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Tempos de decisão: somos à favor de toda a ciência ou só da ciência que nos interessa?

Natália Silva 10 de agosto de 2021

Copa América, Eurocopa e Olimpíadas já foram, mas uma coisa que ainda não saiu da minha cabeça foi a percepção clara do poder que a grande indústria alimentícia dos ultraprocessados e bebidas açucaradas têm sobre o mundo. Vendo aqui da nossa bolha, o poder que ela exerce sobre um aspecto da vida que teria que, teoricamente, preservar a saúde acima de tudo: o esporte. Sim, a coluna ainda é sobre esportes, meu foco de estudo ainda é o jornalismo esportivo, mas no assunto de hoje resolvi incluir saúde e alimentação.

Em meados de junho, quando se iniciava a Eurocopa e depois do susto que o mundo do futebol tomou logo na primeira rodada, por mais ou menos 24h, o assunto deixou de ser futebol e passou a ser “Cristiano Ronaldo esconde Coca-Cola em coletiva de imprensa”, ou algo parecido com isso. Em meios a tantos memes, brincadeiras e manchetes replicadas, uma coisa me chamou a atenção: a excelente oportunidade que jornalistas ditos defensores da ciência, em meio a uma pandemia, perderam de debater sobre alimentação, esporte e saúde.

Cristiano Ronaldo Coca-cola
Foto: Reprodução

Na minha cabeça, foi a primeira coisa que surgiu quando vi a cena da coletiva de imprensa. Fiquei ansiosa no Twitter esperando a genialidade de um colega para, enfim, poder compartilhar. Esperei, esperei, o outro dia chegou e nada. Por fim, o que vi foi um monte de gente que eu admiro postando sobre como Cristiano Ronaldo era chato por não querer que as pessoas abrissem a felicidade em paz. Lembro que vi uma jornalista comentando o quanto deveríamos falar mais sobre alimentação e esporte, mas abaixo do tweet dela tinha tanta gente reclamando que me soou até entendível que aquilo não viraria uma reportagem nem nada do tipo.

Comecei a pensar em representatividade, em porque aquilo me incomodou tanto e ainda sobre como, apesar de amar o jornalismo esportivo mais do que amo o futebol, não consigo me sentir representada por ele, mesmo estando inserida no meio. Isso pode soar louco e o texto pode parecer não fazer sentido algum, mas faz. Só preciso que me dê uma chance e chegue até o fim. Essa é minha estreia escrevendo para a ReNEme, no Ludopédio, uma responsabilidade da porra em um muito bom baianês, e não podia deixar de escrever sobre um assunto que me impacta, diretamente, como portadora de doenças crônicas não-transmissíveis em meio a uma pandemia que nos colocou com uma atenção ainda mais redobrada aos nossos tratamentos.

Mas voltando ao assunto, já virou clichê dizer que jogador de futebol não se posiciona, que as respostas em entrevistas não são bem dadas, mas pouco vejo falarem sobre como quem se posiciona (sobre qualquer coisa que acredite) é diminuído ou sobre como algumas perguntas são, simplesmente, mal feitas ou ganchos mal aproveitados. Longe de mim querer defender bilionário, nem deveria existir bilionário no mundo, mas já que o cara é e pode se dar ao luxo de bater de frente com uma multinacional tão rica e influente quanto ele, que a multinacional se defenda. Não eu ou quem tem milhares de seguidores e não para um segundo para refletir sobre o impacto do que posta e pensa menos ainda antes de levantar o dedo para reclamar de atletas que fazem, exatamente, a mesma coisa.

Sabe por que me incomodou tanto a defesa à Coca-Cola? O consumo de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas está relacionado a diversas doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como causa direta ou não. Dito isso, em 2019, segundo a Organização Mundial de Saúde, 7 das 10 principais causas de mortes no mundo foram as DCNTs. Além disso, o diabetes aumentou mais de 80% entre 2000 e 2019. Tudo isso está relacionado.

Cristiano Ronaldo
Foto: Reprodução Twitter

O Guia Alimentar para População Brasileira recomenda que seja evitado o consumo de alimentos ultraprocessados. Sendo que o protocolo para uso deste guia por profissionais de saúde da Atenção Primária em Saúde do SUS, elaborado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo em parceira com o Ministério da Saúde, traz a seguinte justificativa para essa recomendação:

“Por conta dos ingredientes, os alimentos ultraprocessados, como hamburguer, embutidos, macarrão instantâneo, salgadinhos de pacote, biscoitos salgados e recheados, entre outros, são nutricionalmente desbalanceados, ricos em gorduras, açúcares e sódio, muito pobres em fibras, vitaminas e minerais. Esses alimentos prejudicam o controle da fome e da saciedade e estimulam o comer sem atenção, induzindo ao consumo excessivo. Favorecem o aparecimento de obesidade, doenças do coração, diabetes e câncer, além de contribuir para o aumento do risco de deficiências nutricionais” (MINISTÉRIO DA SAÚDE; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2021)

No entanto, os próprios pesquisadores entendem que recomendar e explicar consequências para a população não é uma tarefa fácil. Isto porque não é somente o que enxergamos, claramente, com um alimento que não é natural e saudável que pode trazer consequências para a saúde.

“a publicidade dos alimentos ultraprocessados pode confundir o consumidor. Por exemplo, alerte as pessoas que alimentos ultraprocessados integrais (como pão integral empacotado), com alegações de saúde (“rico em fibras”) ou modificados (versões light ou diet) devem ser evitados. É comum, por exemplo, que o conteúdo de gordura de um produto seja reduzido à custa do aumento no conteúdo de açúcar ou vice-versa. A adição de fibras ou micronutrientes sintéticos aos produtos também não garante que o nutriente adicionado reproduza no organismo a função do nutriente naturalmente presente nos alimentos.” (MINISTÉRIO DA SAÚDE; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, 2021)

Em março desse ano, o Joio e o Trigo e The Intercept Brasil publicaram sobre como Nestlé, Danone, Bauducco e Pepsico conseguem enfraquecer políticas públicas brasileiras sobre rotulagem, para impedir que as pessoas sejam informadas sobre os riscos de consumir pseudo alimentos que essas corporações vendem como substitutos para comida de verdade.

Se pararmos para pensar em termos semióticos, o que significa o esporte? Do que ele é sinônimo? Saúde? Bem-estar? Qualidade de vida? Agora pense o que dá a impressão ao consumidor quando são associados alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas ao esporte. A prova do sucesso é o quanto as grandes corporações do setor investem em patrocínios e publicidade no meio esportivo.

A pandemia, por si só, devia ter deixado a população no geral e quem reporta as consequências dela, atentos a isso. Logo que o número de mortos começou a aumentar exponencialmente,  começou a ser noticiado o quanto pessoas com obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e outros males crônicos estavam em um risco ainda maior. Todo mundo começou a falar em comorbidades associadas.

E não é só com o futebol que essas marcas se relacionam, como eu disse, é com o meio esportivo no geral. É com extremo horror que eu assisto à propaganda da Sadia nos jogos da NBA, principalmente porque sou torcedora do Denver Nuggets. Além de, obviamente, tentar convencer o consumidor da excelente refeição que ele faz ao comprar os nuggets da Sadia, ainda induzem ao erro quando fazem parecer que a comida tem relação com o nome do time. Como se fosse uma boa ideia para mim, como torcedora da equipe, assistir aos Nuggets comendo nugget. Seria cômico se não fosse trágico, até porque o Nuggets é Nuggets porque a palavra significa pepita e é uma referência à corrida do ouro no estado do Colorado (EUA), onde a cidade de Denver está localizada.

NBA Sadia
Fonte: Divulgação

É lógico que não estou condenando quem depende de patrocínios de empresas como essa para sobreviver. Mas jornalismo é jornalismo e, se ele deixa de ser praticado  com independência do setor comercial, deixa de ser jornalismo e passa a ser publicidade pura. Também entendo que alguns colegas não possam criticar abertamente marcas associadas as empresas em que trabalham, até porque o ativismo por si só não paga boleto e todos precisam se sustentar, mas há uma diferença entre não criticar e sair em defesa desesperada de uma empresa que não precisa de você para sobreviver. Muito pelo contrário.

Li textos que falavam que a atitude de CR7 tinha mais a ver com o fato de que ele não estava lucrando, diretamente, com o patrocínio da Coca. Não vou dizer que não tinha nada a ver com isso, mas já o assisti falar em entrevista a uma emissora de televisão portuguesa sobre como não consome e não gosta que seus filhos consumam bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados, como o hambúrguer. E independente dos motivos dele, o gancho para o jornalismo esportivo trabalhar a pauta estava lá.

Para finalizar o texto e os esclarecimentos, eu escrevi aqui que CR7 é o maior exemplo de atleta a ser seguido? Não. E nem acredito que o jornalismo e os jornalistas esportivos (influentes) deviam ter o exaltado como se fosse, este texto nem é sobre ele. A questão é que além de reportar, uma função primordial do jornalismo é aproveitar o gancho de assuntos do momento para falar de temas que não são, comumente, debatidos. Sabemos que dentro do nosso campo, por vezes, a editoria de esportes é tida como menos importante, onde ficam os menos qualificados. Pessoalmente, profissionalmente e como aprendiz de pesquisadora, sei que isso não passa de um entre tantos preconceitos tão comuns na sociedade, infelizmente.

No meio esportivo temos jornalistas tão dignos de “Pulitzer” quanto em outras editorias, mas cabe a nós também sair desse ciclo vicioso de fingir que o esporte, principalmente o futebol, está descolado do mundo, que não é uma peça tão importante no xadrez quanto as que somos acostumados a valorizar. A gente sabe que meme tem mais alcance nas redes sociais, mas não é só com o alcance que deveríamos nos preocupar e sim com o conteúdo que trabalhamos. Até porque, na análise de redes sociais já há algum tempo, felizmente, os números não são analisados a seco, então cabe a você decidir se quer ter um alcance vazio ou impacto e qual legado quer deixar ao novo futebol que um dia esperamos que seja construído. Um que trate humanos como humanos, de verdade, e não só para fingir ser despido de preconceitos, um futebol que honre o título de coisa mais importante entre as menos importantes da vida.

Referências

CASTELAR, Mazinho. Conheça a origem do nome da franquia Denver Nuggets. BSKT Brasil, 2021. Acesso em: 09 de agosto de 2021.

LEADING causes of death snd disability: a visual summary of global and regional trends 2000-2019. Organização Mundial da Saúde, 2020.  Acesso em: 09 de agosto de 2021.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia Alimentar para a População Brasileira – versão resumida. Ministério da Saúde, 2018. Acesso em: 09 de agosto de 2021.

MINISTÉRIO DA SAÚDE; UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Fascículo 1 Protocolos de uso do guia alimentar para a população brasileira na orientação alimentar: bases teóricas e metodológicas e protocolo para a população adulta [recurso eletrônico]. Editora MS.  Brasília, 2021. Acesso em: 09 de agosto de 2021.

OMS revela principais causas de morte e incapacidade em todo o mundo entre 2000 e 2019. Organização Pan-Americana da Saúde, 2020. Acesso em: 09 de agosto de 2021.

PERES, João. Como a indústria de ultraprocessados levou a Anvisa na conversa. O  Joio e o Trigo, 2021. Acesso em: 09 de agosto de 2021.

ZOCCHIO, Guilherme. ‘Fracasso’: doenças crônicas são 7 entre as 10 principais causas de morte no mundo. O Joio e o Trigo, 2020. Acesso em: 09 de agosto de 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Natália Silva

Jornalista, é doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal), estudando o jornalismo esportivo e a interseccionalidade raça-gênero, através da história oral de jornalistas negras. É membro do grupo de pesquisa Jornalismo Esportivo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Rede Nordestina de Estudos em Mídias e Esportes (ReNEme). Idealizou e produziu o projeto A Negra no Futebol Brasileiro, que fez parte das ações globais Black Lives Matter Football, #FootballPeople e Football v Homophobia, da Fare Network (Inglaterra). Atualmente, é parte do programa Mudjeris di li i di lá (programa de intercâmbio Brasil - Cabo Verde).

Como citar

SILVA, Natália. Tempos de decisão: somos à favor de toda a ciência ou só da ciência que nos interessa?. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 19, 2021.
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