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Treino é jogo, jogo é treino: a performance inusitada das torcidas organizadas de São Paulo no Campeonato Brasileiro de 2017

É conhecida a máxima no futebol que diz: “treino é treino, jogo é jogo”. Ela foi cravada na memória do futebol nacional pelo ex-jogador Didi, meio-campista do Botafogo, do Fluminense e da Seleção Brasileira, de forma a destacar o momento que de fato vale no futebol, isto é, a ocasião em que o atleta deve dedicar seu maior empenho em campo. Na lógica do atleta, pode-se inferir, trata-se inclusive de uma forma de o futebolista evitar lesões desnecessárias durante os treinamentos, ficando impossibilitado de atuar nos dias de jogos e de competições oficiais.

O ditado me veio à lembrança por outra razão e se relaciona a um novo hábito criado pelas torcidas organizadas de São Paulo no ano passado, sobre o qual falarei neste breve artigo. Como se sabe, o Campeonato Brasileiro de 2017 encerrou-se com o consenso entre os especialistas acerca de seu baixo nível técnico. Nas arquibancadas, foi um ano deveras problemático, dentro e fora dos estádios, com inúmeros casos de distúrbios e mortes, seguidos de repressão, despreparo e descontrole policial, o que reflete em parte também o momento crítico, turbulento e radicalizado por que passa a sociedade brasileira nos últimos anos.

No estado de São Paulo, a tática repressiva para com as torcidas organizadas deu-se por meio da manutenção dos jogos de Torcida Única nos clássicos locais. A medida, que permite que somente adeptos de um clube compareçam ao estádio, foi adotada em 2016 e, embora impopular, foi mantida no ano seguinte, sob alegações evasivas de queda da violência nas estatísticas que cobriram as partidas. A contrapelo, lembre-se apenas que um Palmeiras e Corinthians disputado no Allianz Parque, na noite do dia 12 de julho de 2017, registrou confrontos entre rivais à saída da arena, mesmo com a determinação da presença exclusiva de palmeirenses.

No estado paulista, as limitações às torcidas organizadas se estendem a outros fatores que não somente a continuidade da decisão da Torcida Única. O impedimento da entrada de diversos materiais relacionados à identificação dos subgrupos de torcedores é outra forma de enquadramento e punição. Dependendo do comportamento da torcida, a lista contempla a proibição temporária de camisas, faixas, bandeiras, bexigas, bumbos, sinalizadores, fogos de artifício e mosaicos, entre outros itens do que as torcidas chamam de “patrimônio”.

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Apoio da Fiel antes do clássico contra o Palmeiras em 2017. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Diante de tais interdições, as torcidas desenvolveram estratégias curiosas de contornar a medida. Por exemplo, criaram uma versão “B” para a camisa oficial do grupo. A camiseta repete o modelo e o formato da blusa oficial, retirando apenas o nome do agrupamento. Às vezes, coloca-se um lema ou uma data alusiva à torcida, de modo a que todos reconheçam o grupo, mesmo de longe, pois os componentes continuam postados em seu mesmo território na arquibancada. As faixas também foram adaptadas ao novo cenário e ante a impossibilidade de inscrever sua nomenclatura, colocam dizeres relacionados à identidade ou à marca grupal.

Dos materiais interditados, o item mais combatido para entrada no estádio são os artefatos pirotécnicos. Quando acesos, sobretudo à noite, provocam um efeito visual chamativo nas praças de esporte, saltando à vista também de quem assiste aos jogos pela televisão. Mas as autoridades alegam os riscos de danos provocados pela pirotecnia e pela fumaça. O primeiro, pelos eventuais acidentes provocados por sua chama flamejante; o segundo, pelo prejuízo causado à visibilidade em campo, empesteando o ambiente e ofuscando a vista do palco.

Os árbitros são incisivos em interromper as partidas, quando os fogos se acendem e a cortina de fumaça se espalha. Os locutores e os comentaristas esportivos via de regra condenam seu uso e fazem críticas veementes àqueles “infratores” que prejudicam o espetáculo esportivo. Isto aconteceu, por exemplo, em 25 de janeiro de 2016, na final da Copa São Paulo de Juniores, a popular Copinha. No início do segundo tempo da partida entre Corinthians e Flamengo, os Gaviões da Fiel, seguidos pelas demais organizadas do clube, enxamearam o gramado e as tribunas com esses dispositivos. Uma “nuvem preta” formou-se, levando à interrupção do jogo por quase dez minutos, sob forte condenação do repórter da Globo que transmitia a partida.

Com efeito, na semana seguinte, a Federação Paulista de Futebol decretou a suspensão de dois meses aos Gaviões, penalizados com a proscrição de presença nos estádios. Não obstante, mesmo com essa ameaça, sempre que podem as torcidas lançam-se ao desafio de portar os banidos artefatos e de acendê-los nas arquibancadas. Na lógica dos torcedores, é uma forma de não se sujeitar às autoridades esportivas e de “peitar” as determinações que consideram injustas, descaracterizadoras da livre manifestação e do direito de torcer.

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Gaviões da Fiel lota a arquibancada do estádio do Corinthians durante treinamento. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Em meio a esse cenário cada vez mais restritivo, instituiu-se ao longo do ano de 2017 entre as torcidas organizadas paulistanas uma nova modalidade de participação no futebol. Esta se dá com a frequência aos treinos, nas vésperas de jogos importantes, com uma performance que lembra um dia de partida oficial. O estratagema consiste não só em lotar as arquibancadas como em portar nos estádios tudo aquilo que a Federação, a polícia e os órgãos competentes vedam nas competições regulares. Durante os treinamentos, veem-se assim as bandeiras tremulando – estas estão proibidas há mais de vinte anos em São Paulo – as faixas distendidas nos alambrados, o nome da torcida em letras garrafais, as camisas das torcidas organizadas circulando livremente e, sobretudo, os sinalizadores luminosos acendidos à vontade, a torto e a direito.

Com o progressivo tolhimento, com a austeridade cada vez mais prevalecente, inventa-se assim uma nova espécie de tradição. Faz-se do treino dos times o espaço apropriado de atuação e de exibição das torcidas no futebol profissional de alto rendimento. Em dia imprevisto, carnavaliza-se, por assim dizer, o dia “ensaio” dos clubes, isto é, o treinamento dos jogadores, com a promoção de uma “festa” multicolorida não mais visível nas arenas, caras e sob hiper vigilância.

Se o hábito de assistir aos treinos não é novo, o segundo semestre de 2017 ficou marcado por uma espécie de espetacularização desse momento. Em sua ritualização, percebe-se o investimento e a preparação das torcidas organizadas, tais como antes não se via.

O São Paulo Futebol Clube, por exemplo, ficou associado a este novo procedimento no ano passado, justamente no momento em que o time penava em campo para manter-se na primeira divisão. Ao invés da ira e do protesto com a crise de desempenho nos gramados, angariou em contrapartida uma adesão crescente de seus torcedores, com uma média de público admirável. Milhares de torcedores passaram a ir ao Morumbi na véspera do jogo, para ver, gratuitamente – a questão financeira é um aspecto importante do fenômeno – e manifestar o apoio da torcida ao time.

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Treino do São Paulo antes do clássico contra o Palmeiras em 2017. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Tal protagonismo foi destacado pela imprensa no final de agosto de 2017. Na véspera do clássico contra o Palmeiras, mais 18 mil são-paulinos, segundo estimativas da Polícia Militar, compareceram numa manhã de sábado ao estádio Cícero Pompeu de Toledo para transmitir confiança e criar uma ambiência positiva ao elenco do São Paulo.

O mesmo ritual foi adotado pelas demais torcidas. Em situação oposta à do São Paulo no campeonato, com a iminência da conquista de mais um título, os torcedores do Corinthians, emulados pelo jogo contra o principal rival, se mobilizaram e fizeram o festejo antecipado num sábado de treino em Itaquera. Desta feita, o impressionante número de mais de trinta e dois mil corinthianos atendeu à convocação das suas torcidas organizadas (veja o vídeo abaixo), compareceu em peso ao treino aberto e encheu seu estádio como se um dia de partida fosse.

https://www.youtube.com/watch?v=VcO-AzAmm50

Os dois exemplos acima, da torcida do São Paulo e do Corinthians, foram alguns dos episódios inusitados do Brasileirão 2017, se lembrarmos novamente de seu nível técnico sofrível. Outros dias de treinos poderiam ter sido evocados, mas por ora basta para o que gostaríamos de salientar nesse breve texto. A nosso juízo, a valorização dos treinos é uma forma de mostrar como, mesmo ante cerceamentos crescentes, mesmo a despeito do processo de “judicialização” das torcidas, os grupos organizados continuam a criar seus próprios mecanismos de resistência e participação.

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Bandeirões da torcida do São Paulo durante treinamento da equipe. Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo.

Em 2017, eles souberam reinventar a sua própria festa, mesmo onde ela parece estar contida, mitigada, condenada. Em seu lugar, elegeram espaços imprevistos, que dão mais liberdade à sua performance de cânticos, coreografias e instrumentos de percussão. Quais sejam, os centros de treinamento. Face a todas as suas ambiguidades e contradições intrínsecas, face à emulação sistêmica das brigas que maculam sua reputação, face às disputas por poder que fragmentam internamente sua unidade, face a práticas viciadas que corroem a sua imagem pública, as torcidas continuam a ser uma “força estranha” no mundo do futebol, com um protagonismo indesejado por muitos, mas vivo, ativo, criativo e vibrante.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda

Professor-pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV).

Como citar

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Treino é jogo, jogo é treino: a performance inusitada das torcidas organizadas de São Paulo no Campeonato Brasileiro de 2017. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 7, 2018.
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