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Uma câmera na mão vale mais do que uma ideia na cabeça

28/11 – Beira-mar da Palhoça

Hoje foi dia de gravação. Oficial. E isso importa principalmente porque, de todo o material que temos gravado até aqui, tudo que fizemos foi com o auxílio de uma handycam antiga e uma câmera digital que me foi emprestada. Hoje nos reunimos em um Airbnb que fica entre minha casa e a casa dos meninos: no meio do caminho. A ideia é de gravarmos as entrevistas individuais, contando sobre a trajetória de cada um dos 8 jogadores-cineastas, para somar ao material que eles têm produzido.

Quando pensei em trabalhar com a imagem, e a partir dela, entendi que seria necessário uma sensibilização do próprio sentido que a imagem carrega nos tempos de hoje. Estamos tão acostumados a filmar e fotografar no modo automático do celular que a câmera perdeu sua função sensibilizadora e educadora. Sendo assim, sabia que só poderíamos falar através da imagem, sobre a experiência do ser jogador, se a imagem também falasse com os atletas; se a imagem os contaminasse com um olhar que faz ver para além da extensão automatizadora da memória e da estética predominante no meio futebolístico.

Sou defensora do que pregava o Cinema Novo, e por isso repito, para fazer cinema deveria bastar “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Mas foi só com o percurso que compreendi que a câmera na mão importava mais do que eu poderia imaginar. Em todo caso, nós temos: câmeras capengas e muitas ideias na cabeça. Foi a partir de uma dessas ideias na cabeça, que somem tão rapidamente quanto chegam, que notei o quanto era necessário para a experiência de filmagem que ela não se limitasse às gravações com smartphone. Explico.

Os jogadores-cineastas ficaram responsáveis por filmarem seu cotidiano com seus celulares. Passadas semanas e com poucos vídeos em mãos, foi quando levei a handycam para um dos treinos e vi a empolgação dos meninos com a imagem e o desejo de tocar aquilo, que entendi que não se tratava de um descaso pelo filme – coisa que pensei a princípio –, a questão era a funcionalidade do aparelho.

Figueirense
Foto: Eduarda Moro

Quando vi a handycam passando de mão em mão e os jogadores assumindo-se cineastas, se tornava mais evidente que o smartphone ocupa um espaço subjetivo que não permite variar e criar com a imagem. O celular dispõe de diversos filtros prontos e embelezamentos que pactuam com a funcionalidade do registro mediado por uma padronização estética. De modo que, com o celular em mãos havia pouco, ou quase nada, de espaço criativo e de desejo de criação, mas a handycam os colocava em outro lugar. Empunhando a câmera pareciam querer brincar com a imagem, falar através dela…

Foi importante me dar conta disso ainda no processo de filmagem e então repensar a produção do filme. A ideia anterior era de que todos os elementos do filme fossem gravados com os aparelhos que temos a disposição – celulares e câmera digital –, mas ao perceber o quanto estar com a imagem implica também em considerar nosso comportamento modular, diante dos aparelhos captadores de imagem, entendi que o processo de sensibilização também passa pelos dispositivos. E foi aí que lembrei de um velho amigo, com quem muito falei sobre o futebol civilizador, que nos captura enquanto corpo e pensamento.

Quando começava a brincar de ser cientista do futebol, ouvi falar de um outro ser pensante do mundo da bola que treinava as categorias de base da Chapecoense na época. Não demorou até que nos aproximássemos e começássemos um grupo de estudos para estudar a área e poder gritar nosso descontentamento com o futebol pouco pensante. Chapecó é uma cidade difícil de se viver, mas é ainda mais difícil pensar por lá. Um dos poucos que se arriscava pensar nas quatro linhas…

Rodrigo é o nome da figura, mas o conheço como “Chip”. Atualmente é coordenador técnico metodológico de formação no Athletico Paranaense, o que nos deixa afastados fisicamente e dificulta gritar nossos descontentamentos com o futebol pouco pensante.

Quando íamos para o interior treinar com a categoria que Chip coordenava na Chapecoense, passávamos o caminho todo gritando sobre tudo aquilo que gostaríamos que fosse diferente no futebol. Mas gritávamos baixinho, para não correr o risco de que alguém escutasse e minasse nos planos. Passou o tempo, passou eu, passou Chip. O que ficou foi a pergunta que sempre nos fizemos: o que a imagem nos mostra?

Desde que escolhi falar através da imagem, tenho me perguntado sobre isso novamente e nesse processo de se colocar em dúvida, de questionar as coisas, é importante encontrar com o outro e questionar junto. Foi por isso que convidei Chip para gritar seus descontentamentos comigo, novamente. O que se segue são seus devaneios sobre a questão, sobre a imagem.

“Falar sobre imagem é uma questão muito crítica. Não precisaríamos nos autopromover, porque o futebol em si já é um mecanismo de exposição acentuada e a gente eleva muito a imagem dos profissionais, jogadores, devido a importância que se dá ao futebol no brasil e no mundo, mas especialmente no Brasil. […] A partir do momento que a gente opta por se autopromover e criar excessos de divulgação da nossa imagem e do modo como usamos ela, a gente fica ainda mais na vitrine.

Há uma interferência, porque a partir do momento que utilizemos da nossa imagem acaba-se envaidecendo, o que é natural… A imagem e a quantidade de visualizações dela que servem para qualquer mecanismo de divulgação geram um impacto no dia a dia. E essa utilização é cada vez mais precoce nos jogadores. Assim vamos olhando para a imagem como um mecanismo que cria um cenário paralelo. A imagem muitas vezes não demonstra o que a pessoa é […], ela transmite um estado de perfeição e que na realidade não retrata o dia a dia, as dificuldades e o jogo em si. E no futebol não existe um estado perfeito, uma situação de jogo perfeito, mas a imagem que retrata isso proporciona essa visualização, esse estado de perfeição.

Figueirense
Foto: Eduarda Moro

Quando se entra nisso acaba se esquecendo dos arredores. Dos aspectos diários, da capacidade de muitas vezes trabalhar em silêncio e saber os momentos em que a imagem deve ser exposta. O futebol acaba aumentando muito o que a pessoa é, o quanto ela pode fazer determinadas coisas e isso acontece cada vez mais precocemente. Então é necessário uma educação para a imagem/da imagem, considerando que hoje se consome a imagem e o público consome a imagem do jogador” (sic).

Chip, como sempre, me fez pensar… Se somos atravessados pela imagem no mundo do futebol, como usá-la enquanto um dispositivo de fazer ver e pensar?

Tudo o que Rodrigo fala encontra com o comportamento padronizado dos jogadores ao se retratarem através da imagem. E isso reforça a ideia de que é preciso abdicar a qualidade técnica da imagem nesse caso, em detrimento de um experimento estético-político. Mesmo que suas vidas fossem gravadas com uma qualidade técnica superior com seus Iphones de última geração, é com a câmera velha da Panasonic que é possível aprender com a imagem.

É muito mais difícil do que se imagina utilizar o celular com pretensão criativa, quando somos por vezes amarrados e assujeitados às suas funcionalidades padronizantes. Segurar uma câmera na mão é então um ato de sensibilização pelo simples fato de segurá-la de um modo diferente que não o usual.

A educação social é atravessada pela acessibilidade, coisa que deixamos escapar quando vestimos a camiseta de cientista ao nos depararmos com nossos sujeitos de pesquisa. O dia de hoje deu um novo sentido para o meu próprio fazer enquanto pesquisadora. Compreendi que sim, é importante ter uma ideia na cabeça, mas uma câmera na mão vale tanto quanto. Em um meio conservador como é o do futebol, não basta ser cientista para produzir diferença, é preciso pensar além, pensar junto, pensar-com…  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MORO, Eduarda. Uma câmera na mão vale mais do que uma ideia na cabeça. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 24, 2023.
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