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Transmasculinidades no/do futebol

Wagner Xavier de Camargo 9 de agosto de 2020

No Dia Nacional da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro de 2020, o mundo futebolístico foi surpreendido com o anúncio de uma metamorfose que vinha se desenvolvendo há certo tempo: o jogador Marcelo Nascimento Leandro, com larga experiência no trato com a bola no futsal e futebol brasileiros, anuncia a “nova identidade” de gênero e se reconhece como homem trans, isto é, alguém que foi designado mulher no nascimento, mas que sempre se reconheceu no gênero oposto. Talvez tal anúncio possa ser considerado um marco na história do futebol nacional.

Claro que temos outros exemplos de pessoas “transgênero” (oposto de cisgênero, que admitem seus gêneros atribuídos no nascimento) no meio esportivo do país, como Tifanny Abreu, uma mulher trans no voleibol, da equipe Vôlei Bauru e que tem se destacado na Superliga; ou Juliano Ferreira, primeiro fisioculturista homem trans a competir em categorias convencionais; ou, ainda, o já falecido João Nery, o “primeiro homem transexual brasileiro” (como ele se reconhecia), que, nos anos 1960, competiu e ganhou inúmeras medalhas na modalidade dos saltos ornamentais.

Porém, a emergência de nominações como transmasculinidades no cenário do esporte brasileiro (igualmente no futebol) é um fenômeno recente, que tem mobilizado, inclusive, ativistas, professoras/es de Educação Física e pesquisadoras/es cis e transgênero de várias instituições, a exemplo de Leonardo Morjan de Britto Peçanha (Univ. Salgado Filho/RJ), Bruno Santana (Univ. Estadual de Feira de Santana), Francisco Cleiton do Rego (Univ. Federal do Rio Grande do Norte/Natal), Julian Silvestrin (Univ. Federal de Santa Catarina/Florianópolis) e Maurício Rodrigues Pinto (USP/São Paulo).

Bandeira de Orgulho Trans. Fonte: Wikipédia

A primeira vez que tive contato com um atleta trans foi numa prova de atletismo, nos idos do VII Gay Games (em Chicago, 2006), evento internacional em que competi como atleta. Naquele momento, e numa prova assinalada pela organização como da categoria masculina, os corredores se autodesignavam como “homens gays” e todos se surpreenderam ao identificar um corredor transmasculine, que misturava elementos corporais de homem e mulher e reivindicava ali um reconhecimento não-binárie.[1] Tento problematizar tais questões num capítulo de livro sobre corpos queer nas arenas esportivas (CAMARGO; VAZ, 2012a), mas não em termos categoriais precisos, como transmasculinidades ou transfeminilidades esportivas.

Em minha pesquisa etnográfica do doutorado (CAMARGO, 2012b), relativa a competições esportivas para pessoas LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexos e demais) e na qual tal experiência narrada se fez presente, propus problematizar a materialização de corpos e a produção de subjetividades articuladas a construções corporais e discursivas de uma masculinidade hegemônica em tais eventos, observando como havia a elaboração simbólica de uma virilidade encenada por parte de homens atletas amadores, que mantinham relações afetivas e homoeróticas com outros homens. Descobri rituais de dominação de gênero entre eles e outros sujeitos (mulheres e pessoas trans). Contudo, também identifiquei masculinidades queer, tanto no futebol quanto em outras modalidades, que eram mais colaborativas entre si e não demarcavam hierarquias, complexificando o entendimento de atribuições de gênero para múltiplos corpos e sexualidades.

Nos campeonatos investigados não havia futebol ou futsal especificamente trans, nem notória afirmação de transmasculinidades esportivas. Ao que me parece, naqueles ambientes em que o esporte aparecia em seu formato mais cruel e como simulacro do alto nível, os corpos tentavam “se encaixar” nas categorias nominais e binárias do mundo esportivo comum, sendo qualquer dissonância considerada um ponto fora da curva, mesmo para uma competição que congregava a esmagadora maioria de pessoas LGBTI+.

As transmasculinidades em pauta nos diversos times amadores de futebol society e que se proliferam pelo Brasil na atualidade, colocam em xeque o bordão que “futebol é um jogo de macho” e, mais do que tudo, postulam que ele pode ser performado por corpos não-bináries. Por isso, em que pese talvez alguma identificação com o “universo masculino” vangloriado socialmente, as pessoas transmasculines teriam por função mostrar essa disrupção entre sexo biológico, gênero instituído e prática, seja no futebol ou no esporte. Numa palavra, seus corpos precisam “implodir” expectativas, valores e determinações que se esperam de um corpo nas arenas esportivas.

Nos I Jogos da Diversidade de São Paulo, realizados no mês do Orgulho LGBTI de 2017, a equipe de homens trans, Meninos Bons de Bola (MBB) veio a público mostrar sua proposta. De lá para cá, em minhas andanças como pesquisador pelos eventos nacionais de esporte direcionados ao segmento LGBTI+, tenho notado um aumento de ações relacionadas a tal público, seja na esfera da chamada LiGay Nacional de Futebol Society do Brasil (LGNF), seja em competições dos futebóis exclusivos de equipes trans.

No cenário futebolístico amador transmasculino, se posso assim nomear, várias equipes surgiram no país em recentes anos, particularmente na esteira do MBB e da rede de comunicação digital formada por homens trans, sobretudo via instagram e whastapp. Transviver e Força Trans (no Recife), Transversão F.C. e T-Mosqueteiros (em São Paulo), BigTBoys F.C. (no Rio de Janeiro) são alguns exemplos. Com muitas dificuldades para existir, tais grupos oscilam entre maior ou menor presença em eventos e apresentações. A visibilidade que começam a ter ainda não desemboca, necessariamente, em representatividade dentro do mundo futebolístico – mesmo àquele relativo aos LGBTI+.

Importante mencionar, outrossim, o esforço de registro que tem desenvolvido o professor, ativista e jogador trans, Bernardo Gonzales, a partir de suas práticas futebolísticas, iniciadas lá nas origens do MBB. Bernardo tem se envolvido em várias frentes de atuação na política, no esporte e na educação, nas quais propõem a inclusão de pautas e projetos para pessoas transmasculines/as no meio esportivo.

As transmasculinidades têm que entrar em jogo contra toda uma ordem masculinista institucionalizada de preconceitos sobre os corpos de mulheres biológicas e de outros sujeitos sexuais que habitam o campo esportivo e o futebol. Elas precisam defender o direito das pessoas trans às práticas esportivas, assim como mencionei em outro momento. De minha parte, como homem cisgênero e autoidentificado “gay”, cabe ser aliado e defender essa questão.   

A brincadeira com o título do texto de hoje serve para mostrar que não temos apenas a presença, cada vez mais crescente, de atletas transmasculines no futebol, mas são transmasculinidades do futebol, ou seja, a enunciação desses modos de ser deve ser tomada como uma reação ao ambiente misógino, machista e transfóbico construído dentro do futebol, considerado o “mais masculino” dos esportes (aspas irônicas nessa adjetivação sexista e generalizante).

As transmasculinidades são a chave para questionar os velhos valores masculinos instituídos no esporte moderno (e também no futebol) por meio de práticas corporais e discursivas outras, dissonantes, que, talvez, possam se colocar como subversivas. Como bem apontou Maurício Pinto (2020), o debate colocado por grupos trans tem como desafio pensar o futebol como “um espaço de atuação política” em favor de suas causas.

Resta saber, e torço para que isso aconteça, se quanto mais dentro das passabilidades corporais adquiridas com o tempo (isto é, mais semelhante ao gênero que se quer representar), jogadores homens trans também desenvolverão a sensibilidade de criticar as masculinidades tóxicas instituídas neste espaço esportivo, tanto para que não reproduzam posturas que já conhecemos (do tradicional esquema masculino versus feminino), quanto para oferecerem outra possibilidade de ser e de jogar futebol.

Nota

[1] Nesses casos, vale destacar que não posso dizer que tal corredor era “não-binário” ou que era uma pessoa “não-binária”, pois com as terminações de gênero na língua (‘o’ ou ‘a’) estou recolocando tal corpo dentro do binarismo ordinário de gênero (masculino ou feminino), que impera no social. “Não-binarie” traz a flexão final em “e” e, portanto, uma potencial neutralidade que permite o corpo estar livre das marcas de gênero.

Bibliografia

CAMARGO, Wagner Xavier. Em defesa do direito de pessoas transgênero à prática esportiva. LUDOPÉDIO, v. 124, n. 21, 20/10/2019. 

CAMARGO, Wagner Xavier. Jogos da Diversidade de São Paulo. LUDOPÉDIO, v. 96, n. 25, 25/06/2017. 

CAMARGO, Wagner Xavier. Circulando entre práticas esportivas e sexuais: etnografia em competições esportivas mundiais LGBTs. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas). Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012a.

CAMARGO, Wagner Xavier; VAZ, Alexandre F. “De Humanos e Pós-Humanos: ponderações sobre o corpo queer na arena esportiva”. In: Silvana Goellner; Edvaldo Souza Couto (Org.). O Triunfo do Corpo: polêmicas contemporâneas. São Paulo: Vozes, 2012b. p. 119-144.

PINTO, Maurício Rodrigues. Futebol, disputas sexuais e o orgulho LGBTQI+. LUDOPÉDIO, v. 132, n. 64, 27/06/2020. 


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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Transmasculinidades no/do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 134, n. 21, 2020.
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