milhões de figurinhas diariamente na fábrica da Panini (TUDO ESPORTES, 2022).

O Mundial de mulheres acontece desde 1991, mas é apenas a terceira vez que a Panini lança o álbum do torneio. A primeira, em 2011, foi vendida apenas na Alemanha, país sede da Copa do Mundo naquele ano. Nas edições de 2015 e 2019 já era possível comprar o álbum no Brasil (MUSEU DA COPA, 2015).

Para nós brasileiras e brasileiros o álbum de figurinhas da Copa compõe todo um imaginário pré-evento, no qual meninas e meninos, mulheres e homens, compram, colam, colecionam, trocam e até batem [1] figurinhas. Trocar figurinhas é um momento de socialização a partir e por esse evento. “Bater” as figurinhas repetidas é algo comum entre as crianças, e se transforma em uma brincadeira adicional ao ato de colecioná-las. Sem levantar a temática do viés de classe que envolvem montar o álbum da Copa (vide os valores pouco acessíveis de um álbum completo) esse é um dos momentos de vivenciar e compartilhar saberes sobre a Copa, das/os jogadores, das equipes, dos países. Todavia, percebe-se um gap gigante entre os lançamentos dos álbuns de figurinha da Copa do Mundo de Mulheres e dos Homens no Brasil, o que resulta em mais uma forma de apagamento dos saberes sobre o evento e de suas atletas.

 Confesso, um pouco envergonhada, que comecei a acompanhar de verdade as meninas da seleção apenas nas últimas Copas, mas desde então percebi um caminho sem volta. No mundial de 2019 vestimos camisas, assistimos aos jogos em bares, e decidimos fazer o Álbum. Nos empolgamos com o fato dele existir, justamente porque pensamos ser a primeira vez que era lançado para A Copa do Mundo de mulheres.  Para a nossa frustração tal álbum não existia nas bancas da minha cidade. Talvez em São Paulo esse cenário pode ter sido um pouco mais animador, mas a verdade é que o imaginário por traz da coleção das figurinhas da Copa Do Mundo de Mulheres de 2019 não existiu por aqui.

Passados quatro anos, e com o considerável avanço obtido na modalidade esportiva em questão, conduzido, sobretudo, pelo sucesso das edições de 2015 e 2019 é possível perceber em 2023 um evento bem diferente das edições passadas, o qual já é considerado como “A maior Copa do Mundo de todos os tempos” – de mulheres. Para a Copa de 2023 vemos, pelo menos no Brasil, mais visibilidade, apoio, patrocínios, investimentos em publicidade e transmissão, representatividade de mulheres, e o mais importante, mais apoio e confiança em uma seleção que foi planejada para essa edição. Mas e o álbum de figurinhas?

Esse ano a Panini lançou um álbum virtual para a Copa do mundo de mulheres em parceria com a Coca-Cola®. O álbum virtual está disponível gratuitamente nas app stores e você pode colecionar e trocar figurinhas com pessoas do mundo todo. O lançamento do produto virtual, juntamente com o artefato físico, pareceu ser uma ação da Panini para verificar o potencial e alcance de venda de tal álbum. E de talvez proporcionar o engajamento de pessoas na coleção das figurinhas sem requerer investimentos financeiros, visto que tal modalidade esportiva parece ainda não gerar tal mobilização do público.

Esse ano embarquei na onda digital e comecei a fazer o álbum on-line. Confesso que foi a primeira vez que troquei figurinhas da Copa do Mundo, e a sensação de conseguir uma figurinha nova, ou aquela tão desejada, foi incrível, ainda que virtualmente. Fizemos grupos de troca, buscamos formas de conseguir o máximo de figurinhas diárias, descobrimos um mundo de jogadoras de futebol que não conhecíamos e com isso surgiu também o desejo pelo álbum físico, com “figurinhas de verdade”.

Passei a buscar os álbuns e as figurinhas nas bancas. Os mesmos já estavam à venda pela internet. Comprei minhas primeiras figurinhas mesmo sem ter o álbum, e depois de alguns dias, meu álbum comprado pela internet chegou. Em algumas bancas encontrei as figurinhas, em outras os álbuns, em capa dura e capa normal. O cenário foi de fato muito empolgante, pois a cada banca que passei pude, pelo menos, comprar um pacotinho de figurinha. Dessa vez a frustração se converteu em mobilização, pois a cada banca que pergunto sobre o álbum e as figurinhas, provoco uma reflexão sobre o tema e encontro também falas do tipo: “que legal que tenha figurinhas dessa Copa”, “agora é a vez delas”, “não sabia que tinha álbum, vou procurar saber”.  E nas bancas que não encontro as figurinhas faço sempre uma pequena pressão para que busquem saber sobre.

Trazer a discussão acerca dos álbuns de figurinhas nos ajuda a perceber, a partir de sinais simbólicos, certas discrepâncias ainda existentes entorno de tal modalidade esportiva. Todavia, nos lembra também a importância de valorizarmos e criarmos ambientes em que meninas e meninos desfrutem e apreciem também o futebol praticado por elas. Que tenham ídolas mulheres, que torçam pelos times femininos, que encham os estádios, que comprem camisas, álbuns de figurinhas, que colecionem, troquem e conheçam as equipes e da Copa do Mundo de 2023. Que descubram quais foram as convocadas do Brasil. Que as admirem.

No momento em que finalizo esse texto é impossível não notar o hype alto em que a boneca Barbie se encontra, e junto a ele uma conflitante discussão em torno do seu impacto na cultura popular.  Arremato, então, essa conversa retomando a ideia das bonecas, as quais são idolatradas por algumas meninas e decapitadas por outras. Nesse constructo, convido a todas e todos a pensarmos conjuntamente em espaços em que meninas possam não apenas idolatrar suas bonecas, mas também se reconhecerem como talentosas jogadoras de futebol.

Bora trocar figurinhas?

Referências

BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. [s.l.] Editora José Olympio, 2018.

DOWLING C. O mito da fragilidade. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos; 2001.

GOELLNER, S. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista brasileira de educação física e esporte, v. 19, n. 2, p. 143-151, 2005.

DE SOUZA JÚNIOR, O. M.; DOS REIS, H. H. B. O canto das sereias: Migrações e desafios de meninas que sonham ter o futebol como profissão. 2010.

MUSEU DA COPA. Álbum Copa do Mundo Feminina 2011 – Editora Panini. 2015 Disponível em https://museudacopa.com.br/2015/12/22/album-copa-do-mundo-feminina-2011-editora-panin. Acesso em: 28 jul. 2023.

TUDO ESPORTES. Conheça a história dos álbuns de figurinhas da Copa do Mundo. Disponível em: https://tudoesportes.net/conheca-a-historia-dos-albuns-de-figurinhas-da-copa-do-mundo/. Acesso em: 28 jul. 2023.


[1] Jogo da cultura infantil, em que as/os participantes apostam suas figurinhas, colocando-as viradas para baixo, e batendo-as com as mãos no intuito de virá-las. A figurinhas que caem viradas para cima, são do jogador que realizou a batida.  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bruna Saurin Silva

Doutoranda e Mestra em Educação Física (2020) pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bacharel (2018) e Licenciada (2017) em Educação Física pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais - Campus Muzambinho. Integrante da GRUPA (Grupo de Estudos em gênero e esporte) UFES

Como citar

SILVA, Bruna Saurin. Sobre futebol, bonecas e figurinhas. Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 3, 2023.
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