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Thomaz Mazzoni & A formação de uma tradição jornalística (1a. parte)

Denaldo Alchorne de Souza 14 de dezembro de 2022

A invenção do espetáculo esportivo é simultânea a invenção de uma forma de escrita. O jornalista, ao “reescrever” um acontecimento, cria o espetáculo esportivo e produz a demanda para esse espetáculo, tornando-o visível como fenômeno social. Nesse processo, o jornalista não fica restrito ao evento em si. O ponto de partida é o jogo, o gol, a vitória, mas que, de modo algum, limita-se a este domínio social. Os esportes são formas de recuperar, através de eventos e atores, questões que, de modo mais ou menos consciente, estão colocadas na sociedade brasileira. A imprensa tem que dialogar com o leitor, mas, ao mesmo tempo, ela tem uma visão de mundo própria, com esperanças e interpretações específicas. Nas matérias produzidas, uns pontos são destacados, outros obscurecidos, analogias e metáforas são feitas, e narrativas são construídas.1

Thomaz Mazzoni foi um desses jornalistas que tiveram fundamental importância na consolidação do campo esportivo.2 O periódico em que ele mais se destacou, A Gazeta Esportiva, foi fundado em 1947, em São Paulo. Teve como origem o suplemento esportivo de A Gazeta, criado por Cásper Líbero em 1928. Inicialmente as edições circulavam somente aos sábados, sendo depois ampliada para as segundas. Nos outros dias, as notícias esportivas saiam em duas páginas de A Gazeta. Líbero morreu em 1943. Mas, em 1947, a sua Fundação resolveu incumbir Carlos Joel Nelli de organizar o novo periódico: A Gazeta Esportiva. Na equipe, o jornalista que mais se destacou era Mazzoni que, desde a década de 1930, já era uma referência impar no meio esportivo paulista.

O ítalo-brasileiro Thomaz Mazzoni já havia trabalhado desde 1918 em jornais como São Paulo Esportivo, O Combate, São Paulo Jornal, Diário Nacional e Estampa Esportiva. 3 Em 1928 se fixou em A Gazeta, onde logo depois se tornou redator-chefe e editor-chefe do suplemento “A Gazeta Esportiva”. Naquele mesmo ano, publicou a primeira edição de seu Almanaque Esportivo, obra que reunia registros detalhados dos principais acontecimentos esportivos do ano.

Na mesma época deu início a sua coluna “Olimpicus”, onde desenvolveu um diálogo direto com o leitor do jornal através de uma linguagem simples, permeada de gírias e expressões populares. Mazzoni renovou a linguagem do futebol, criando termos que sobrevivem até hoje, como os apelidos que deu aos principais clássicos paulistas: o São Paulo versus Palmeiras passou a ser chamado de “Choque Rei”, o Palmeiras versus Corinthians, de “Derby”; o Corinthians versus São Paulo, de “Majestoso”; e o São Paulo versus Santos, de “Clássico São-Sansão”. Os clubes também receberam apelidos: o São Paulo era o “Clube da Fé”; o Corinthians era o “Mosqueteiro”; o Palmeiras, “Campeoníssimo”; o Juventus, “Moleque Travesso”; e o XV de Novembro de Piracicaba, “Nhô Quim”.

Além dos almanaques anuais, Mazzoni publicou diversos livros sobre o futebol. Geralmente eram coletâneas de crônicas publicadas em jornal. O Brasil na Taça do Mundo (1938), Problemas e Aspectos do Nosso Futebol (1939), O Esporte a Serviço da Pátria (1941), História do Futebol Brasileiro (1950) são apenas alguns exemplos.

Mazzoni
Thomaz Mazzoni. Foto: Divulgação

Em 1947, passou a trabalhar na recém-fundada A Gazeta Esportiva. A equipe contava com Caetano Carlos Paioli, Miguel Munhoz, Dimas de Almeida, Olímpio Sá, José Silveira, Andrade Marques, Aurélio Bellotti, Plínio Ciasca, Hugo Carboni Sobrinho e tantos outros. Porém, era Thomaz Mazzoni quem definia as principais características do periódico. O grupo era homogêneo e possuía afinidade quanto aos questionamentos, problemas e soluções sobre os mais variados assuntos esportivos, especialmente com relação à seleção brasileira de futebol. Esta rejeição ao personalismo jornalístico ficava ainda mais característica quando observamos que, na década de 1950, o editorial intitulado “Bom dia” não tinha a assinatura de um jornalista ou departamento específico. Era assinado por “Todos nós”. Mazzoni buscava constantemente as particularidades mais favoráveis dos jogadores, das equipes, do selecionado, como se tentasse provar para o leitor que era real a probabilidade do Brasil ser campeão mundial, como era real a condição do país como protagonista internacional. As críticas também eram feitas, mas dentro de uma perspectiva pedagógica, como uma forma de evitar novos erros em competições futuras.

Outra característica de Mazzoni era a sua combatividade. Em suas crônicas, podemos observar constantemente as lutas, as cruzadas empreendidas pelo jornalista em relação as mais diversas temáticas. O tom mais áspero poderia estar direcionado a um político, um dirigente, mas também aos próprios jornalistas esportivos de outros periódicos, acusando-os de “pessimistas perniciosos”, “derrotistas profissionais”, “interesseiros”, “antipatriotas”. O bairrismo também era frequentemente mencionado, não somente nos jornais cariocas quando cobravam a escalação de jogadores daquela cidade, como também nos periódicos paulistas. Nesses momentos, era enfático: mais importante que os interesses dos clubes, que os interesses da cidade e do estado, era o interesse do Brasil, dos brasileiros. Thomaz Mazzoni não era somente o jornalista esportivo mais influente de São Paulo, era um verdadeiro juiz crítico do jornalismo esportivo do estado e do país.

Mazzoni também se caracterizou pela busca do fato. Procurava no passado os dados estatísticos para provar as suas teses. Daí a preocupação em registrar os eventos esportivos no próprio jornal ou em almanaques. Um editorial, de 1957, mostrava muito bem o estilo do jornalista: “Ninguém deve deixar de aceitar, nas argumentações futebolísticas, comerciais, cambiais, etc., as estatísticas”. Afinal, “como argumentar, discutir, apresentar razões sem que isso seja feita à base das estatísticas, dos números e dos resultados. Comparar o que e de que forma? Eis a questão”. Pois, “as estatísticas comprovam (bem) a passagem de uma seleção pelos certames, dos conjuntos futebolísticos, através dos tempos, nos diversos torneios e amistosos internacionais ou nacionais”. Somente “com elas logramos apontar progressos ou quedas de potencialidade de uma seleção”.4

Em relação às constantes derrotas da seleção brasileira em competições internacionais, dizia que os fracassos nas Copas de 1938, 1950 e 1954 não podiam ser buscados em narrativas teleológicas. A explicação era feita na própria compreensão das evidências, na análise dos dados e no entendimento dos fatos. E em termos estatísticos, às vésperas da Copa de 1958, a seleção brasileira era a que mais acumulava dados favoráveis na competição. Era a única que havia disputado todas as Copas, a que tinha participado de mais partidas, a que havia feito mais gols e era a terceira em número de vitórias.5 Se dessem 2 pontos por partida vitoriosa e 1 por empate em todas as partidas nas cinco Copas do Mundo já disputadas, os brasileiros somariam 21 pontos e dividiriam a primeira posição com os uruguaios e italianos, bicampeões mundiais.6 Para Mazzoni, era apenas uma questão de tempo para que a equipe brasileira se consagrasse campeã mundial. Os dados estatísticos confirmavam a sua tese. Se fracassou nas competições anteriores, com destaque para 1950 e 1954, foi principalmente devido o peso da responsabilidade que caiu sobre os ombros dos atletas. Eles não suportaram o favoritismo em 1950, e não suportaram o medo da derrota em 1954. Para o jornalista, era necessário que a equipe possuísse “uma primorosa conduta disciplinar dos vinte e dois craques escolhidos para o cumprimento da árdua empresa”, transformando o clima de camaradagem e de compenetração de deveres numa arma preciosa nunca antes experimentada.7 E, às vésperas da Copa de 1958, Mazzoni afirmava que a equipe aprendera com os erros do passado e que possuía o espírito de disciplina, obediência e confraternização necessário para a conquista do certame mundial.

O estilo jornalístico desenvolvido por Mazzoni ficava mais evidente quando comparávamos com os trabalhos de outro grande nome da imprensa esportiva da época: Mário Filho, do Jornal dos Sports, do Rio de Janeiro. Os dois foram profissionais emblemáticos. Eram pioneiros do jornalismo esportivo em suas respectivas cidades. No final da década de 1950, eram personalidades dominantes nos seus periódicos e referências obrigatórias nos demais, apesar da multiplicação de equipes e tendências existentes no mesmo período. E, ainda hoje, os seus estilos continuam sendo paradigmáticos dentro da imprensa esportiva brasileira.

O jornalista Mário Filho, ainda nas décadas de 1930 e 1940, havia assumido em suas matérias e livros a influência da ideologia da “democracia racial”, de Gilberto Freyre. Uma de suas características básicas era a dialética fundamental da sociedade brasileira entre elementos dionisíacos e apolíneos, com a predominância do primeiro aspecto. Mário Filho desenvolvia tais influências no universo do futebol brasileiro e construía, assim, uma história teleológica que tinha como objetivo final a consolidação de um processo civilizatório de uma nação que fosse pautada pelos ideais da integração racial, do profissionalismo, da mestiçagem e da disciplina. Era como se, através da análise do futebol, pudéssemos diagnosticar as virtudes e os problemas da sociedade brasileiro. Era como se o futebol fosse um verdadeiro “espelho”, um “reflexo” de toda a nação.

Mário Filho
Mário Filho. Foto: Reprodução / Autor desconhecido

Após a derrota brasileira na Copa do Brasil (1950), Mario Filho se afastou progressivamente da influência freyriana. E, depois da vitoriosa campanha na Copa da Suécia (1958), os seus escritos consolidaram uma nova característica: o caráter soteriológico do futebol brasileiro. Nessa nova narrativa, Pelé era o messias salvador e a salvação ocorreria através da conquista de títulos mundiais. Mário Filho assim quebrava a dialética existente entre aquelas duas categorias freyrianas fundamentais, com a predominância dos aspectos dionisíacos. Passava a ser fundamental, agora, a vitória, o resultado, o jogador clássico, o gol, o título, a ordem, o apolíneo.

Para Mazzoni, ao contrário, a relação do futebol com a sociedade brasileira não se dava por meio de certa “teoria do reflexo”, como em Mário Filho. Em seu livro O Mundo aos Pés do Brasil, Mazzoni dizia que, “a seleção representa, no futebol e só no futebol, a pátria da gente”.8 Ela poderia ser, no máximo, um caso exemplar. Se a seleção brasileira fosse vitoriosa, as qualidades da organização efetuadas pela comissão técnica, pela equipe e por cada jogador tornar-se-iam exemplar para os brasileiros. Então, no caso da Copa de 1958, a imprensa possuía a função de descobrir que qualidades foram essas que ajudaram a seleção a ser campeã. Desta forma, os jogadores poderiam repetir o feito nas competições futuras e a sociedade brasileira poderia ter um exemplo positivo a ser imitado. Aí, quem sabe, o Brasil poderia chegar um dia a ser considerado um país desenvolvido, com um povo civilizado; como era o seu futebol.

Mas, que características eram essas que serviriam de exemplo para toda a sociedade brasileira?

[Continua na 2a. e última parte ….]

Notas

1 LOPES, José Sérgio Leite. A vitória do futebol que incorporou a pelada. Revista USP, São Paulo, nº 22, jun. 1994, p. 82.

2 Além de Mazzoni, a cidade de São Paulo contava com importantes nomes do jornalismo esportivo como Paulo Várzea, Mário Cardin, Salathiel Campos e tantos outros. Também não podemos esquecer que na mesma época a crônica esportiva estava sendo desenvolvida em outras cidades do Brasil.

3 Tommaso Mazzoni nasceu em Polignano a Mare, na Itália, em 11 de março de 1900, e migrou com os familiares para o Brasil ainda criança, se estabelecendo na cidade de São Paulo.

4 BOM dia. A Gazeta Esportiva, 13 abr. 1957, p. 2.

5 A representação brasileira havia participado das cinco competições anteriores. Os franceses, belgas, italianos e suíços estavam presentes em quatro. Os brasileiros haviam participado até então de 17 jogos em finais de Copas do Mundo. Os italianos e uruguaios jogaram 13 partidas, os alemães 12, e os húngaros 11. Os brasileiros já tinham feito 48 gols. Os húngaros marcaram 47 vezes, os uruguaios 46, os alemães 39, e os italianos 33. Os brasileiros ganharam 9 vezes, somente atrás dos uruguaios e italianos com 10 vitórias, e na frente dos alemães e húngaros com 8 êxitos.

6 Os alemães somariam 17 pontos e os húngaros 16.

vii MAZZONI, Thomaz. No caminho certo. A Gazeta Esportiva, 3 jun. 1958, p. 3.

7 MAZZONI, Thomaz. O Mundo aos Pés do Brasil. São Paulo: A Gazeta Esportiva, 1958, p. 176. O livro é uma coletânea de artigos publicados em A Gazeta Esportiva durante a Copa de 1958.

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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Thomaz Mazzoni & A formação de uma tradição jornalística (1a. parte). Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 13, 2022.
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