79.4

Um monólogo teatral sobre futebol – Vivendo até se tornarem homens

A Alemanha, atual tetracampeã, uma das potências do futebol mundial, assim como o Brasil, tem nessa modalidade esportiva a sua principal representação. Isso se reflete nos âmbitos da Literatura e das Artes, em que escritores e artistas procuram, dentro de suas especificidades, lidar com o tema do futebol. E essa relação vai muito além do tema, pois em 2005, fora fundada até mesmo uma “seleção alemã de escritores”, a chamada AutonamaAutorennationalmannschaft.[1]

header2010
Autonama Die Deutsche Autorennationalmannschaft

Parece que, por lá, a máxima de que “escritor não sabe nem bater escanteio” não funciona, pois a seleção de escritores alemães sagrou-se campeã europeia de 2010, em torneio disputado no país, que reuniu as seleções de escritores da Suécia, da Inglaterra, da Itália, da Hungria, da Áustria, e da Turquia, completado ainda por uma equipe de autores de romances policiais – a FC Criminale.

Thomas_Brussig_Lesung
Thomas Brussig. Foto: Vincent Eisfeld.

No intuito de demonstrar que o futebol é objeto de interesse nas produções literárias e artísticas também na Alemanha, elegemos a obra Vivendo até se tornarem homens (2001; no original em alemão: Leben bis Männer), do escritor Thomas Brussig, um dos fundadores da Autonama. Esse autor berlinense, nascido em 19 de dezembro de 1964, um amante do futebol, escreveu, além da referida obra, outra que também tem por tema o futebol, intitulada Fertig, o árbitro (2007; no original: Schiedsrichter Fertig), designada pelo subtítulo de “Uma ladainha” (Eine Litanei).

Vivendo até se tornarem homens – esse longo monólogo teatral apresenta uma única personagem, um treinador de futebol em fim de carreira, que treinava equipes infantis, infanto-juvenis e juvenis no passado, ainda nos tempos da Alemanha Oriental. E esse seria o sentido do título da obra: “Para meus jogadores, eu sempre tenho algo. Para formar um jogador desses, já é um feito e tanto. Crianças, meninos, escolares, juvenis, juniores – até se tornarem homens.”[2] Um desses inúmeros garotos desempenha um papel importante na vida do treinador. Trata-se de Heiko, um garoto que passou a integrar a equipe do treinador quando contava 09 anos de idade. Heiko jogava na defesa e era elogiado pelo treinador como um excelente jogador de cobertura, sempre muito obediente ao cumprir à risca as instruções de marcação: “[…] O Heiko chegou à equipe aos nove anos de idade, ainda menino. Desde então, eu o conheço. Totalmente confiável como jogador de cobertura. Quando eu lhe dizia, marque o camisa 10 – então, ele marcava. E o 10 não passava por ele de jeito nenhum”.[3]

O treinador chega a se tornar uma espécie de figura paterna para Heiko, inicialmente movido pelo peso na consciência de ter prejudicado o garoto num jogo, antes de Heiko vir para o seu time. Numa partida entre duas equipes infantis, o treinador, ardilosamente, gritou da linha para o jogador do time adversário, que marcava seu ataque, dizendo que o cadarço dele estava desamarrado. Num instante de distração, o time do treinador atacou e marcou o gol da vitória. Assim, Heiko perdeu sua posição no time adversário e foi “adotado” pelo treinador: “Aquele era o Heiko, com os tênis. Naquela época, estava com nove anos. Quando quis amarrar o tênis, os meus fizeram um gol. Heiko chorou. Claro que eu senti – quando um adulto diz algo a um garoto de nove anos, eles não podem distinguir isso. O treinador de Heiko gritou com ele: Você é uma menina, ou porque ta choramingando? Foi quando consolei o Heiko. Afinal, não sou nenhum monstro. […]”[4]

Todavia, para além do tema do futebol, essa obra de Thomas Brussig aborda também questões comportamentais associadas a posturas políticas. O treinador é uma figura autoritária, que exigia de seus comandados, e em especial de Heiko, a mais estrita obediência, a ponto de pedir para ele “entrar para quebrar” (umhauen), chegando a provocar sua expulsão: “[…] Certa vez, eu acho que era ainda na categoria escolar, quando Heiko era escolar, um jogador corria livre em direção ao gol vazio, tinha passado pela defesa. Então, pensei berra Quebra! em tom normal E o Heiko o quebrou. Recebeu cartão vermelho, óbvio – mas eu pensei. Assim é o Heiko. Uma alma fiel. […]”.[5] E esse tipo de comportamento do menino teria sérias consequências em sua fase adulta. O próprio treinador definia seu modo de atuar diante dos comandados como o de uma figura autoritária: “[…] Eu sou do tipo que berra em campo, apesar de que eu não berro, eu penso, penso com paixão, penso e comando. O estrategista na beira do gramado. O Júlio César da linha lateral. […].”[6]

Mais tarde, quando o jovem já figurava como capitão da equipe de juvenis, ele foi convocado para o serviço militar obrigatório e se tornou suboficial do Exército Nacional Popular (Nationale Volksarmee). Heiko passou a integrar as tropas responsáveis pela segurança das áreas de fronteira entre os Estados alemães. Numa de suas missões, ele atirou contra alguém que tentava fugir da Alemanha Oriental através da fronteira, matando-o. A expressão que Heiko emprega para definir o ato é a mesma que o treinador empregava para uma marcação dura e cerrada (umhauen): “[…] 1988, durante a Copa Europa de Seleções, assistimos juntos a alguns jogos. Quando os holandeses ainda deram uma lição aos alemães ocidentais. Foi quando o Heiko estava sentado no sofá lá de casa. Tinha recebido uma licença especial [do exército]. No momento em que o Jürgen Kohler deu uma entrada no van Basten, ele me disse: Treinador, eu quebrei um. Eu já tinha imaginado isso. Afinal, não havia lá muitos motivos para uma licença especial. […]”.[7]

Cópia de Autonama_Nürnberg
Autorama em 2007: Simon Roloff, Ralf Bönt, Sönke Wortmann, Klaus Cäsar Zehrer, Uli Hannemann, Tobias Hülswitt, Falko Hennig, Ulli Kuper mittlere Reihe: Florian Merkel, Thomas Klupp, Florian Werner, Jan Brandt, Klaus Döring, Norbert Kron, Jan Böttcher untere Reihe: Thomas Brussig, Wolfgang Herrndorf, Moritz Rinke, Frank Willmann, Patrick Hutsch, Albert Ostermaier, Jörg Schieke, Christoph Nußbaumeder, Jochen Schmidt.

Após a Queda do Muro e a Reunificação da Alemanha, Heiko foi levado a julgamento e condenado a dois anos de reclusão pelo assassinato cometido enquanto atuava como guarda de fronteira, momento que o treinador assim define: “A merda toda só começou quando o Muro caiu. Para o Heiko, foi com a Queda do Muro…”.[8] Assim, Heiko, que, desde pequeno, fora educado pelo treinador a obedecer cegamente suas instruções, teria seguido à risca as ordens do comando militar na fronteira entre as Alemanhas, não hesitando em atirar e matar um fugitivo.

Ao final do longo monólogo, predomina um tom irônico, em que o círculo se fecha: novos garotos chegam para o treinamento, e o treinador parece não ter aprendido nada com o ocorrido no passado. Sua postura autoritária permanece inalterada, estas são suas primeiras palavras aos novos comandados mirins: “Homens! Futebol é tudo!”[9]

Referência

BRUSSIG, Thomas. Leben bis Männer. Frankfurt a.M.: Fischer, 2001.

[1] Informações sobre a Autonama estão disponíveis em: http://autonama.de/w2/; acesso em: 28 dez. 2015.

[2] Brussig, Thomas. Leben bis Männer. Frankfurt a.M.: Fischer, 2001, p. 85. No original em alemão:

„Für meine Spieler hab ich was übrig. So einen Spieler aufzubauen, das ist schon was. Kinder, Knaben, Schüler, Jugend, Junioren – bis Männer“. Todas as traduções são de nossa autoria.

[3] Brussig. Leben bis Männer, p. 85. No original em alemão:

„[…] Der Heiko kam in die Mannschaft mit neun, also Knaben. So lange kenn ich den Heiko. Absolut zuverlässig als Manndecker. Wenn ich dem gesagt habe, bleib an dem Zehner dran – dann blieb der da auch dran. Und der Zehner kam nicht durch, um keinen Preis.“

[4] Brussig. Leben bis Männer, p. 12-13. No original em alemão:

„Das war der Heiko, der mit den Schuhen. Neun war er damals. Als der sich die Schuhe zuschnürte, machten meine ein Tor. Hat der Heiko geweint. Da tats mir natürlich leid – wenn ein Erwachsener was zu nem Neunjährigen sagt, die können das nicht unterscheiden. Der Trainer von Heiko hat ihn angefaucht: Bist du n Mädchen, oder warum flennste! Da hab ich den Heiko getröstet. Bin doch kein Unmensch. […]“

[5] Brussig. Leben bis Männer, p. 85. No original em alemão:

„Einmal, ich glaub, es war Schüler, also Heiko Schüler war, da lief einer allein aufs leere Tor zu, war durch. Hab ich gedacht brüllt Haun um! normal Und Heiko hatn umgehaun. Gab Rot, klar – aber ich dachte, so ist der Heiko. Ne treue Seele. […]“

[6] Brussig. Leben bis Männer, p. 12. No original em alemão:

“[…] Ich bin ein Platzbrüller, obwohl ich nicht brülle, sondern denke, leidenschaftlich denke, denke und lenke. Der Stratege am Rand. Der Jiulius Cäsar der Seitenlinie. […]“

[7] Brussig. Leben bis Männer, p. 88. No original em alemão:

„[…] Achtundachtizg, zur EM, haben wir zusammen ein paar Spiele gesehen. Als die Holländer den Westen noch mal so richtig aufmischten. Da hat der Heiko bei mir zu Hause aufm Sofa gesessen. Hatte Sonderurlaub. Und wie der Jürgen Kohler den van Basten von den Beinen holte, hat er mir gesagt: Trainer, ich habe einen umgehaun. Das hatte ich mir schon gedacht. Gab ja nicht viele Gründe für Sonderurlaub. […]“

[8] Brussig. Leben bis Männer, p. 89. No original em alemão:

„Die ganze Scheiße fing erst an, als die Mauer gefallen war. Für Heiko war das mit dem Mauerfall…“

[9] Brussig. Leben bis Männer, p. 96. No original em alemão:

„Männer! Fußball ist alles!“

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Um monólogo teatral sobre futebol – Vivendo até se tornarem homens. Ludopédio, São Paulo, v. 79, n. 4, 2016.
Leia também:
  • 176.5

    Futebol na Literatura de Língua Alemã – Parte X: Quando Beckenbauer ainda não era o “Kaiser Franz”

    Elcio Loureiro Cornelsen
  • 174.18

    A crise do Union Berlin na mídia alemã

    Elcio Loureiro Cornelsen
  • 174.15

    Garrincha, um craque em versos de cordel

    Elcio Loureiro Cornelsen