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As diversas faces de Sócrates – O Doutor-Imperador – Parte Final

Max Filipe Nigro Rocha 12 de junho de 2017

Uma vez construída a imagem de Sócrates como corintiano (ver aqui) e agente político (ver aqui), o último e derradeiro passo para consolidar a figura socrática como vanguarda responsável por implantar o projeto simultâneo de modernização empresarial e resgate do futebol-arte seria elevá-lo à posição de uma liderança carismática. Se por diversas vezes o atleta se recusava a assumir – seja pela objeção clara e direta ou pelas suas contradições humanas e idiossincrasias – o papel projetado sobre ele, a publicação não abria mão de destacar a função de comando exercida pelo ídolo alvinegro. E se Sócrates, por diversos momentos de sua carreira, desafiava a concepção de que o profissionalismo deveria reger as escolhas dos jogadores, o semanário ia além ao apontá-lo como craque-ídolo, modelo a ser seguido:

Embora reconhecendo o direito de qualquer profissional ir para onde bem entender, achamos que o craque-ídolo tem uma dupla personalidade em relação aos que também são responsáveis pelos seus altos salários – sim, porque um gênio sempre ganha muito bem e tem como fazer sua independência financeira por aqui mesmo. A primeira responsabilidade é perante sua torcida, que sofre demais com a perda do ídolo – que o digam os colorados sobre Falcão. A segunda é diante dos próprios companheiros de profissão, jogadores comuns que, como dignos coadjuvantes – nenhuma estrela brilha solitária –, ganham salários razoáveis para desempenhar seus papéis. E esses são a maioria. Por isso, a recente decisão de Sócrates, recusando 3 milhões de dólares para se transferir para o Barcelona, da Espanha, assume uma importância exemplar, por mais que o próprio jogador se recuse a ser modelo nessa questão. (PLACAR, nº 608, 15/janeiro/1982, p.32/33) (grifo nosso).

De referência de garra, determinação, alma, inteligência e habilidade restrita ao universo dos torcedores alvinegros, o craque socrático passava gradativamente à posição de ídolo nacional aos olhos de Placar, pois era o exemplo a ser seguido por todos os demais profissionais da bola. A opção do Doutor de não aceitar a oferta milionária feita pelo Barcelona F.C. significava que ele havia preferido preservar o vínculo construído com a fiel torcida e defender os interesses financeiros da categoria profissional coletivamente.

No mesmo exemplar da publicação, em reportagem que anunciava a conquista do campeonato mundial pela seleção brasileira de juniores em terras mexicanas, Marcelo Resende se embriagava com as recordações que remetiam ao mítico ano de 1970.

As palavras estão embaralhadas em minha cabe­ça. Escrevo frases que não gosto, coloco no pa­pel ideias soltas, busco na memória algo que possa defi­nir esta emoção de ser cam­peão do mundo depois de 13 anos. Ser campeão do mundo sob o mesmo sol, diante da mesma torcida tão brasileira, no mesmo Estádio Azteca on­de em 1970 nos tornamos tricampeões do mundo. […] Enfim, todos alimentam um sonho. Porque o sonho de ser campeão do mundo já virou realidade. Uma realidade que nos faz ter uma certeza: que, a cada dia, o futebol brasileiro nasce e renasce com a vocação de ser um eterno campeão, de ser o melhor do mundo. (PLACAR nº 683, 24/junho/1983, p.7/9) (grifo nosso).

Portanto, tanto a decisão de Sócrates permanecer em território nacional quanto a conquista do campeonato mundial de juniores pela seleção brasileira no México representavam o anúncio dos novos tempos que permitiria o resgate do feitiço perdido e a reencarnação de Pelé, conforme Juca Kfouri apresentava em sua coluna:

Aparentemente, nada têm a ver a generosa decisão do Doutor Sócrates em permanecer no Brasil e a magnífica conquista dos garotos brasileiros, campeões mundiais no México. Aparentemente, apenas. Porque, enquanto mantivermos por aqui o que há de mais autêntico em termos da nova mentalidade que deve existir em nosso futebol – e, como complemento, sua imprescindível experiência –, recuperamos boa parte do orgulho com um título tão importante – injetando sangue novo para voltarmos às calorosas terras mexicanas em 1986 cheios de fé. Parece óbvio que um Geovani terá muito a ganhar ao lado de um Sócrates, como, por exemplo, Tostão ganhou com Pelé. […] A verdade é que renascemos nesse fim de semana. Sócrates deu mais uma prova de que criticar as estruturas vigentes, dentro ou fora do futebol, não significa desamor, muito pelo contrário. Viver a experiência corintiana e a nova fase do país foi decisivo para sua permanência. (PLACAR nº 683, 24/junho/1983, p.3) (grifo nosso).

A capa da edição em questão também evidenciava o renascimento apresentado acima. Em fotografia que ocupava a página inteira, diversos jogadores da seleção brasileira de juniores festejavam a vitória sobre a Argentina no mundial realizado no México sob a manchete “nosso novo futebol já é campeão mundial”. Assim, aspectos modernos e tradicionais de nossa identidade nacional se conectavam novamente e devolviam a primazia perdida nos gramados. Contundo, a mesma comemoração dos jovens atletas da seleção canarinho sugeria outro significado devido à notícia sobre Sócrates na mesma capa. Associada ao texto “Sócrates fica. OBRIGADO DOUTOR!”, a imagem expressava sua condição polissêmica, pois os jogadores pareciam celebrar a permanência do craque-ídolo em território nacional.

Reprodução: Capa da Revista PLACAR, nº 683, 24/06/1983.

Essa última etapa da elaboração da figura socrática demonstrava uma gradual redução de seu corintianismo – forjado há muito custo por Placar – na mesma medida em que sua imagem passava a ser anunciada como símbolo da unanimidade nacional. Embora a leitura placariana sobre o atleta continuasse portadora dos diversos aspectos apresentados – corintiano, ídolo, filósofo e político –, todos eles eram deslocados para um segundo plano diante do fato de que ele podia ser reconhecido como porta-voz do resgate de uma nacionalidade perdida.

A imagem do jogador ainda era formada por todos os aspectos apresentados, mas, justamente devido a essa completude simbólica, sua importância não deveria mais se limitar às fronteiras do Parque São Jorge. O Doutor reunia aos olhos de Placar todas as condições necessárias para consolidar em torno de sua pessoa um novo consenso político que daria origem a uma nova hegemonia, tradicional e moderna ao mesmo tempo na medida em que garantisse o retorno do futebol-arte e o desenvolvimento do esporte aos moldes empresariais, portanto, nesse momento era necessário extrapolar a identidade alvinegra do craque-ídolo.

Um dos aspectos que confirmava a necessidade de elevá-lo à condição de representante nacional era o posicionamento do jogador diante das inúmeras ofertas de ir para algum clube do exterior – embora fosse acabar cedendo à essas pressões – em nome da Democracia Corintiana e da campanha pelas Diretas-Já. Dividida entre as diretrizes estabelecidas pelo futebol europeu e a busca do fortalecimento dos campeonatos realizados no Brasil, a publicação defendia a implantação do modelo ultramarino ao mesmo tempo em que, atemorizada com a fuga dos craques verde-amarelos, enaltecia o único profissional que rompia com a lógica exportadora dos boleiros profissionais:

Pela primeira vez, em quase 14 anos de vida, estamos pu­blicando a tabela completa de um campeonato nacional do ex­terior, a do Campeonato Italiano. E o fazemos, é claro, por­que dele participarão Zico, Falcão, Cerezo e outros craques brasileiros aos quais, por sinal, Sócrates não se juntou por ter a cabeça excepcional que tem. […] Nosso futebol pode dar um drible na crise. Bastará organizar campeonatos como o da Itália. E é fácil fazê-los. (PLACAR, nº 694, 09/setembro/1983, p.3) (grifo nosso).

Sócrates, entre nos­sos gênios, optou soli­tariamente por ficar no país, e merece ser tratado como quem virou as costas para a fortuna em nome de um projeto que tem muito a ver com o momento vivido pelo Brasil, tanto no espor­te como fora dele. (PLACAR, nº 699, 14/outubro/1983, p.3) (grifo nosso).

Outro ponto fundamental apontado pela revista na figura socrática era sua participação na Democracia Corintiana. Se o atleta se recusava constantemente a assumir a posição de representante-mor do movimento, a revista caminhava em sentido oposto.  Em entrevista na qual as perguntas tinham como alvo reforçar o corintianismo e o comando de Sócrates sobre a experiência inovadora, Placar direcionava seus olhos para a tão buscada liderança carismática e relegava ao segundo plano a vertente mais original do movimento – a cogestão implantada da equipe alvinegra.

Placar – Como é essa sua definição de que “ser corintiano é mais importante do que vencer“?

Sócrates — O José Rober­to de Aquino, que foi asses­sor de imprensa do Corinthians, disse, antes de mor­rer, que “todo time tem uma torcida; no Corinthians é ao contrário: é uma torcida que tem um time”. Eu assi­no embaixo. Ser corintiano é que é o importante, é mais gostoso do que tudo. Se ga­nhar, melhor ainda. Se não ganhar, não importa. […]

Placar – Por falar nisso, quais são os erros que você detecta na democracia corintiana e que abriram flancos para que ela fosse tão atacada?

Sócrates — O principal talvez tenha sido dar esse ró­tulo para a experiência, se bem que eu ache que demo­cracia deve ter mesmo esse nome. Só que provocou a ira de todas as forças antide­mocráticas do país. Outro problema é que muitos dos participantes do grupo se ha­bituaram com a estrutura pa­ternalista do fu­tebol e ainda não aprende­ram a viver sem ela. Quan­do eu me atra­sei num embar­que para um jo­go em Marin­gá, obrigaram o avião a retar­dar o voo para me esperar. Is­so não pode acontecer. Se eu falhei, e to­dos falham, te­ria que me vi­rar para repa­rar a falha, pe­gar um táxi aé­reo com meu dinheiro, dar um jeito, en­fim. Mas não, a estrutura pa­ternalista ficou me esperando. Se amanhã eu arrebentar a concentração, sempre vai aparecer alguém para segurar a minha barra. Isso tem que acabar. O paternalismo preci­sa acabar, é a única forma de o ser humano se conscientizar. Do contrário ele se vi­cia. E é muito mais cômodo não ter responsabilidades, transferi-las. Mas erros eu sempre terei, sou um ser hu­mano como os outros, não quero ser ídolo, um modelinho perfeito. Se eu quisesse, eu exigiria do Corinthians que me desse retaguarda, que justificasse meus atrasos, que preservasse a minha imagem, que, no fundo, é o maior património do lime. Mas eu não quero. Quero er­rar e ser criticado como qual­quer pessoa. Só acho é que não importam as razões de um atraso, por exemplo. Se eu tomei um porre ou estava com o filho doente. O que importa é o atraso. O resto é especulação nem sempre bem-intencionada.

Placar — Isto é uma con­tradição, pois você um ído­lo e detém uma liderança que não pertence só a você. Assim, qualquer coisa que você faça ou deixe de fazer terá repercussões inevitá­veis. Por mais que queira, você não é um ser humano normal. (PLACAR, nº 694, 09/setembro/1983, p.15/19) (grifo nosso).

Dedicada em transcender a mera identificação clubística, a publicação esportiva revestia o ídolo corintiano de tons que extrapolavam o espectro alvinegro. Em coluna intitulada de “As muitas cores de Sócrates”, Juca Kfouri enfatizava toda a rede de significados que orbitavam em torno do atleta, pois “a volta de Sócrates ao time do Corinthians […] definiu com cores nítidas o que ele representa para o clube, para o futebol e para o país.” Enquanto gênio dos gramados ele demostrava em campo que “ainda [havia] uma luz no fim do túnel do futebol brasileiro, luz verde, de esperança”, já na posição de agente político permitia:

[…] com o seu retorno que a de­mocracia corintiana reaparece[sse] em toda a sua plenitude. À exceção de Carlos e Zenon — dois jogadores conhecidos por terem tem­peramentos tímidos —, os demais entraram em campo com algum motivo que lembrasse a campanha pelas eleições diretas. Tornozeleiras, fitinhas de pulso, solas ou laterais das chuteiras. O Corinthians vestiu-se de amarelo, incorporando-se à campanha “Amarelo pelas Diretas”, lançada em São Paulo na semana que passou. (PLACAR, nº 718, 24/fevereiro/1984, p.3) (grifo nosso).

E por fim, a situação do jogador representava a necessidade urgente de reforma do calendário esportivo brasileiro e da profissionalização do quadro administrativo dos grandes clubes, segundo os ideais propostos pela racionalidade empresarial:

Manter esta figura no país é um duro desa­fio. Seria até simples se houvesse um mínimo de racionalidade nos campeonatos disputa­dos neste lado dos trópicos. Como não há, a tarefa ficará a cargo da imaginação criadora dos dirigentes corintianos, que, mais do que nunca, têm de perceber que a era do amado­rismo não pode mais prevalecer em clubes do porte dos maiores do Brasil.

Selecionar e profissionalizar talentos que cuidem de marcas famosas como as de um Corinthians, Flamengo, Internacional, Atléti­co Mineiro, etc, é hoje tão importante como ter um bom goleiro ou um artilheiro. Enquan­to isso não for assimilado, estaremos venden­do um Falcão, um Zico ou um Sócrates. Para depois ficarmos todos nos remoendo de remorsos, vermelhos de raiva. (PLACAR, nº 718, 24/fevereiro/1984, p.3) (grifo nosso).

Travestido do manto verde-amarelo que encobria parcialmente a sua segunda pele alvinegra, Sócrates passava a ser o símbolo de todo projeto futebolístico capitaneado por Placar e a sua permanência no Brasil condicionava o sucesso da implantação do modelo. A busca pela figura carismática chegara ao fim a partir do momento em que a revista avaliava por meio das ações do atleta a manifestação de um agente político capaz de arregimentar e comandar as massas.

Assim, o Doutor adquiria os traços de D. Pedro I, pois a perspectiva constante de resgatar a tradição perdida levava o semanário a projetar sobre o atleta os traços de um personagem histórico que – de acordo com a história oficial – havia sido o responsável pela libertação do Brasil de sua condição colonial.

Como o primeiro imperador do Brasil, dom Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paulo Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, o rei dos corintianos, que formam uma nação de mais de 6 milhões de fanáticos, o doutor Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, também teve seu Dia do Fico. Como dom Pedro I, o imperador, Sócrates, o gênio, não atendeu ao desejo paterno. Sorte do futebol brasileiro que, no entanto, precisa precaver-se. Porque não é todo dia que se encontra alguém com a simplicidade e a capacidade de renúncia e idealismo que o ídolo corintiano demonstrou. (PLACAR, nº 683, 24/junho/1983, p.15/17) (grifo nosso).

A constante ameaça da saída do craque-ídolo do Brasil fazia com que, de tempos em tempos, seu corintianismo fosse novamente acionado, mas já não ofuscava a identidade supraclubística. Se de acordo com Adílson Monteiro, o atleta tinha “a cara do Corinthians”, e segundo Hélio Máffia, preparador físico, “o Sócrates, além disso, é o espelho do Corinthians, [pois] as atitudes dele refletem nos demais jogadores” (PLACAR nº 725, 13/abril/1984, p.44), a publicação esportiva ia além:

Elevado à situação de maior astro do futebol brasileiro, Sócrates não tem preço. Uma velha máxima ensina que não se vende a alma de um time […] Será inútil tentar estabele­cer o valor de Sócrates. Se, na semana passada mesmo, um clube de Milão chegou a en­trar em contato com o jogador para oferecer 5,5 milhões de dólares (6,2 bilhões de cruzei­ros), não terá sido apenas pelos gois que ele faz, pelo bicampeonato que ajudou decisiva­mente o Corinthians a conquis­tar ou, enfim, apenas por suas qualidades de craque raro. Só­crates assumiu um tal carisma que hoje sua feição se confun­de com o próprio futebol brasi­leiro […] (PLACAR, nº 725, 13/abril/1984, p.44) (grifo nosso).

Como o último dos moicanos, o craque do Parque São Jorge era a incorporação do feitiço verde-amarelo tradicional, o ponto fora da curva que servia de referência norteadora para que a chama do futebol-arte não se apagasse nos gramados nacionais, características que Placar identificava na reportagem denominada “A magia de Sócrates”:

Nesses tempos de futebol econômico, feio e burocra­tizado, a última estrela que nos resta mostrou a força do craque. Transfor­mou um modesto Corinthians e Goiás num hiperespetáculo. […] Pois o Dou­tor Sócrates mandou no jogo como um hipnotizador, a quem companheiros e adversários acompanhavam com res­peito e espanto. […] E, para todos os que amam o futebol, há esperança de que as façanhas do Doutor não tenham sido apenas um lampejo passageiro, de um homem atribulado pe­las notícias que o colocam um dia na Espanha, um dia na Itália, no Barcelona, na Internazionale, no Verona, na Juventus. (PLACAR, nº 726, 20/abril/1984, p.12/13) (grifo nosso).

A possível saída do jogador para o exterior colocava em risco não apenas a qualidade do futebol corintiano ou os predicados da seleção brasileira, mas ameaçava todo o conjunto de propostas defendidas pela revista esportiva, seja no âmbito esportivo ou nacional. A decisão de Sócrates de ficar no Brasil caso a medida Dante de Oliveira – que assegurava a participação popular por meio do voto direto – fosse aprovada aliviava os angustiados corações e mentes placarianos.

Apaixonada e apaixonante, Placar seguia em sua incessante campanha pelo retorno da democracia no Brasil e pela abertura e humanização das relações profissionais no universo do futebol. Aspecto que levaria ela a interpretar a declaração dada pelo Doutor durante um comício pelas Diretas-Já na Praça da Sé de que permaneceria em território nacional mediante a aprovação da já citada emenda no Congresso Nacional como o Dia do Fico do Rei Corintiano.

A última capa em que Sócrates apareceria incorporando um personagem antes de deixar o Corinthians apresentava o atleta vestido como D. Pedro I. Com direito a fardão imperial, dragonas, condecorações e fitas decorativas que faziam alusão ao Brasil e a Portugal, a imagem posicionava o jogador como o agente responsável por libertar o futebol brasileiro de suas amarras históricas [Figura 38].

Elevada à posição de Defensor Perpétuo do futebol brasileiro, a figura socrática recebia o título máximo de nobreza na coluna de Juca Kfouri. Dom Sócrates expressava o constante desejo placariano de reunir o passado e o futuro, pois a imagem do ídolo nacional expressava tanto sua estirpe real por meio do reconhecimento do talento futebolístico do jogador e de sua condição de representante do futebol-arte quanto de líder responsável por instaurar a democracia. O monarca-democrata possuía os instrumentos necessários para acionar a participação popular e era reconhecido como tal na medida em que a massa o acolhia:

Não bastasse a vontade expressa nos comícios de norte a sul, o maior ídolo do futebol brasileiro condicionou a sua permanência no país à aprovação da emenda Dante de Oliveira. Sócrates está tão interessado nela que, para divulgá-la ainda mais, não leve dúvida em assumir o papel de dom Pedro I, transforman­do-se na capa desta edição.

Bons tempos estes em que as maiores figuras do nosso esporte assumem suas opiniões e as colo­cam em discussão abertamente, sem medo da crítica conservadora ou da perda de seus privilégios — Sócrates estará trocando cerca de dois milhões de dólares pelo direi­to de votar […] quando o que esta em jogo é incomparavelmente maior, a atitude se repete num gesto generoso de quem perdeu toda a frieza e o famoso autocontrole, che­gando a se emocionar às lágrimas com a multidão de quase dois mi­lhões de pessoas que o aclamou no Vale do Anhangabaú, palco da última manifestação pelas diretas, em São Paulo. […] Porque, que ninguém duvide, se as diretas não resolverão os nossos problemas, serão o primeiro passo para tanto. Até nos esportes. (PLACAR, nº 727, 27/abril/1984, p.3).

Placar 727 capa
Reprodução: Capa da Revista PLACAR, nº 727, 27/04/1984.

No entanto, a não aprovação da emenda constitucional Dante de Oliveira implodia o plano placariano de projetar o Doutor como a vanguarda que conduziria à reforma tão desejada do futebol brasileiro já que o craque aceitaria ser transferido para a Itália. Diante do fascínio que Placar demonstrava a respeito do modelo europeu, a revista não avaliava com clareza que a fuga de estrelas de primeira grandeza como Sócrates era resultado da própria racionalidade empresarial defendida pela revista, mas que no caso era aplicada pelos clubes estrangeiros.

Em mais uma ocasião o atraso estrutural era apontado como responsável para justificar a derrota do futebol nacional. Vencido pela modernidade do exterior, restava ao semanário recolher os cacos do modelo que havia sido elaborado com tanto esmero.

Primeiro veio de Roma, depois de Údíne, agora vem de Florença. A Fiorentina le­vou Sócrates, como PLACAR da semana passada já informara. Dei­xou, assim, o futebol brasileiro ainda mais pobre e no exato mo­mento em que as cabeças de nos­sos dirigentes começam a perce­ber o óbvio, ou seja, que um campeonato deve ser disputado em turno e returno, com pomos corridos. Estamos, como sempre, pondo as trancas na porta arrombada. Mas antes tarde do que nunca, como ensinou a Inconfidência Mineira. (PLACAR, nº 731, 25/maio/1984, p.3).

Atônito com o fracasso retumbante, Juca Kfouri reforçava pela última vez o caráter sobrenatural do jogador-filósofo ao afirmar que “com a misteriosa magia que cerca as pessoas acima da média, o Magrão foi tomando consciência de ser um predestinado.” (PLACAR, nº 731, 25/maio/1984, p.22) e encerrava a despedida com um melancólico “até a volta, Magro!”.

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Max Filipe Nigro Rocha

É graduado e mestre em História pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, realiza pesquisa de doutorado sobre futebol e política pela USP. Editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)e pesquisador do LUDENS (Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas) que integra pesquisadores da USP, Unicamp, Unesp e Unifesp.

Como citar

ROCHA, Max Filipe Nigro. As diversas faces de Sócrates – O Doutor-Imperador – Parte Final. Ludopédio, São Paulo, v. 96, n. 12, 2017.
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