177.7

Estado Novo e esportes: o discurso oficial (2ª e última parte)

Denaldo Alchorne de Souza 7 de março de 2024

[Continuação da 1ª parte]

Para os teóricos do Estado Novo (1937-1945), como Fernando de Azevedo e João Lyra Filho, a prática desportiva era vista como parte integrante de um projeto educacional mais extenso. Os esportes possuíam uma dupla função: o desenvolvimento eugênico dos brasileiros e a formação moral e cívica do jovem. Como parte do desenvolvimento eugênico da raça brasileira, a prática desportiva contribuiria para que o jovem operário se aproximasse de seu trabalho, de sua obrigação para com a sociedade e o Estado, com mais saúde, vigor e otimismo, possibilitando meios de recuperar-se da fadiga diária. Como parte da educação moral e cívica, os desportos e a educação física funcionariam como disciplinas auxiliares na construção de cidadãos íntegros e energéticos em condições de resistir aos ideais subversivos e degenerescentes, ensinando-os a viver em grupo e preparando-os para a defesa da nação. [1]

Vargas
Desfile em celebração do dia 1o. de maio no estádio de São Januário 1942. Foto: Arquivo Nacional

O esporte como espetáculo

Por outro lado, os esportes também eram importantes enquanto espetáculo cívico. Não havia como negar o papel de destaque que os eventos desportivos estavam ocupando no mundo moderno. Durante toda a década de 1930, os governantes presenciaram diversas competições, constatando o seu valor na divulgação do nome do país no exterior. Nas duas principais da época – a Olimpíada de Berlim em 1936 e a Copa do Mundo da França em 1938 – ficaram evidentes os lados negativo e positivo do espetáculo desportivo. Na primeira delas ficou manifesto que o descaso das autoridades poderia interferir negativamente na boa condução das relações internacionais. Já na segunda competição, o bom desempenho dos jogadores brasileiros na França possibilitou uma propaganda positiva do país na Europa. Numa competição de dimensão internacional centenas ou milhares de atletas representavam “todas as principais nações do universo, as raças mais variadas, desde os gigantes louros do Norte, finlandeses e suecos, até os minúsculos japoneses. Tanto os volumosos alemães, campeões de peso e martelo como os magríssimos hindus”.[2] Milhares de repórteres, de jornais, rádios, cinemas transmitiam para as mais diversas partes do mundo o que estava sendo realizado naquela praça desportiva. Milhões de espectadores comparavam o desempenho das equipes dos mais diversos países. Mais do que a vitória dos atletas, o que estava em jogo era a demonstração das virtudes e fraquezas de uma nação.

Internamente, as manifestações esportivas funcionavam como uma forma de propaganda dos ideais defendidos pelo regime. Sobretudo durante o Estado Novo, os eventos esportivos se tornaram verdadeiras festas cívicas. Estádios como o São Januário no Rio de Janeiro e o Pacaembu em São Paulo foram freqüentes palcos de manifestações públicas, de solenidades oficiais e de desfiles cívicos. O espetáculo representava um instrumento importante para mostrar a força do regime e para reforçar a imagem de uma sociedade baseada na felicidade, na ordem e na harmonia. João Lyra Filho chegou a sugerir que o governo instituísse o Dia dos Desportos: “É como se disséssemos o dia de confraternização de todas as classes sociais, de todas as atividades, dado ser altamente útil à nação que o desporto seja indistintamente praticado pelos elementos representativos de todas as vocações, de todos os interesses e de todos os ideais brasileiros”.[3] A inauguração do estádio do Pacaembu em abril de 1940 foi emblemática para exemplificar a importância do espetáculo esportivo para o Estado Novo. Das festividades participaram diversas autoridades governamentais como o presidente Getúlio Vargas, o interventor de São Paulo, o prefeito da capital paulista, representantes de outros Estados e de delegações estrangeiras. A programação dos festejos era rica em elementos simbólicos como: a condução da Bandeira Nacional do Rio de Janeiro até São Paulo, passando por todas as cidades menores; o desfile de dez mil atletas uniformizados; o juramento do esportista e os discursos dos representantes públicos.[4] Por último, as palavras do presidente da República: “As linhas sóbrias e belas da sua imponente massa de cimento e ferro, não valem, apenas, como expressão arquitetônica, valem como uma afirmação da nossa capacidade e do esforço criador do novo regime na execução do seu programa de realizações”.[5]

Todavia, não é só pela propaganda interna e externa que o evento desportivo passou a fazer parte da pauta de prioridades do Poder Público. Enquanto espetáculo funcionava também no disciplinamento da sociedade. No meio de um estádio lotado, não havia como negar a animação da multidão, a importância dos gestos, a explosão dos instintos, os xingamentos e as brigas dos torcedores. Segundo Lyra Filho: “O gesto, e não as ideias, é o veículo da emoção coletiva, interessa ao Estado regular o sentido desse gesto, para disciplinar as emoções a que dá causa, de modo que sirva de retempero às energias necessárias à vida e não de força negativa, geradora do desencanto e da dispersão, que preparam a desordem moral e dão causa à desordem social”.[6] Para o autor, foi pelos gestos que se movimentaram, propagaram e perpetuaram as doutrinas e religiões. Os gestos seriam os meios de que servem os “dominadores das massas, na projeção do seu poderio ou na animação contagiante do entusiasmo, a serviço das causas que desfraldam nas bandeiras partidárias”.[7] Os sinais, atitudes e exclamações dos esportistas teriam a força de personalizar movimentos sociais que poderiam levar à redenção ou ao aniquilamento de um povo. As necessidades emocionais que antes eram satisfeitas em formas mais estéticas encontravam agora, nos espetáculos desportivos, formas mais acessíveis ao maior número de pessoas. A iniciativa privada, que naquele momento estava adotando o profissionalismo no futebol, não teria meios de reprimir os excessos dos torcedores nos estádios, nem de suprir a apatia e o desânimo também considerados nocivos. Era necessária a intervenção direta do Estado como forma de disciplinar o espetáculo desportivo.

Uma visão precipitada poderia defender que a adoção do profissionalismo ajudava na consolidação da ideologia estadonovista do enaltecimento do trabalho. Os jogadores profissionais seriam vistos não somente como símbolos de uma democracia racial, mas como trabalhadores que tinham uma profissão reconhecida pelo Estado. Porém, para os ideólogos do regime, o jogador profissional não era visto desta forma. O trabalhador de carteira assinada era considerado um cidadão, porque praticava uma atividade construtiva que contribuía no engrandecimento da nação. Ele criava riquezas. Os esportes eram vistos como parte integrante da educação física e social dos indivíduos e, nesse sentido, não comportaria o ganho salarial. A profissionalização do jogador de futebol era interpretada como uma degenerescência. O atleta era pago não porque contribuía na construção de riqueza, mas porque simplesmente divertia as multidões. Pior, ele era pago para transformar o futebol de uma diversão ativa em uma atividade passiva. Nesses espetáculos, o torcedor se divertia sem participar do esforço físico. O comercialismo existente nos clubes brasileiros também trazia uma série de dificuldades para um salutar desenvolvimento esportivo. Não existia mentalidade olímpica, nem preocupação com a cultura física. Os clubes não passavam de “centros de diversões, mais ou menos mercantilizados”.[8] Eles tinham mais a função de acentuar a projeção social de seus membros, do que promover hábito esportivo entre os jovens. Daí a construção de instalações modernas e luxuosas em muitos clubes. Os associados viviam em constantes festividades despidas de qualquer interesse pelo esporte em si mesmo, “limitando-se a cooperar apenas com a presença a um espetáculo e não com sua energia a uma obra de finalidade social e eugênica”.[9] Quando ocorriam jogos entre os profissionais, os clubes tinham como único objetivo o lucro das bilheterias. Segundo o anteprojeto de lei elaborado pela Secretaria de Segurança Nacional, ocorria uma série de desregramentos no mundo esportivo: “Onde, a par de uma politicagem insidiosa e nefasta, impera a insaciável ganância dos lucros de bilheteria. Pouco importa as condições físicas e psicológicas ocasionais dos desportistas; é mister vender entradas, para obter uma boa renda. Sacrifica-se dessa forma, inadvertidamente talvez, uma plêiade de jovens, em vez de se lhe proporcionar os benéficos efeitos advindos da boa prática desportiva”.[10]

O espetáculo desportivo era aceito, mas dentro de uma lógica diferente. Para Fernando de Azevedo, a verdadeira representação brasileira em torneios internacionais somente existiria depois de efetuadas diversas competições entre os membros de um município, de um Estado e de um país. Somente em tais condições que “compareceriam os nossos atletas como produtos de uma grande seleção brasileira, iniciada por todo o país e apurada nos jogos solenes, em que de porta adentro, à sombra do estandarte nacional, erguido bem alto, bem visível, vibrasse, num só estádio, a própria alma da pátria”.[11] Se o profissionalismo era condenado, o amadorismo era visto como a forma ideal de instituir os esportes no país. Para isso, o poder público deveria lhe dar proteção e apoio. Numa carta, de 27 de novembro de 1940, remetida ao presidente Getúlio Vargas, o ministro Capanema dizia que: “Não se deve ainda esquecer a tendência, verificada entre nós, como em outros países, à profissionalização de grande número de atividades desportivas, fato […] que precisa ser objeto da máxima atenção dos responsáveis pela educação nacional, visto como não se pode deixar de reconhecer que somente o amadorismo desportivo constitui processo educativo por excelência, merecendo portanto do governo amparo especial e orientação conveniente”.[12] A mesma ideia foi normatizada no ano seguinte, no Decreto-lei nº 3.199, quando dizia que era competência do Conselho Nacional de Desportos (CND): “Incentivar, por todos os meios, o desenvolvimento do amadorismo, como prática de desportos educativa por excelência […]”.[13] Havia um entendimento por parte dos governantes de que os esportes estavam inseridos no processo educacional.

Os governantes também viam o profissionalismo como um importante elemento de desnacionalização. Na carta acima citada, o ministro Capanema dizia que: “No domínio das práticas desportivas, não raro podem implantar-se certos elementos de desnacionalização, e esta verificação é de molde a exigir medidas que, eliminando tais elementos, conservem os desportos permanentemente como um dos meios de educação cívica da mocidade e como uma viva expressão da energia nacional”.[14] Era uma referência clara do ministro aos perigos advindos do esporte profissional, no qual inúmeras associações tinham fortes ligações com elementos estrangeiros. Da maneira como foram criadas pelos imigrantes, as agremiações atuavam de forma desagregadora dos elementos nacionais. No Rio de Janeiro, grande parte dos clubes esportivos surgiu da colônia portuguesa que dava habitação, alimentação e assistência médica aos seus associados. Assim apareceram o Vasco da Gama, o Club Gymnastico Português, o Club Internacional de Regatas e outros. Já o Fluminense era originário de elementos brasileiros educados na Europa e de estrangeiros de nacionalidades diversas da portuguesa, principalmente inglesa. Em São Paulo, a fundação de clubes esportivos obedeceu a critérios semelhantes, como provam os clubes Palestra Itália, Portuguesa de Desportos, Syrio Libanês e Germânia. Cada nação estrangeira tinha seu clube. As diretorias eram quase sempre formadas por imigrantes. Os torcedores se dirigiam a essas associações pelo laço de sangue ou pela simpatia com determinada nação. Segundo um relatório do Ministério da Educação, a ligação dos clubes com os elementos estrangeiros: “É criação colonial pura. E as conseqüências do agrupamento da mocidade em associações despidas de toda e qualquer finalidade nacionalista redunda no culto natural à mentalidade que as originou”.[15] Esse culto “atua de forma profunda no subconsciente dos associados que repetem, na competição esportiva, os recalques raciais e históricos dos seus antepassados, originando-se, assim, rivalidades que acabam fomentando os regionalismos e os bairrismos tão prejudiciais à formação do espírito de brasilidade”.[16]

Mas se o profissionalismo era uma realidade, cabia ao Estado encontrar meios de mantê-lo sob seu controle. De acordo com o Decreto-lei nº 3.199, competia ao CND: “Exercer rigorosa vigilância sobre o profissionalismo, com o objetivo de mantê-lo dentro de princípios de estrita moralidade”.[17] Além disso, ficava determinado que nas exibições desportivas públicas de profissionais, nenhum quadro nacional poderia figurar com mais de um jogador estrangeiro.[18] Caso as normas não fossem seguidas, cabia ao CND: “Intervir, por meio de agente da sua escolha, em qualquer entidade desportiva que, comprovadamente, se tenha afastado dos princípios inscritos na legislação desportiva do país”.[19] Portanto, o Estado aceitava o profissionalismo, mas dentro de restritos limites impostos pelo poder público. A este cabia vigiar o funcionamento das entidades profissionais, com o objetivo de assegurar uma constante disciplina da organização do clube e dos seus dirigentes.

Mas, como controlar os atletas? Para os teóricos, os jogadores brasileiros eram imaturos e ignorantes. Eram vistos como descontrolados, com instabilidades no sistema nervoso, sujeitos aos instintos e paixões. Já os europeus eram idealizados como pessoas controladas, educadas, com uma provisão de cultura e, por isso mesmo, com domínio de si mesmos. Segundo Fernando de Azevedo, se “espíritos esclarecidos bem cedo compreenderam a necessidade de darem uma orientação científica aos exercícios ginásticos […]; na maior parte, porém, das agremiações congêneres o que se vê é falsearem os esportes o problema fundamental e sacrificar-se o ideal higiênico ao triunfo da força bruta e a essa alegria bestial de atletas, que não conhecem senão seus músculos”.[20] Portanto, os jogadores precisavam ser educados e orientados. Porém, neste caso, a função educativa seria desempenhada por ninguém menos que a elite dirigente dos esportes no país, sob a supervisão do Estado. Para João Lyra Filho, o dirigente tinha que tratar seus atletas dentro de um estilo paternal e bondoso. Mas para que isso se realizasse era necessário que os jogadores aceitassem essa “prática educacional”. Sendo assim, os “irresponsáveis” jogadores de futebol somente seriam úteis à nação se fossem “educados” – leia-se controlados – por uma elite interna alfabetizada e civilizada. Segundo o autor: “Não se culpe a preparação psicológica dos jogadores brasileiros, mesmo à sombra do Hino ou da bandeira, por um mal que tem raízes na formação e perdura no estado orgânico e funcional do nosso povo. Só o poder de evasão do espírito, quando densamente cultivado, é capaz de atenuar os efeitos dos males crônicos”.[21] Para Lyra Filho, o controle não devia ser exercido somente durante as partidas, mas principalmente no cotidiano dos jogadores, em sua própria vida privada. Sem a “educação” feita pelos dirigentes, os aspectos irracionais se conservariam no jogador de futebol. Assim, o craque rebelde, o malandro, aquele que não queria ser “educado” por essa elite, que não queria aceitar seus valores ou não queria permitir o controle sob sua vida privada era visto como uma ameaça ao bem de toda uma equipe, de toda uma seleção e, por que não, de toda uma nação.

Outra preocupação constante dos teóricos do período era com o comportamento dos torcedores. Quando as multidões se aglomeravam nas praças desportivas, observava-se um momento de evasão que era “capaz de despi-las até ao próprio instinto”.[22] Se as leis e os regulamentos podiam controlar as atividades dos dirigentes e dos atletas, elas pouco podiam fazer em relação às manifestações instintivas dos torcedores. Como controlá-los? Como forma de disciplinar os torcedores, Lyra Filho sugeria a utilização de música durante os jogos. Para atenuar a força do instinto, que explodia em linguagens e manifestações apaixonadas, a música acalmaria os exaltados e animaria os deprimidos. “Apura e depura. Sufoca emoções contrariadas. Retempera a animação e nivela todos os espectadores num crescendo sem ímpetos que, afinal, é o fastígio da evasão, sacudindo-se como expressão de uma própria contingência psico-social”.[23] Daí, a necessidade de juntar aos espetáculos desportivos a execução de música, que adoçaria e suavizaria o ambiente tenso. De forma semelhante, Fernando de Azevedo sugeria a utilização de concursos de artes nos espetáculos esportivos:

Feliz, pois, para a nação, o dia, em que às provas de vigor e destreza se entrelaçarem, num feixe luminoso, nas mesmas tardes olímpicas, entre árvores e estátuas, os concursos de arte; em que o arquiteto, com seus planos de estádios, palestras, piscinas e escolas; o prosador e o poeta, com seus romances ou canções, em que se fizer a glorificação da força e da beleza; o escultor, que procurar na harmonia das formas a fonte de sua inspiração e der a solidez dos mármores às nuvens, flutuantes de suas alegorias; e o pintor e o músico, e, enfim todos os artistas, abrindo clareiras de espiritualidade nos torneios atléticos, contribuírem para a realização, entre nós, desses maravilhosos espetáculos de eurritmia antiga![24]

Outra maneira de disciplinar os espetáculos desportivos seria a utilização dos orientadores de torcidas. Esses arregimentadores teriam a função de educar o público que tenderia a simpatizar com um dos dois lados em disputa. Ao se defrontarem duas torcidas, a presença dos orientadores criaria um ponto de referência proveitoso, que ponderaria o entusiasmo sem perder a vibração do espetáculo. Para Lyra Filho, “a presença dos orientadores das torcidas é tão útil quanto a do maestro diante da orquestra sob sua regência”.[25] A torcida, sob a batuta do arregimentador, explodindo em manifestações uniformes e contidas pelo sentimento da disciplina, daria beleza e vida aos espetáculos.[26] A competição entre as torcidas seria ainda mais emocionante do que o jogo em si: “De um lado, ao sinal do líder, uma multidão partidária deixando-se levar pelo ritmo dos mesmos gestos, das mesmas palpitações, das mesmas manifestações a favor do seu Clube”.[27] Em contrapartida, “do outro lado, o mesmo quadro, armando uma luta de torcidas, cada qual das concorrentes disputando ser mais destra, mais apurada, mais viva, na maneira de imaginar e definir a vitória honesta de uma torcida sobre a outra”.[28] Portanto, com o concurso de música e a arregimentação das torcidas, os teóricos do regime pensavam ter encontrado uma forma de disciplinar as tão temíveis multidões que iam aos estádios patrocinar seus times.

Esporte e disciplina

Para os ideólogos do período estava evidente a associação entre as práticas desportivas e a construção da identidade nacional. Assim, era necessário neutralizar os modelos contrários ao pretendido, principalmente os do malandro e do subversivo. Com esse objetivo, os esportes desempenhavam uma dupla função: como parte integrante do projeto educacional e como forma de espetáculo cívico. Em ambos os aspectos o que ficava destacado era que a nação que se pretendia construir era calcada no ideal da disciplina.

Como educação cívica, os esportes eram fundamentais na construção de uma solidariedade e de uma identidade entre seus praticantes, levando-os a abandonar qualquer vestígio de individualismo ou “estrangeirismo”. A presença de regras a serem cumpridas, de juízes e de técnicos a serem obedecidos e de símbolos em comum a serem venerados colocava os praticantes perante uma realidade disciplinada. Já os esportes enquanto parte da educação eugênica contribuíam, primeiro, para a construção da riqueza da nação, onde o atleta proletário teria mais condições de suportar um dia de labuta com muito mais vigor e otimismo e longe da ética da malandragem. Em segundo, contribuíam na preparação da defesa da nação, onde o aprimoramento da força física do jovem esportista e a constância do aprendizado facilitaria a tarefa das Forças Armadas. Fosse na construção ou na defesa da nação, na fábrica ou no quartel, a ideia de disciplina sempre estava presente.

Quando os teóricos tratavam dos esportes como forma de espetáculo, ficava ainda mais evidente a ligação com o disciplinamento da sociedade. Se o amadorismo era visto como a forma ideal do espetáculo desportivo, o profissionalismo era tolerado, desde que sob a mais completa vigilância. Era papel do Estado encontrar formas de disciplinar os dirigentes, os jogadores e as torcidas. Quanto aos dirigentes, a consolidação de uma série de leis que tratavam dos esportes e a instituição de um órgão fiscalizador possibilitou ao governo manter a disciplina entre eles. Quanto aos jogadores, eram os dirigentes que ficavam incumbidos de educá-los e controlá-los. E quanto à torcida, era essencial encontrar meios de arregimentá-la, tirando dela as características mais primitivas e rebeldes.

Portanto, era a disciplina o aspecto mais importante do discurso oficial que tratava dos assuntos ligados ao esporte e à construção da identidade nacional. Os esportes coletivos, principalmente o futebol, possibilitavam ao povo brasileiro sublimar suas características individualistas e aprender a conviver em grupos de forma harmônica e disciplinada. Nesses esportes, a equipe, fruto da disciplina, seria mais importante que o jogador, da mesma forma que toda uma nação era mais importante que um indivíduo.[29]

Notas

[1] Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Estado Novo e esportes: o discurso oficial (1ª parte). Ludopédio, São Paulo, v. XXX, n. XX, 2024.

[2] Arquivo Gustavo Capanema, rolo 41, fot. 821, FGV/CPDOC.

[3] LYRA FILHO, João. A proteção do Estado aos desportes. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944, p. 48.

[4] O Estado de S. Paulo, de 28 de abril de 1940.

[5] Idem.

[6] LYRA FILHO, João. A função social dos desportos. Conferência. Rio de Janeiro: 1941. Mimeografado.

[7] Idem.

[8] Arquivo Gustavo Capanema, rolo 41, fot. 821, FGV/CPDOC.

[9] Idem.

[10] Arquivo Gustavo Capanema, rolo 41, fot. 834, FGV/CPDOC.

[11] AZEVEDO, Fernando de. A educação e seus problemas. Tomo II. São Paulo: Melhoramentos, 1958, p. 29-44.

[12] Arquivo Gustavo Capanema, rolo 42, fot. 274, FGV/CPDOC.

[13] Decreto-lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941.

[14] AZEVEDO, Fernando de. A educação e seus problemas, op. cit..

[15] Arquivo Gustavo Capanema, rolo 41, fot. 821, FGV/CPDOC.

[16] Idem.

[17] Decreto-lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941.

[18] Idem.

[19] Decreto nº 9.267, de 16 de abril de 1942.

[20] AZEVEDO, Fernando de. A educação e seus problemas, op. cit..

[21] LYRA FILHO, João. A função social dos desportos, op. cit..

[22] Idem.

[23] Idem.

[24] AZEVEDO, Fernando de. A educação e seus problemas, op. cit..

[25] LYRA FILHO, João. A função social dos desportos, op. cit..

[26] Idem.

[27] Idem.

[28] Idem.

[29] Um leitor desavisado poderá interpretar que o atual artigo defende a tese de que o futebol foi utilizado pelos governantes com o objetivo de construir uma ideologia nacionalista. Uma ideologia que buscava encobrir as diferenciações sociais e unir todos no engrandecimento da nação. A velha história de que o futebol é o “ópio do povo”. Na verdade, o principal objetivo do artigo foi identificar as principais características do discurso oficial a respeito dos esportes. O que algumas interpretações desconhecem é que existe uma grande diferença entre o discurso, seja ele qual for, e a prática política. Em outras palavras, se o Estado Novo defendia em seu discurso que os esportes deveriam ser utilizados como uma forma de disciplinar as massas, isso não quer dizer que esse discurso se efetivou na prática. Há uma substancial diferença entre o mundo ideal e o mundo real. Na verdade, as ideias, longe de serem impostas por um grupo a toda a sociedade, circulam e são apropriadas pelos trabalhadores, que lhes dão novos e diferentes significados. Assim, o que podemos perguntar é como as classes trabalhadoras receberam as concepções de esporte e identidade nacional produzidas pelos ideólogos do Estado Novo? Será que as ideias, relatos e imagens dominantes foram aceitos passivamente e reproduzidos pelos trabalhadores como se fossem “tabulas rasas”? Ou será que os trabalhadores deram novos significados ao projeto oficial, procurando construir uma resposta alternativa que resistisse à ideologia oficial ou a redimensionasse? Uma possível interpretação a tais questões podem ser encontradas no livro: SOUZA, Denaldo Alchorne de. O Brasil entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional. São Paulo: Annablume, 2008.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Estado Novo e esportes: o discurso oficial (2ª e última parte). Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 7, 2024.
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