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Tradição, modernidade, sustentabilidade e superexploração da força de trabalho: a produção do espaço urbano no Catar

Fernando da Costa Ferreira 28 de dezembro de 2022

Em 2010, a FIFA anunciou a escolha do Catar como país-sede da Copa do Mundo de 2022. Para a pequena nação localizada no Golfo Pérsico, rica em jazidas de petróleo e gás natural, a realização do megaevento representaria o ápice de uma política que procura utilizar o esporte como elemento de soft power em nível local e global, fundamental para quem precisa se equilibrar entre Arábia Saudita e Irã. Um exemplo emblemático é a compra do clube francês Paris Saint-Germain, onde atuam os dois maiores nomes da competição recém-terminada: Messi e Mbappé.

Ainda que se trate de uma nação minúscula territorialmente e com população inferior a três milhões de habitantes, os gastos estimados desde 2010 superam a casa dos 200 bilhões de dólares. Ao justificar investimentos de tamanha monta, o governo catari informou que grande parte das despesas tem relação com obras de infraestrutura previstas no plano governamental Qatar Nation Vision 2030, com metas para o desenvolvimento da nação nos âmbitos econômico, social, humano e ambiental. A competição serviria, portanto, para acelerar em oito anos o cronograma de investimentos já existente.

No campo do futebol, o Estádio Internacional Khalifa passou por uma remodelação e sete novos equipamentos foram construídos (o Ahmad Bin Ali foi erigido no mesmo terreno da estrutura homônima já existente). Ao custo estimado em 6,5 bilhões de dólares, se destacam pelas linhas arquitetônicas arrojadas que, em sua maioria, remetem a elementos da cultura local, além da preocupação com a sustentabilidade e com o destino pós-Copa. O Estádio 974, por exemplo, será desmontado podendo vir a “ressurgir” total ou parcialmente em outros pontos do planeta.

A construção de maior visibilidade, por sua vez, é o Estádio de Lusail, que sediou dez partidas, incluindo a eletrizante final entre Argentina e França. Com capacidade para 88.966 espectadores, conta com um sistema de climatização que utiliza a energia solar e recebeu a classificação máxima do Sistema de Avaliação de Sustentabilidade Global. Seu formato remete às tradicionais tigelas artesanais utilizadas para servir tâmaras e a iluminação tem inspiração em um tipo de lanterna local chamado fanar.

Fachada do Estádio de Lusail. Fonte: Unsplash.

Terminada a Copa do Mundo, o opulento equipamento será refuncionalizado e transformado em um espaço comunitário. Seus novos usos poderão incluir habitações populares, academia, locais destinados à alimentação, posto de saúde e escola. Apesar da provável efemeridade da forma-função como estádio de futebol, sua edificação serviu como ponta de lança para a realização de um ambicioso projeto orçado em 45 bilhões de dólares: a “cidade do futuro” de Lusail.

Localizada a cerca de 20 quilômetros da capital Doha, em uma área de 38 km², o sítio onde se encontra Lusail é dotado de grande valor simbólico e histórico. O local serviu de moradia e nele está enterrado o xeque Mohammed bin Thani, fundador da nação. O governo ambiciona a construção de uma cidade inteligente e sustentável para até 250.000 habitantes, que busca zerar suas emissões de carbono, algo significativo para um país que lidera o ranking global de emissão de CO2 per capita. Entre outras inovações, o esgoto será tratado e reutilizado no resfriamento de cada um dos seus 19 distritos, gerando uma economia anual de 65 milhões de toneladas de dióxido de carbono.

Vista aérea de Lusail, com o estádio iluminado em destaque. Fonte: Wikipedia

O uso político do futebol, em razão da sua dimensão global, muitas vezes escapa ao controle dos atores hegemônicos. A visibilidade alcançada pelo Catar mostrou a boa parte da população do planeta um lado que as autoridades locais faziam questão de mascarar. Por trás de todo verniz de modernidade, temos uma nação com um governo autoritário, que impõe à população feminina um papel subalterno e discrimina fortemente a população LGBTQIA+. Outra faceta exposta é a da superexploração de milhões de trabalhadores imigrantes oriundos de regiões paupérrimas, que sofrem um contínuo processo de exploração, silenciamento e invisibilização.

Quase 90% da população residente é composta por estrangeiros. Ainda que haja um número expressivo de empresários, comerciantes e técnicos qualificados oriundos de boa parte do planeta, a grande maioria é composta por homens jovens e adultos, muito pobres, vindos de nações como Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. Há também contingentes significativos de africanos, além de mulheres filipinas, contratadas para serviços domésticos. Não por acaso, o país é um dos campeões mundiais em concentração de renda.

Jurgen Klopp, treinador do Liverpool, manifestou a sua contrariedade quanto à realização da competição, em razão das constantes denúncias de desrespeito aos direitos humanos. Ainda que a Copa tenha sido transferida para os meses de novembro e dezembro, devido ao calor inclemente do verão local, “ninguém” parece ter atentado ao fato de que os estádios e a infraestrutura necessárias para a realização do megaevento esportivo não surgiriam espontaneamente. Para que a “magia” acontecesse, milhares de pessoas foram obrigadas a trabalhar em condições desumanas. Klopp questionou também a omissão de parte da imprensa, ao transferir para os atletas, a responsabilidade de se posicionarem de forma crítica à FIFA e ao governo do país, papel que competiria a ela.

No final de novembro, o secretário-geral do Comitê Supremo para a Entrega e Legado do Catar, Hassan al-Thawadi admitiu, pela primeira vez, que o número de mortes de operários envolvidos nas obras para o evento oscilaria “entre 400 e 500”, muito superior aos apenas 3, até então oficialmente declarados, porém, bem abaixo das 15.021 vidas perdidas, informadas no relatório da Anistia Internacional, cifra igualmente contestada pela impossibilidade de provar que todos esses trabalhadores tenham morrido em função das obras para o Mundial. A falta de transparência dos órgãos governamentais, praticamente inviabiliza que haja um consenso a respeito desse quantitativo. 

Além das jornadas laborais exaustivas, esses trabalhadores habitam alojamentos superlotados e mal ventilados, localizados em áreas afastadas dos distritos frequentados pela população de maior poder aquisitivo. Não bastasse a exploração patronal (incluindo o não pagamento de salários), há também denúncias contra as redes de recrutadores que “patrocinam” a vinda desses grupos ao país, com quem contraem dívidas, por vezes, impagáveis.

Em razão da pressão internacional, o governo local reformou a legislação trabalhista (incluindo o direito ao salário mínimo para todos os trabalhadores) e promoveu mudanças no sistema conhecido como kafala, onde o empregado dependia da autorização do empregador para mudar de emprego ou de país. Na prática, o empregador se tornava “dono” do empregado, limitando o direito de ir e vir, confiscando seus passaportes, ameaçando-os de prisão e deportação. Segundo a Human Rights Watch, na prática, tais alterações ainda estão distantes de terem sido plenamente implantadas.

Para uma nação que investiu cerca de 200 bilhões de dólares em estádios e obras de infraestrutura, quantos barris de petróleo ou metros cúbicos de gás natural seriam necessários para garantir a esses seres humanos, condições dignas de sobrevivência para que continuem atuando em prol da reprodução do capital? Cada obra magnífica que surge no meio do deserto reflete a produção contraditória de espaços urbanos marcados pela modernidade e sustentabilidade, a partir de relações de exploração humana próximas ao trabalho escravo. O país que procura projetar, a partir de suas cidades futuristas, uma imagem global como ícone da modernidade reproduz práticas que deveriam ter sido abolidas há séculos. 

Referências

DW. Copa do Mundo: Catar fala em “400 a 500” operários mortos. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/copa-do-mundo-catar-fala-em-400-a-500-oper%C3%A1rios-mortos/a-63931676 Acesso em 22 de dezembro de 2022.

_______. Quantas pessoas morreram por causa da Copa do Mundo no Catar? Disponível em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/89/Artist%27s_rendering_of_Lusail_when_completed.jpg Acesso em 20 de dezembro de 2022.

G1. Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz relatório da ONU. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/brasil-tem-segunda-maior-concentracao-de-renda-do-mundo-diz-relatorio-da-onu.ghtml Acesso em 20 de dezembro de 2022.

MATTOS, Rodrigo. Copa do Qatar gasta 13 vezes valor do Brasil e faz retoques de última hora. Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/copa-do-mundo/2022/11/20/copa-do-qatar-gasta-13-vezes-valor-do-brasil-e-faz-retoques-de-ultima-hora.htm Acesso em 20 de dezembro de 2022.

MIGRAMUNDO. Sob o sol do Qatar, imigrantes que atuam nas obras da Copa do Mundo sofrem com escravidão e morte. Disponível em: https://migramundo.com/sob-o-sol-do-qatar-imigrantes-que-atuam-nas-obras-da-copa-do-mundo-sofrem-com-escravidao-e-morte/ Acesso em 20 de dezembro de 2022.

QATAR2022. Stadiums. Disponível em https://www.qatar2022.qa/en/tournament/stadiums Acesso em 20 de dezembro de 2022.

SKY SPORTS FOOTBALL. “YOU journalists should have sent a message!”: Klopp SLAMS Qatar World Cup. YouTube, 5 de novembro de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OXJ3KJ8K0Sg

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Fernando da Costa Ferreira

Doutor em Geografia pela UERJ. Professor do Instituto Benjamin Constant. Autor da tese O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. Apesar de sofrer (e se desesperar) com o seu time, se orgulha de ter feito com que Fernanda e Helena (ainda que sem qualquer chance de escolha...) herdassem a paixão paterna.

Como citar

FERREIRA, Fernando da Costa. Tradição, modernidade, sustentabilidade e superexploração da força de trabalho: a produção do espaço urbano no Catar. Ludopédio, São Paulo, v. 162, n. 28, 2022.
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