172.25

Vargas, Copa do Mundo de 1938 e intervenção nos esportes (1ª parte)

Denaldo Alchorne de Souza 25 de outubro de 2023

Em 10 de novembro de 1937, a Câmara de Deputados e o Senado Federal amanheceram cercados por tropas de cavalaria que barraram a entrada de parlamentares. Às dez horas da manhã, Vargas e seus ministros foram ao Palácio do Catete para assinar uma nova Constituição. À tarde, o general Eurico Gaspar Dutra declarava que: “Qualquer perturbação da ordem será uma brecha para os inimigos da Pátria”.1 Finalmente, à noite, pelo rádio, o presidente fazia uma proclamação:

Nos períodos de crise, como o que atravessamos, a democracia de partidos, em lugar de oferecer segura oportunidade de crescimento e de progresso, dentro das garantias essenciais à vida e à condição humana, subverte a hierarquia, ameaça a unidade pátria e põe em perigo a existência da Nação, extremando as competições e acendendo o facho da discórdia civil. […] Para reajustar o organismo político às necessidades econômicas do País e garantir as medidas apontadas, não se oferecia outra alternativa além da que foi tomada, instaurando-se um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho.2

Iniciava-se o Estado Novo.

Vargas
Desfile em celebração do dia 1o. de maio no estádio de São Januário 1942. Foto: Arquivo Nacional

Com o golpe de Estado Novo, apesar do rompimento institucional, os grupos que estavam no poder mantiveram os seus interesses nos esportes e na educação física.

A atenção do governo nas práticas desportivas era evidente desde 1930. Entretanto, perante a sociedade, a oficialização dos esportes era vista como uma medida prejudicial ao desenvolvimento esportivo, levando ao fracasso uma iniciativa que estava progredindo, até então, de forma privada e autônoma. Foram conflitos no interior do campo esportivo3, que dividiram os esportes brasileiros em dois grupos opostos entre 1933 e 1937, que possibilitaram ao Estado o consenso necessário na sociedade brasileira para empreender o seu projeto de oficialização dos esportes.4

Na nova Constituição, assinada em 1937, os Artigos 15, 127, 131 e 132 faziam referência a essas atividades. Havia um consenso no campo político quanto à necessidade de dar prosseguimento ao processo de intervenção nos esportes. Mas, em seu interior, diversos agentes sociais divergiam quanto ao teor do projeto. Dentre esses agentes destacaram-se Lourival Fontes e Luiz Aranha, que desempenharam papeis fundamentais no conflito que separou em dois grupos o campo esportivo brasileiro.5

Outros políticos também estavam interessados na crescente importância dos esportes na sociedade brasileira. Um deles foi Francisco Campos, ministro da Educação entre 1930 e 1932. Em 1937, foi um dos elementos centrais, junto com Vargas e com a cúpula das Forças Armadas, nos preparativos que levariam ao Estado Novo. Foi nomeado ministro da Justiça e Negócios Interiores no dia anterior ao golpe de 10 de novembro. Nesse período, consolidou-se como um dos mais importantes ideólogos da direita no Brasil, aprofundando suas críticas contra o “dragão da ideologia democrática” e defendendo explicitamente o Estado autoritário e antiliberal como o mais apropriado para a sociedade de massas.6 Para Francisco Campos, os esportes seriam fundamentais para a construção dessa nova sociedade. Possibilitariam a formação dos sentimentos de disciplina e de nacionalidade entre os jovens, com o objetivo ampará-los para uma efetiva participação política.

Também de grande relevo no campo político foi Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública entre 1934 e 1945. A sua gestão ficou conhecida pela retomada das campanhas sanitárias, pela reforma do ensino e pela criação da Universidade do Brasil, do Instituto Nacional do Livro e do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O seu Ministério contou com a constante presença de intelectuais famosos como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Lúcio Costa, Cecília Meireles, Fernando de Azevedo entre outros. Para Capanema, a educação era um instrumento do Estado e deveria ser regida pelo sistema de diretrizes morais, políticas e econômicas que formavam a base ideológica da nação.7 Dentro deste amplo projeto educacional, o esporte conteria a função de tornar o cidadão apto para o trabalho e para a sociedade.

Finalmente, existiam as Forças Armadas que formavam um quinto grupo dentro do campo político.8 Desde o período imperial, os militares se preocupavam com os assuntos dedicados à educação física e os esportes. A influência sobre estas áreas se consolidou em 1922 com a fundação do Centro Militar de Educação Física, depois transformado na Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx).9 Nos anos seguintes, os militares criaram a Liga de Sports do Exército, a Liga de Sports da Marinha e, para divulgar suas ideais perante um público mais amplo, a Revista de Educação Física que circulou até a década de 1950. Para as Forças Armadas, a prática das atividades físicas possibilitaria o desenvolvimento orgânico da criança e o hábito da disciplina. Assim, a educação física e os esportes – juntamente com a educação cívica e a instrução pré-militar – seriam disciplinas que todo o cidadão deveria ter com o intuito de prepará-lo para a corporação militar.

Portanto, os cinco agentes sociais citados – Lourival Fontes, Luiz Aranha, Francisco Campos, Gustavo Capanema e as Forças Armadas – concordavam com a intervenção do Estado nos esportes. Discordavam principalmente quanto à intensidade da intervenção e quanto ao órgão que teria a competência de empreender tal reforma. Porém, como iremos ver, as suas posições variaram no decorrer da década de 1930. Em diversos momentos se aproximaram ou se afastaram de outros agentes. Não somente por causa dos princípios defendidos; mas, principalmente, para conseguir uma posição mais favorável no interior do campo político.

1938
Fonte: Wikipédia

A Copa do Mundo de 1938

Em junho de 1938, um novo acontecimento estava para ocorrer que levaria os grupos dentro do governo a se rearticularem em busca de apoio da sociedade. Era uma nova competição esportiva, com uma grandiosidade menor que as Olimpíadas, mas com uma importância maior para os brasileiros. Estava se aproximando a Copa do Mundo de futebol a ser realizada na França.

Os preparativos para a competição foram inéditos em vários sentidos. Nunca antes se organizou uma equipe com tantos cuidados. Conseguiram juntar os melhores jogadores do país, independentes de rivalidades entre federações ou cidades. O técnico escolhido foi Adhemar Pimenta que, um ano antes, liderara a seleção de futebol na conquista do vice-campeonato sul-americano, realizado na Argentina. Os jogadores passaram por um longo período de preparação com sede na estância hidromineral de Caxambu, em Minas Gerais. Nada faltou, contrataram inclusive um cozinheiro para acompanhar a seleção até a França. Já a CBD lançou a “Campanha do Selo”. Quem adquirisse um selo cebedense por apenas quinhentos réis estaria ajudando os jogadores brasileiros a irem à França e concorreriam a um lugar na delegação. O selo tinha a seguinte frase: “Auxiliar o escrete é o dever de todo o brasileiro”.10 Mais do que um ato esportivo, comprar o selo era encarado como um ato patriótico.

Por sua vez, os jornais utilizaram inúmeras páginas para noticiar o acontecimento. Edições extras foram publicadas. Concursos foram organizados para escolher os torcedores que iriam viajar para Paris. Novos periódicos surgiram como a revista Sport Ilustrado. Já a Rádio Club do Brasil se organizou para irradiar diretamente da França as partidas da seleção para todo o país. A Rádio já tinha transmitido, no ano anterior, os jogos da seleção no Sul-Americano da Argentina, mas uma transmissão da Europa traria muito mais dificuldades.11 A irradiação foi custeada pelo Cassino da Urca e pelo jornal O Globo com os gastos divididos ainda com as rádios retransmissoras de cada Estado. Para narração dos jogos contrataram o locutor Gagliano Netto, conhecido como “Metralha”.

A sociedade se mobilizou para a competição. Segundo o Jornal dos Sports: “observou-se um movimento inédito em nossa vida esportiva: a colaboração de todas as classes para uma representação esportiva”.12 Os empresários de lojas comerciais e de casas bancárias se prepararam para o evento promovendo campanhas de donativos para os atletas. Os trabalhadores também davam suas contribuições. Muitos procuravam ajudar a seleção comprando um selo cebedense. Outros organizavam festas, como o “churrasco-monstro”, patrocinado por um grupo de senhoras do São Cristóvão FC em homenagem aos jogadores. Excursões foram organizadas para que os torcedores pudessem acompanhar os craques na França:

COPA DO MUNDO

O sonho de todo o esportista

PARIS

O sonho de todos os turistas

Junte o útil ao agradável, incentivando os jogadores brasileiros à conquista do prêmio magno do futebol e conhecendo ao mesmo tempo a mais bela cidade do mundo.13

Os governantes prestavam apoio à delegação brasileira. O presidente Getúlio Vargas concedeu duzentos contos.14 Já o interventor federal no Rio Grande do Sul ofereceu mais dez contos. Alzira Vargas, por sua vez, foi escolhida para ser a madrinha da seleção. Esta aceitou prontamente.15 Antes da viagem para a França, Getúlio fez questão de receber os atletas. Recomendou que voltassem como campeões mundiais, pois o título seria de suma importância para o futuro do país. O presidente chegou a dar uma declaração prometendo “casa própria para os craques, o prêmio oferecido pelo chefe da nação se o Brasil levantar o campeonato mundial”.16

O embarque estava marcado para o dia 30 de abril e, mesmo sob muita chuva, milhares de pessoas foram ao cais para dar adeus aos craques brasileiros. A seleção saiu do Rio de Janeiro a bordo do navio “Arlanza”, tendo como chefe da delegação o sr. Castelo Branco. Antes de tomar a rota para a Europa, fez algumas escalas em portos do litoral brasileiro, aumentando ainda mais a expectativa dos torcedores. A delegação chegou a Paris no dia 15 de maio, sendo recepcionada pelo embaixador brasileiro na França que se declarou “fã número um” do futebol brasileiro. Eles estavam a vinte dias do primeiro jogo. Era tempo suficiente para prepararem-se e evitar a desastrosa campanha da última Copa do Mundo, quando o selecionado foi eliminado na primeira partida. Em Paris, realizaram alguns treinos e depois partiram para as imediações da cidade de Estrasburgo, local do primeiro jogo contra a seleção polonesa. Adhemar Pimenta decidiu montar duas equipes: a primeira, considerada titular, seria chamada de Azul ou Leve, e a segunda, considerada reserva, seria chamada de Branca ou Pesada. A teoria de Adhemar era que o Brasil tinha que ter duas equipes preparadas para enfrentar adversários com estilos diferentes. O time titular, que estrearia contra os poloneses, ficou definido com Batatais no gol, Domingos e Machado na defesa, Zezé Procópio, Martim e Afonsinho no meio-campo e Lopes, Romeu, Leônidas, Perácio e Hércules no ataque. A equipe reserva tinha Valter no gol, Jaú e Nariz; Brito, Brandão e Argemiro; Roberto, Luizinho, Niginho, Tim e Patesko.

1938
Embarque da delegação brasileira para a Copa de 1938. Foto: Arquivo Nacional Fundo Correio da Manhã.

Chegava, afinal, o momento do escrete estrear na competição. Os torcedores não discutiam outro assunto, a não ser o jogo entre brasileiros e poloneses. Estavam ansiosos, procurando ouvir a partida em qualquer rádio que houvesse por perto. O escritor Marcos Rey fez a seguinte narrativa em suas memórias: “Eu cursava o ginásio e estaria em aula durante o jogo. O que adiantava terem colocado um rádio no pátio se não podíamos ouvir? Mas ninguém prestava atenção no professor e todos pediam licença para ir ao mictório. Até que o mestre entendeu o que a classe queria e, democraticamente, com um sorriso largo, decidiu: – Vamos todos ouvir o jogo”.17 Porém, nem a CBD, nem a imprensa ou o governo, estavam preparados para o que estava por vir.

No dia 5 de julho, os brasileiros estrearam contra os poloneses com um empate de quatro gols no tempo normal. Na prorrogação, a seleção fez mais dois gols e ganhou dos adversários por seis a cinco. Foi uma disputa brilhante com onze gols em um único jogo.18 Os torcedores vibraram. Não podiam acreditar que uma seleção de país pobre e mestiço pudesse ganhar de uma seleção européia. Ocorreram cenas de entusiasmo e patriotismo por toda a parte: “Houve quem dissesse que o Brasil inteiro iria se transformar ontem numa imensa arquibancada, onde o povo torceria pela vitória do nosso escrete. E assim foi. Não há memória nos arquivos de futebol, pelo menos no que diz respeito à vida carioca, de um entusiasmo tão amplo e tão ruidoso com o que contagiou a capital brasileira quando a voz de Gagliano Netto anunciou que o Brasil vencera”.19 Uns soltaram foguetes, outros cantaram o Hino Nacional para saudar a vitória do selecionado sobre os poloneses. Por todas as capitais e principais cidades do país ocorreram manifestações semelhantes. São Paulo, Recife ou Salvador, em grandes ou pequenas cidades, onde tivesse um rádio e um alto-falante, o que se via após a vitória brasileira era um clima de carnaval fora de época.20 E, como todo carnaval, também com seu saldo negativo. Na cidade de Campos dos Goitacazes, um agente postal-telegráfico morreu devido à grande emoção de que foi acometido quando soube da vitória.21 Após a partida, inúmeros torcedores mandaram telegramas para o presidente Getúlio Vargas, congratulando-o pela vitória da seleção na França.

Uma semana depois, os atletas foram para Bordeaux jogar contra os tchecoslovacos.22 Durante a partida, os brasileiros se mostraram nervosos e desarticulados, resultando na expulsão de Zezé Procópio e Machado. A seleção parecia sentir a responsabilidade de repetir a atuação anterior. O placar final foi o empate de um gol para cada equipe. Naquela competição, após o empate no tempo normal de noventa minutos e nos trinta minutos de prorrogação, uma nova partida era realizada. Dentro de quarenta e oito horas, os brasileiros teriam que jogar novamente contra a equipe da Tchecoslováquia, que havia levado apenas dezesseis atletas para a França. A estratégia de Adhemar Pimenta de treinar duas equipes, a Azul e a Branca, seria testada agora.

Em 14 de junho, os brasileiros entraram em campo com um time quase todo reformulado.23 Os únicos atletas da última partida eram o goleiro Walter e o atacante Leônidas da Silva. Os torcedores estavam apreensivos. Eles já tinham sofrido 120 minutos durante o primeiro encontro contra os tchecoslovacos e, agora, teriam mais 90 minutos pela frente. As repartições foram fechadas em várias cidades do país.24 Desta vez, o selecionado jogou bem melhor e conseguiu ganhar por dois gols a um. Os fãs estavam vibrando. A ansiedade resultante das duas partidas contra os tchecoslovacos propiciou manifestações de entusiasmo e nacionalismo ainda maiores que no jogo contra a equipe da Polônia. Segundo o Jornal dos Sports, assistiu-se no Rio de Janeiro uma coisa notável: “Moças e rapazes, saindo em bandos rumorosos dos escritórios centrais, vinham para a Avenida e abandonavam-se às mais contagiosas demonstrações de alegria. E faziam roda como crianças: e isso ao coro de ‘Brasil!, Brasil!, Brasil!’ Imaginem a alegria dessa gente moça e entusiasmada cirandando em plena Avenida Central”.25 Enquanto isso, no mar, “silvavam as lanchas, apitavam vapores, nas ruas era uma mistura infernal de sons: buzinas, sirenes, vozes humanas, palmas, cantos”.26 Em São Paulo, “dezenas de milhares de admiradores do nosso futebol passaram a externar a sua exuberante alegria”.27 Em Recife “os choferes de todas as praças fizeram buzinar demoradamente os carros. Ouviam-se apitos de fábricas, foguetes, sirenes. Alguns jovens do comércio organizaram uma passeata, conduzindo o pavilhão nacional debaixo de entusiásticas aclamações”.28 Em Salvador, quase ocorreu uma nova tragédia: “O popular Agenor Palmeira, preso de grande emoção pela vitória dos brasileiros, foi acometido de uma síncope. Conduzido para a Assistência, ao se reanimar, as suas primeiras palavras foram: ‘Viva o Brasil!’”.29 Em Fortaleza, em Porto Alegre, em Belo Horizonte, em todo o país, a população expressava a sua alegria por meio de festas, fogos, balões, passeatas, hinos e bandeiras nacionais.30 Segundo a revista O Cruzeiro: “As irradiações dos jogos na França produziram indescritível entusiasmo na população de todo o Brasil. A torcida foi real em todas as camadas sociais”.31 Para o Correio da Manhã: “O entusiasmo da população se espalhou por toda a parte. Na rua, nos lares, nas repartições públicas, nas casas comerciais, nas embarcações, nos quartéis, onde quer que existisse um aparelho de rádio, a expansão foi alucinante”.32 Segundo o periódico: “Não houve distinção de classe social, nem mesmo de nacionalidade. Os estrangeiros, contagiados pela alegria popular, comungavam conosco na exaltação patriótica”.33 A imprensa não tinha mais dúvida, o futebol havia realizado o velho sonho de muitos: de ver o Brasil sem divisões entre classes sociais, Estados, raças e nacionalidades de origem.

Novamente as autoridades públicas procuraram acompanhar a emoção popular. Depois do jogo, o ministro Gustavo Capanema mandou um novo telegrama para a delegação brasileira: “A vitória de hoje tem um sentido: tudo pelo Brasil. Peço levar aos nossos invencíveis lutadores a minha palavra de entusiasmo e louvores”.34 Alzira Vargas, Lourival Fontes e a presidência da República também mandaram telegramas de felicitações.35 Eram as autoridades brasileiras se aproximando do futebol, mostrando-se atentos às novidades que vinham das canchas francesas e esperando ansiosos pela transmissão de uma nova partida. A revista O Cruzeiro tentou apresentar esse crescente de interesse ao fazer uma reportagem com Getúlio Vargas e sua família durante um dia de jogo. Segundo a matéria: “O presidente Getúlio Vargas, bem como sua esposa, Dona Darcy Vargas, e sua filha, senhorita Alzira Vargas, num testemunho eloqüente do quanto reconheceram o mérito da tarefa confiada aos craques brasileiros seguiram todos os jogos pelo rádio, acompanhando a vibração da alma popular numa demonstração de solidariedade que há de ser um incentivo grandioso para o esporte nacional”.36

Alguns jornalistas e intelectuais também procuraram fazer comentários e análises sobre o desempenho dos jogadores na França. Um artigo não assinado do Diário de Pernambuco assim afirmava: “os futebolistas brasileiros fizeram, nestes últimos dias, mais pelo Brasil e pelo seu renome do que toda e qualquer propaganda paga, que acaso se tenha feito até hoje”.37 Para o autor da matéria: “A vitória do escrete nacional é também a vitória da disciplina, da bravura, da ‘endurance’, do espírito de sacrifício e solidariedade, que animava os nossos homens”.38 Além do mais, “numa época em que se faz a apologia das raças puras, os mestiços brasileiros não derrotaram apenas a Tchecoslováquia, encostaram na parede os Gobineaus e os Rosenbergs, que querem impor ao mundo o primado dos arianos, como um artigo de fé”.39 No mesmo periódico, dois dias depois, Gilberto Freyre explicava que o “nosso futebol mulato, com seus floreios artísticos cuja eficiência – menos na defesa que no ataque – ficou demonstrada brilhantemente nos encontros deste ano com os poloneses e os tchecoslovacos, é uma expressão de nossa formação social, democrática como nenhuma e rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de uniformização, de geometrização, de estandartização; a totalitarismo que façam desaparecer a variação individual ou espontaneidade pessoal”.40 Para o sociólogo: “No futebol como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por um gosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de danças e de capoeiragem. Mas sobretudo de dança. Dança dionisíaca. Dança que permita o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dança lírica”.41 Segundo o autor: “O mulato brasileiro deseuropeizou o futebol dando-lhe curvas arredondadas e graças de dança. Foi precisamente o que sentiu o cronista europeu que chamou aos jogadores brasileiros de ‘bailarinos da bola’. Nós dançamos com a bola”.42 Assim, através do contraste entre os estilos de jogo dos europeus e dos brasileiros, os intelectuais começaram a associar o futebol com a nação que se pretendia construir.

O escrete estava classificado para a fase semifinal da competição. No dia 16 de junho, iria jogar em Marselha contra os últimos campeões mundiais: os italianos.43 Numa partida difícil, os adversários abriram o placar. Mas foi no segundo tempo que ocorreu o lance mais discutido. Segundo os jornais brasileiros, a bola tinha saído pela linha de fundo – pelo menos segundo os nossos cronistas.44 Nesse momento, o zagueiro Domingos da Guia e o atacante italiano Piola trocaram pontapés dentro da grande área. O juiz viu o episódio e marcou pênalti contra os brasileiros. A revolta da equipe foi total. Para os patrícios, a bola não estava em jogo. No máximo, admitiriam a expulsão de Domingos por agressão, mas nunca marcar um pênalti. O juiz manteve sua decisão e o italiano Meazza fez mais um gol. No final, a seleção brasileira perdeu por dois a um, sendo eliminada da decisão da Copa do Mundo.45 Os torcedores não aceitaram a derrota. “Aquele dia fatídico quase causou uma revolução no Brasil”.46 Na França, a delegação brasileira entrou com um protesto oficial contra a arbitragem do jogo. Alguns entenderam que a partida seria anulada. Segundo uma reportagem do Jornal dos Sports: “O delírio dos primeiros momentos quando se apresentava como positiva a notícia da anulação foi indescritível. Vimos no Club Manaus todos os passageiros dos ônibus que largaram, erguerem-se como providos num único impulso e vivarem os craques num único impulso: – Anulado o jogo! Viva o Brasil!”.47 Anos depois, Mario Filho recordou que, logo após a derrota, as avenidas estavam desertas e desoladas:

A impressão era de velório, que não era. […] De repente parecia que saía gente do chão, a Avenida ficou entupida de gente, gritos de Brasil subiam como foguetes, Brasil, Brasil explodiam no ar, não se sabe de onde surgiram bandeiras brasileiras enormes, tremulando ao vento. Que era aquilo? Você não sabe? O jogo vai ser anulado, o Brasil vai jogar de novo com a Itália e agora é que vão ser elas. Nunca ninguém conseguiu explicar como nasceu a notícia, que não era notícia, como se espalhou o boato e não como boato, como informação exata, indesmentível. O jogo ia ser anulado. Havia quem afirmasse que já fora anulado. E todas as esperanças se acenderam outra vez e foi o carnaval.48

A anulação da partida não ocorreu, aumentando ainda mais a decepção dos torcedores quando souberam que o resultado seria mantido.

O selecionado teve que se contentar com a disputa pelo terceiro lugar na competição contra os suecos.49 Segundo a revista O Cruzeiro: “Ferido em seus direitos, o Brasil não se deixou ferir em seus brios. E voltou a Bordeaux, onde esmagou a seleção da Suécia, depois de uma partida cômica, durante a qual a pelota dançou de pé em pé, sempre entre brasileiros, numa lição de futebol a que os italianos bem poderiam assistir. Com o placar de 4 x 2 sobre os suecos, foi encerrada a campanha cujo brilho a inconsciência de um árbitro não conseguiu ofuscar”.50 No Rio de Janeiro, o terceiro lugar na competição foi comemorado como um protesto: “Quer queira ou não a FIFA, somos Campeões do Mundo!”.51 Na volta, os craques foram recepcionados como heróis em Recife, Salvador e Rio de Janeiro.

Para o governo, mais importante que as vitórias dos jogadores na Europa era o entusiasmo que atingia todos os cidadãos, fossem eles ricos ou pobres, negros ou brancos. Mais do que uma representação positiva da harmonia social, o entusiasmo pelo futebol combinava o nacionalismo e o orgulho cívico, tão defendidos pelo Estado Novo. Era preciso incentivar e controlar essa forma de manifestação social.

[Continua…]

Notas

1 O Globo, Rio de Janeiro, de 10 de novembro de 1937.

2 VARGAS, Getúlio. Ideário político de Getúlio Vargas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1943, p. 71-82.

3 Iremos utilizar o conceito de campo, que consiste num espaço onde agentes sociais travam lutas concorrenciais em função de interesses e conflitos específicos à área em questão – seja artístico, intelectual ou esportivo –, sem abandonar os aspectos políticos, econômicos e sociais mais amplos. A sua importância está justamente na possibilidade de adequar a ação social e a estrutura social de uma forma mais dialética, obtendo assim o meio de apreender a particularidade na generalidade e a generalidade na particularidade. No presente artigo, empregaremos os conceitos de campo político e campo esportivo, que possibilitarão uma análise mais aprofundada do processo de oficialização dos esportes. Ver: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

4 Ver: SOUZA, Denaldo Alchorne de. Os conflitos no campo esportivo e a oficialização dos esportes (1933-1937) (parte 1). Ludopédio, São Paulo, v. 170, n. 15, 2023; e SOUZA, Denaldo Alchorne de. Os conflitos no campo esportivo e a oficialização dos esportes (1933-1937) (2ª e última parte). Ludopédio, São Paulo, v. 171, n. 22, 2023

5 Idem.

6 ABREU, Alzira Alves; BELOCH, Israel (orgs.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984, p. 571-582.

7 Idem, p. 607-613.

8 CASTRO, Celso. “In corpore sano: os militares e a introdução da educação física no Brasil”. Revista Antropologia, Niterói, nº 2, p. 61-78, 1997.

9 O Centro só começaria a atuar efetivamente em 1929 com a realização de um Curso Provisório em educação física que formou, além dos militares, vinte e dois professores civis que foram lecionar em escolas públicas. O Centro foi transformado em EsEFEx através do Decreto nº 23.252, de 19 de outubro de 1933, e tinha como instalação a Fortaleza de São João, no Rio de Janeiro.

10 Jornal dos Sports, Rio de Janeiro, de 31 de março de 1938.

11 Jornal dos Sports, de 19 de abril de 1938.

12 Jornal dos Sports, de 4 de junho de 1938.

13 Jornal dos Sports, de 17 de abril de 1938. A excursão era patrocinada pela Empresa Campanha e o valor era de “apenas 6:600$000”.

14 Jornal dos Sports, de 20 de março de 1938.

15 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, de 1 de junho de 1938.

16 Jornal dos Sports, de 20 de março de 1938.

17 Revista Placar, São Paulo, de março de 1998.

18 Partida realizada no dia 5 de julho de 1938, no State de la Meinau, em Estrasburgo, França.

19 Jornal dos Sports, de 6 de junho de 1938.

20 Ver: A Gazeta, São Paulo, de 7 de junho de 1938; Diário de Pernambuco, Recife, de 7 de junho de 1938.

21 Diário de Pernambuco, de 7 de junho de 1938.

22 Partida realizada no dia 12 de junho de 1938, no Parc de Leseure, em Bordeaux, França.

23 Partida também realizada no Parc de Leseure.

24 Ver: Diário de Pernambuco, Jornal dos Sports e Folha da Manhã, São Paulo, de 15 de junho de 1938.

25 Jornal dos Sports, de 15 de junho de 1938.

26 Jornal dos Sports, de 15 de junho de 1938.

27 O Estado de S. Paulo, São Paulo, de 15 de junho de 1938.

28 Diário de Pernambuco, de 15 de junho de 1938.

29 Ver: Diário de Pernambuco, de 15 de junho de 1938.

30 Ver: O Estado de S. Paulo e O Estado da Bahia, Salvador, de 15 de junho de 1938.

31 Revista O Cruzeiro, Rio de Janeiro, de 28 de junho de 1938.

32 Correio da Manhã, de 15 de junho de 1938.

33 Correio da Manhã, de 15 de junho de 1938.

34 Correio da Manhã, de 15 de junho de 1938.

35 Correio da Manhã, de 15 de junho de 1938.

36 Revista O Cruzeiro, de 28 de junho de 1938.

37 Diário de Pernambuco, de 15 de junho de 1938.

38 Diário de Pernambuco, de 15 de junho de 1938.

39 Diário de Pernambuco, de 15 de junho de 1938.

40 Diário de Pernambuco, de 17 de junho de 1938.

41 Diário de Pernambuco, de 17 de junho de 1938.

42 Diário de Pernambuco, de 17 de junho de 1938.

43 Partida realizada no Stade Olympique, em Marselha, França.

44 Muitos acreditam que essa versão foi forjada por um excesso de patriotismo do locutor Gagliano Netto e do jornalista Tomaz Mazzoni. A bola não saiu de campo e o pênalti foi marcado contra os brasileiros.

45 Na decisão da Copa do Mundo, os italianos ganharam dos húngaros por quatro a dois e se tornaram bicampeões mundiais.

46 MAZZONNI, Thomas. História do futebol no Brasil. São Paulo: Leia, 1950, p. 274.

47 Jornal dos Sports, de 17 de junho de 1938.

48 RODRIGUES FILHO, Mario. O sapo de arubinha. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 55-59.

49 Partida realizada em 19 de junho de 1938, no Parc de Leseure, em Bordeaux, França.

50 Revista O Cruzeiro, de 28 de junho de 1938.

51 Jornal dos Sports, de 20 de junho de 1936.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Denaldo Alchorne de Souza

Denaldo Alchorne de Souza fez pós-doutorado em História pela USP, doutorado em História pela PUC-SP e mestrado, especialização e graduação em História pela UFF. É autor dos livros Pra Frente, Brasil! Do Maracanazo aos mitos de Pelé e Garrincha, 1950-1983 (Ed. Intermeios, 2018) e O Brasil Entra em Campo! Construções e reconstruções da identidade nacional, 1930-1947 (Ed. Annablume, 2008), além de diversos artigos publicados em revistas, jornais e sites. Atualmente é pesquisador do LUDENS/USP e Professor Titular do Instituto Federal Fluminense, onde leciona disciplinas na Graduação em História.

Como citar

SOUZA, Denaldo Alchorne de. Vargas, Copa do Mundo de 1938 e intervenção nos esportes (1ª parte). Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 25, 2023.
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