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Tia Arlete só assiste aos pré-jogos

Leandro Marçal 14 de novembro de 2017

O vício na compreensão literal do mundo faz de mim um inocente. Demoro a entender como as coisas funcionam e viro uma criança incrédula, olhando para o horizonte ao descobrir que Papai Noel é um homem comum, fantasiado de vermelho para perpetuar uma antiga tradição.

Precisei de tempo para entender que a tia Arlete não era irmã do pai nem da mãe, mas a professora que iria acolher uma turma de 40 alunos entre a primeira e a quarta série. Ela deu aulas para toda minha família, décadas antes das distantes décadas dos meus primeiros estudos.

Aquela rigidez extrema pautava as recomendações de quem a conhecia bem. Tia Arlete era brava, não dava moleza. Não era fã de futebol e dava broncas nos que estivessem debatendo o assunto, mas incentivava as práticas esportivas em atividades diversas. Descobri minha criatividade ao inventar desculpas para fugir do basquete, vôlei, atletismo, handebol e todas as modalidades possíveis na quadra da primeira escola.

Suas roupas eram um tanto estrambólicas e só na metade do ano me dei conta que ela se vestia de verde e amarelo ao menos uma vez por semana, invariavelmente no dia em que a classe se enfileirava no pátio para cantar o hino nacional. E ai de quem fosse flagrado mexendo a boca disfarçadamente e sem cantar: na volta à sala, reclamava da vergonha que passou e ficávamos uma semana estudando para cantarmos mais alto que o resto do colégio dali a sete dias.

Tia Arlete andava com uma bússola em um ambiente urbano, o que era estranho para mim. Amava os escoteiros e todo tipo de educação que disciplinasse “essa geração mal educada”. Com ela, aprendi (na marra e com medo) os hinos: nacional, da independência, à bandeira, da proclamação da república, do soldado, da cidade e quantos mais já foram escritos.

Não houve quem não tenha respirado com alívio ao fim do ano letivo. Muito menos quem esquecesse os discursos nas aulas de História e Geografia, enaltecendo o Brasil e sua grandeza esquecida.

Não via tia Arlete há quase vinte anos, até encontrá-la no mercado. Reconheci sua voz inconfundível reclamando da falta de respeito por poucos caixas abertos. Há fila até para pagar, ela disse. Sua satisfação ao encontrar um ex-aluno com trabalho, longe das celas, livre das drogas e vivo se fez notória em seu sorriso amarelado. Certa tristeza só se fez notar na reclamação quanto ao valor da aposentadoria, sempre uma miséria. Sorte ter dado aulas e poupado por todos esses anos, me dizia enquanto olhava a bússola verde e amarela.

Convidei-a para tomar um café em casa e ela só aceitou depois de olhar o relógio e perceber que faltavam menos de vinte minutos para o início de mais um jogo do Brasileiro. Mas ela nunca gostou de futebol, o que acontecia? Teria se rendido ao ópio do povo depois da velhice?

durante o jogo amistoso Japao x Brasil, realizado no Estadio Pierre Mauroy em Lille na Franca, preparativo para a Copa da Russia de 2018.
Seleção brasileira durante a execução do hino nacional. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Minha tese plagiada de que as pessoas não mudam se fez coerente quando ela citou uma lei de 2016 que obriga a execução do hino nacional em eventos esportivos. Só não imaginava que ela se postaria em pé, com as mãos para trás – “não se põe a mão no peito na hora do hino”, lembrei-me de suas lições – no pré-jogo. Porque foi só para isso que ela topou o cafezinho: para se deliciar ao ouvir o “Ouviram do Ipiranga…”.

– É uma vergonha esses jogadores milionários não cantarem a canção mais linda do mundo, uma tristeza para o Brasil.

Não ousei falar em nacionalismo barato ou exagero em tocar o hino antes de jogos entre times daqui. Senti medo de uma bronca como as das primeiras séries. Se dependesse da tia Arlete, a melodia inconfundível seria entoada antes dos jornais na TV, da missa de domingo e dos encontros entre amantes.

Se naqueles tempos da escola ela só se envolvia com futebol em época de Copa do Mundo, agora havia motivos para acompanhar todos os jogos nacionais. Ou ao menos os pré-jogos.

– Sempre em pé. Também faço isso ao ver os pódios da Fórmula 1 e dos esportes olímpicos. Agora está mais difícil porque meus joelhos doem, mas eu levanto quando tocam qualquer hino ao redor do mundo.

Nem deu tempo de passar o café, foi só o árbitro apitar o começo do jogo para tia Arlete se mostrar enfadonha e ir para casa. Nem perguntei qual seu time, questão folclórica entre os grupos de alunos daquele tempo distante. Ela só voltou para pegar a esquecida bússola. Tia Arlete não confia em GPS.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Leandro Marçal Pereira

Escritor, careca e ansioso. Olha o futebol de fora das quadras e campos. Autor de dois livros: De Letra - O Futebol é só um Detalhe, crônicas com o esporte como pano de fundo publicado (Selo drible de letra); No caminho do nada, um romance sobre a busca de identidade (Kazuá). Dono do blog Tirei da Gaveta.

Como citar

MARçAL, Leandro. Tia Arlete só assiste aos pré-jogos. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 14, 2017.
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