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Uma sala de troféus numa arena multiuso: tempo e memória na era do futebol de consumo

Mariana Mandelli 26 de julho de 2021

Em 19 de novembro, o Allianz Parque completa sete anos desde a sua inauguração. Faltando poucos meses para a data, a diretoria do Palmeiras enfim anunciou a criação de uma sala de troféus na arena. Se tudo correr como o previsto, é o fim de uma longa espera e também de um dos inúmeros imbróglios entre o clube e a construtora WTorre.

Desde 2010, quando o Palestra Itália foi fechado para as obras que deram origem à arena multiuso, as mais de 6 mil taças do Palmeiras, entre conquistas oficiais e amadoras, estão guardadas longe dos olhos dos torcedores e torcedoras. Antes da reforma, um salão com entrada pelo clube social e localizado embaixo das arquibancadas do estádio comportava os troféus e outros registros históricos do clube, funcionando como uma espécie de museu[1].

O anúncio da nova sala foi feito no início de junho por meio do site[2] e das redes sociais do clube. Um vídeo institucional[3] deu algumas informações sobre o projeto, assim como o texto publicado pelo departamento de comunicação do clube:

O contrato estabelece a locação, por parte do clube, de uma área de cerca de 2200m² no primeiro piso do Allianz Parque, com 80 metros lineares de espaço envidraçado com vista para a portaria da Palestra Itália e para os jardins do clube social, onde se encontram os bustos dos ídolos Ademir da Guia, Dudu, Junqueira, Marcos, Oberdan Cattani e Waldemar Fiume. O acordo terá duração de pouco mais de 23 anos, quando chegará ao fim o prazo de exploração ao Allianz Parque pela Real Arenas, empresa da WTorre responsável pela gestão da casa alviverde[4].

Allianz Palmeiras
Foto: Divulgação

É importante fazer alguns apontamentos sobre esse trecho destacado. A sala de troféus ainda não será um memorial/museu, mas um primeiro passo para que o segundo se concretize. O próprio clube reconhece isso, afirmando que a próxima gestão deve finalizar o processo – há eleições para a presidência do Palmeiras ainda este ano.

Outro ponto importante é que o clube vai alugar um espaço dentro da sua própria arena para dispor a sala de troféus, o que parece uma insanidade para quem não acompanha o caso do Allianz Parque. Mas faz parte do contrato que deu à construtora a administração (ou exploração, termo mais adequado) da arena por 30 anos contados a partir da inauguração – restam, portanto, mais 23.

Ou seja, mesmo o Palmeiras tendo comprado o Parque Antarctica há mais de 100 anos – 101 e alguns meses parecer ser mais exata –, hoje o clube não tem poder de decisão em diversas questões que dizem respeito à sua própria casa, pois, ao decidir reformá-la para acompanhar o fluxo do futebol moderno que se convencionou chamar de “arenização”, abriu mão desse e de outros direitos.

Ao contrário: vive sendo despejado de seu próprio lar ao ter que transferir jogos para outros estádios por conta de eventos realizados na arena, como já aconteceu em inúmeras ocasiões, de clássicos a jogos eliminatórios de Libertadores[5]. Abordei esse tema extensamente na minha dissertação de mestrado e nesta coluna, pois há um trânsito simbólico consistente entre “jogar em casa” e “jogar fora de casa” no caso palmeirense, o que nos leva ao próximo ponto deste texto.

Um detalhe que chama a atenção no discurso de Mauricio Galliote, presidente do clube, e Luis Davantel, CEO da WTorre, é o fato de que o projeto da nova sala de troféus conta com 80 metros de vidros lineares para dar “total visualização” das taças para quem estiver passando pela rua Palestra Itália.

A ideia de troféus envidraçados é uma boa imagem para pensarmos como o processo de “arenização” coloca uma série de barreiras – físicas, arquitetônicas, simbólicas e morais – às torcidas dos times de futebol. São tantas camadas, antigas e novas, na relação torcedor-clube, que o clubismo e a paixão torcedora passam a ser moldados diretamente por esses agentes intermediários.

Allianz Palmeiras
Foto: Fabio-Menotti/Agência Palmeiras/Divulgação

Em tempos pré-pandêmicos, ou seja, com a presença de torcidas nas arquibancadas, para se sentir “em casa” o torcedor deveria estar associado a algum plano do sócio-torcedor Avanti ou do Passaporte Allianz Parque, programas do Palmeiras e da WTorre, respectivamente, para a comercialização de ingressos. Comprar entradas avulsas na bilheteria também era uma possibilidade, mas vale destacar que sobravam poucas se o jogo fosse importante. Além disso, o ingresso médio do Palmeiras é um dos mais caros do Brasil.

Frequentar as ruas do entorno do Allianz Parque quando o Palmeiras ali jogava também era para poucos: desde 2016, a arena é cercada para evitar a aproximação de quem não tem ingresso para a partida do dia, o que impede que palmeirenses curtam a atmosfera nos bares, restaurantes e sedes de torcidas organizadas que ali se localizam. O famoso “cerco” é pauta de coletivos de torcedores e vem provocando intensos debates sobre o direito de ir e vir inclusive dos moradores da região.

Vale destacar também outro ponto que abordei em outros textos desta coluna e que explorei na minha pesquisa: dentro e fora do Allianz Parque, praticamente não há nenhuma estrutura fixa que remeta ao Palmeiras. A ausência do escudo do clube na estrutura externa da arena talvez seja o melhor exemplo desse argumento. Quem olha de fora e desconhece o contexto do futebol brasileiro não consegue identificar de pronto que aquela é a casa alviverde. Pelo que se sabe, esse é mais um problema mal resolvido entre clube e construtora.

É claro que é cedo para fazer qualquer análise mais aprofundada sobre o projeto da nova sala de troféus, do qual sabemos, para variar, apenas aquilo que foi divulgado pelo clube – a relação entre o Palmeiras e a construtora é um mistério para grande parte da torcida e há pouca transparência sobre os trâmites desse turbulento relacionamento, que só chegam ao público geral quando abordados pela imprensa.

Mas é fato também que, além de chegar tardiamente, o espaço carrega traços de todos esses elementos citados nos últimos parágrafos. Isso porque ele deve servir como um lugar “que as pessoas frequentem independentemente do futebol” e que seja um exemplo de “experiência no esporte e no entretenimento”, segundo palavras do CEO da WTorre no vídeo institucional. A ideia é que sejam construídos novos restaurantes e outros equipamentos culturais e que o futuro memorial conte com uma dinâmica multimídia e interativa, sendo integrado ao tour do estádio e também ao clube social.

Allianz Palmeiras
Fonte: Divulgação

É óbvio que ter troféus expostos no alto de uma arena, com vista para o bairro, é preferível do que largá-los encaixotados, deixando a história da instituição mais vencedora do futebol nacional à mercê de revisionismos de redes sociais e discursos histéricos de jornalistas que se comportam como torcedores. Mas ainda é pouco quando pensamos em democratizar o acesso da torcida ao seu próprio clube do coração.

Qual a finalidade do discurso “arena mais moderna do País”[6] se essa arena não reflete em praticamente nenhum aspecto a identidade do clube que abriga? O preço da tal “modernidade” parece ser esse: em prol de experiências de consumo e entretenimento, perde-se pertencimento e identificação e afasta-se grande parte da torcida, tanto física quanto afetivamente.

A ideia do multiuso, que vende uma diversidade de possíveis utilizações de um espaço esportivo, só enxerga essa multiplicidade de possibilidades quando se trata de aspectos econômicos e financeiros. Porque o perfil dos consumidores, espectadores, visitantes e, claro, torcedores, é um só. Se a sala de troféus, que materializa mais de um século de glórias palmeirenses, segue essa lógica, estamos logrando o acesso à história da instituição a somente aqueles que podem pagar para vê-la. Para tantos outros, é como se ela seguisse encaixotada – ou disponível atrás de uma vitrine, como uma loja voltada para apenas alguns estratos da população, tal qual é hoje o acesso à própria arena, cercada e intocada.

Notas

[1] Veja mais em Relembre como era o antigo memorial de troféus do Palmeiras. Estadão, 13 de fevereiro de 2020. Acesso em 10 de julho de 2021.

[2] Leia em Palmeiras e WTorre anunciam acordo para criação da sala de troféus no Allianz Parque. Site da Sociedade Esportiva Palmeiras, 8 de junho de 2021. Acesso em 10 de julho de 2021. 

[3] Veja mais em Palmeiras e Wtorre anunciam sala de troféus no Allianz Parque. YouTube da Site da Sociedade Esportiva Palmeiras, 8 de junho de 2021. Acesso em 10 de julho de 2021.

[4] Idem nota de rodapé 1.

[5] Este texto de minha autoria trata especificamente desse despejo que não é apenas simbólico como material. Palmeiras x Santos no Morumbi: um time despejado da própria casa. Ludopédio, 31 de agosto de 2020. Acesso em 10 de julho de 2021.

[6] É preciso dizer que, apesar de todos esses apontamentos, o acordo entre clube e construtora é bastante elogiado no que podemos chamar de mercado do futebol que, como se sabe, ultrapassa as linhas do campo. A multifuncionalidade de arenas como o Allianz Parque, frequentemente alugadas para eventos de todos os tipos, fazem brilhar os olhos de empresários, cartolas e demais atores envolvidos em negociatas que passam longe dos olhos do torcedor.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Mariana Mandelli

Doutoranda em Antropologia Social na USP, com mestrado na mesma área e instituição, com pesquisa que investigou o processo de "arenização" do Allianz Parque. É graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ciências Sociais pela USP.

Como citar

MANDELLI, Mariana. Uma sala de troféus numa arena multiuso: tempo e memória na era do futebol de consumo. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 52, 2021.
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