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Torcidas, futebolistas: zigue-zague de alegrias e tristezas

Danielle Torri e
Eduarda Moro,
Obrigado.

Uma das cenas mais deprimentes que presenciei em estádios de futebol aconteceu em um clássico em Florianópolis, entre Avaí x Figueirense. O encontro foi na Ressacada, estádio do Azurra, valendo pelo Campeonato Brasileiro da Série B de 2013. O primeiro tempo terminou com a vitória dos visitantes por quatro a zero, e com a vantagem de um jogador a mais em campo porque Alex Lima fora expulso depois de agredir Rafael Costa, atacante alvinegro que, no entanto, fora revelado pelo rival. Não havia VAR, mas a árbitra assistente Fernanda Colombo estava atenta e assinalou a falta fora do lance de jogo. Mesmo pressionada pelos da casa, não titubeou no aviso ao árbitro Elmo Alves Resende Cunha.

Perder não é agradável, por goleada ainda pior, e as chances de reversão na segunda etapa eram pequenas. Mas, a vergonha foi protagonizada pela torcida do Avaí, que no intervalo da partida, em bom número, deixou o estádio. Lembro-me da longa fila de automóveis que ocupava a rodovia que hoje é chamada de João Nilson Zunino, em homenagem a um já falecido presidente do clube.

É evidente que um torcedor tem o direito de protestar, ainda mais perdendo para o maior rival, por quatro a zero, em casa. Mas é feio abandonar a equipe antes de a partida terminar, fugindo do compartilhamento da derrota, deixando a ruína por conta de jogadores e comissão técnica, como se quem senta nas tribunas nada tivesse a ver com o que acontece com seu time, principalmente nos reveses. Em um tempo como o nosso, em que tudo se reduz ao consumo e que ser cidadão é ser consumidor, não espanta que, insatisfeitos com a derrota, batam em retirada. Agem como clientes que, antes de torcedores, é ao que se reduzem: vão ao estádio exigindo que o espetáculo seja correspondente ao que investiram. A elitização das arenas, com ingressos a preços escorchantes, não ajuda a reverter essa tendência.

Quando vejo, no entanto, que clubes como Santa Cruz, Fortaleza, Paysandu e Bahia levaram e levam multidões às arquibancadas, mesmo ao frequentarem a Série C, penso que o futebol ainda movimenta algum tipo de emoção positiva. É a mesma sensação que me assalta ao me lembrar de uma imagem que, passadas quase duas décadas, ainda me toca. Em 2005, o Atlético Mineiro foi rebaixado para a Série B, depois de uma campanha muito ruim ao longo de todo o torneio. A tentativa de um arranque final não teve êxito, e na penúltima rodada, em empate contra o Vasco, o descenso se sacramentou. Nos minutos finais do jogo, a torcida não deixou por menos. O Mineirão viu muitos se levantarem para cantar o hino do clube, em apoio, frente à dureza que seria o ano seguinte. Ficou gravado em minha memória o rosto de uma senhora que, em lágrimas e a plenos pulmões, bradava “Clube Atlético Mineiro / Galo Forte Vingador”.

O arqueiro titular do time rebaixado, que no jogo contra o Cruzmaltino defendeu um pênalti cobrado por Romário, era um promissor atleta: Bruno, que poucos anos depois seria o principal responsável pelo sequestro, assassinato e desaparecimento do corpo da mãe de seu filho, Eliza Samudio.

Poucos meses antes de ser preso, saíra-se, aliás, com esta, ao defender um colega de clube (nós, homens, não raro, somos condescendentes com crimes de outros homens): “Muitos que são casados sabem que, às vezes, em um relacionamento, é preciso uma discussão, ou até mesmo algo mais sério. Quem nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher? Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher, xará. Quando a adrenalina está alta não tem lugar” . É notável nossa capacidade de normalizar a barbárie. Críticas foram feitas às declarações do jogador, mas nada de substancial foi realizado, menos ainda pelo Flamengo, clube que era seu empregador. Isso tudo foi em 2010, quando o goleiro já era uma realidade cotada para a seleção principal e alvo de comentários de que se transferiria para o Milan. A indignação gerada em relação aos recentes casos de estupro cometidos por futebolistas famosos (e a rediscussão de situações ocorridas há muito tempo) mostra que algo, ainda que de forma insuficiente, mudou.

Feita essa digressão, volto às torcidas, esse movimento capaz de coisas bonitas e de outras terríveis. Escarnecer da morte de adversários, como meia dúzia de avaianos fez ao imitar pateticamente um avião em direção aos aficionados da Chape; disparar um sinalizador na direção dos torcedores de outro time, como os corintianos em Oruro, gerando o homicídio de um menino de 14 anos; ameaças a jogadores e a suas famílias nas redes sociais, enfim, o rosário de maldades e crimes é grande. A torcida de futebol que me emociona, e me incomoda quando não apoia seu time, é a mesma que me exaspera e que me faz desvaler o futebol.

Pensando bem, é também o que acontece com jogadores e treinadores, e então o comentário sobre os malfeitos de Bruno talvez não tenha sido exatamente uma digressão. Embora de derrota, me agradava assistir às imagens da final do Brasileiro de 2002, realizada em duas movimentadas partidas entre Corinthians e Santos, com vantagem para o grande clube da Baixada. No segundo jogo o atacante Robinho teve uma atuação memorável, não só pelas famosas pedaladas que venceram o lateral Rogério. Quem vê aquele garoto, cuja camiseta parecia um número maior do que deveria, correndo, fintando, dando passes e cobrando o pênalti como se fosse um veterano, para depois ser carregado nos ombros dos torcedores, sente o gosto amargo dos fatos do presente.

Robson de Souza, o mesmo das desconcertantes jogadas, cometeu o hediondo crime de estupro. O Superior Tribunal de Justiça do Brasil, em medida civilizatória e que considera os direitos fundamentais da pessoa, acolheu o pedido de seu congênere italiano, para que o condenado cumpra no Brasil a pena que lhe foi imposta. Cada um deve arcar com suas responsabilidades, sejam elas pessoais ou coletivas. Estejamos atentos às nossas.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Torcidas, futebolistas: zigue-zague de alegrias e tristezas. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 23, 2024.
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