138.41

“Ya vas a ver, las balas que nos tiraron van a volver”: futebol e violência policial na Colômbia

Fabio Perina 21 de dezembro de 2020

Essa crônica da tragédia anunciada começa no dia 9 de setembro com a execução de Javier Ordoñez por espancamentos e choques elétricos causados por dois policiais. Imediatamente foi iniciada em Bogotá uma revolta com ataques populares sistemáticos a unidades policiais. Mesmo com o apoio que receberam da Alcadía (Prefeitura) de Bogotá, as medidas imediatas de afastamento e julgamento de policiais envolvidos podem ser travadas pelo corporativismo das instituições policiais que se resguardam em tribunais militares e principalmente o reacionarismo do atual presidente, Iván Duque.Inclusive ao tentar desviar o foco do abuso policial com uma suposta infiltração terrorista do Exército de Libertação Nacional (ELN) nas manifestações!

Essa última jornada veio como uma segunda onda de outro levante popular há cerca de um ano. Embora muitos se lembrem de Chile e Equador na vanguarda das lutas populares no continente naquele momento (retomaremos no final do texto esse vínculo com outros países), na Colômbia também foi significativa uma greve geral de duas semanas contra ajustes neoliberais quanto a reforma trabalhista e previdenciária de Duque. Na qual a demanda contra o abuso policial já estava presente, embora ainda secundária. Principalmente a pauta de extinção da tropa de choque “Escuadrones Mobiles Anti-Disturbios” (ESMAD) criada em 1999. Sem que isso seja um fato isolado, remete a um processo profundo das últimas duas décadas crucial para ser analisado e se entender a conjuntura atual

Manifestações em 2019. Foto: Wikipédia

ANOS 2000 e 2010

Para compreender essa tal violência tão enraizada na sociedade colombiana é preciso um recuo não somente de um ano, mas no caso de pelo menos duas décadas em que deixarei algumas notas preliminares (sendo que seria possível recuar ainda várias décadas diante de uma contrarrevolução permanente). Duque é o novo capataz de confiança da linha política hegemônica nessas duas décadas de Alvaro Uribe. Quem se aproveitou de um esvaziamento do sistema bipartidário para militarizar a sociedade colombiana. No sentido que ao longo da década de 2000 a aproximação entre Uribe e Bush, sobretudo com a submissão de instalar várias bases militares na Colômbia, passando intacto à onda progressista no restante do continente naquele momento como o ponto fora da curva. A hipótese original de Santos (2019) é que um fracasso maior das forças progressistas nesse país prévio à onda de governos progressistas nos anos 2000 condicionou que ela fosse ainda mais improvável quando chegou. O país foi naquele momento a versão sul-americana da mesma “doutrina de choque” (ou “capitalismo de desastre”) aplicada no Iraque e no Afeganistão como uma democracia eleitoral de fachada para esconder a rapinagem de riquezas naturais locais e com a militarização da sociedade fazendo a população pagar um alto custo social. Pois o Plano Colombia entre Bush e Uribe fracassou no seu objetivo declarado de erradicar o narcotráfico, porém serviu de pretexto para modernizar o exército e com ele aumentar o controle social aos pobres e as violações aos direitos humanos. Sobretudo com a conivência do governo com paramilitares das Autodefesas Unidas Colombianas (AUCs) e até mesmo mercenários norte-americanos.

Sobre a violência, fica difícil avaliar esse objeto tão intangível tentar concluir quando ela foi ‘pior’. Mas possivelmente foi nessa época que mais ela foi midiatizada. Por conta do acumulo de forças de direita e de extrema-direita, ‘regulares’ e ilegais, internas e externas, em um único bloco contra a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARCs). Uma questão complexa no sentido que a guerra às drogas tão midiatizada internacionalmente ofusca a guerra de classes que a ela se cruza. Ofuscado justamente porque a grande mídia nacional não questiona nada que comprometa os interesses de Washington. Ainda mais depois de sua doutrina anti-terrorismo pela qual quaisquer fins justificam os meios. Mas é preciso retomar à análise que as guerrilhas são um produto da exclusão da esquerda desde os anos 60 através de um pacto de alternância entre os partidos da ordem: liberal e conservador. E pior, desde os anos 80 foram intensificando a repressão à oposição de esquerda através de grupos paramilitares. Uma velha tática da direita de um jogo duplo: exaltar no discurso a ordem porém recorrer na prática à violência política ilegal. Até que a situação se inverteu e o proprio Estado colombiano passou a ser controlado pelos paramilitares. Em suma, recursos internos e externos para blindar ainda mais a impunidade da violência paraestatal a qual o Estado é cumplice.

“Do ponto de vista do camponês espoliado, a guerrilha oferecia proteção e estabilidade aos trabalhadores rurais que, de outra forma, seriam expulsos de suas terras nos marcos das politicas de liberalização econômica e da espiral da violência” (SANTOS, 2019, p. 490).

No sentido que dentro dessa contrarrevolução permanente há uma grave contrarreforma agrária contra os camponeses, quem apenas querem produzir alimentos expulsos por narcotraficantes e paramilitares. Dessa forma tentam a décadas um acordo tático de defesa mútua com as guerrilhas das FARCs e do ELN como último recurso a essa massa falida para lutar pela própria sobrevivência diante da incapacidade de partidos de esquerda a organizarem. Em suma, a guerrilha não é nem um ‘desvio’ nem uma ‘opção’. Há assim uma grave violência ideológica a serviço da violência da extrema direita ao ‘naturalizar’ a desigualdade, a expropriação e a migração forçada–e depois considerar como violência apenas a reação do oprimido.
Ao longo da década de 2010 se arrastou por anos um processo de negociação de paz entre a guerrilha e o governo (através dos mandatos de Juan Manuel Santos como uma versão ‘branda’ do uribismo). Porém levanta sérias dúvidas de sua eficácia tendo em vista que o governo o viola regularmente, inclusive com o país se tornando o de maior número de homicídios a ativistas sociais em todo o mundo! O que é possível pela tática suja conhecida como ‘falsos positivos’, ou seja, fraudar operações militares para militantes assassinados se tornarem terroristas! Além de criar um absurdo ‘delito de rebelião’ para perseguir a oposição e assim aumentar os presos políticos

Assim como outra forte contradição em relação ao restante do continente que mesmo com a Colômbia tendo conflitos muito piores em duração e em intensidade que outros países, o aparelhamento de seu Estado pelos paramilitares engavetou qualquer Comissão de Justiça e Verdade minimamente séria e os indultou de seus crimes. É o que Hylton (2010) chama de amnésia por decreto. Enquanto Santos (2019) considera uma perversa inversão que congela a mudança para forjar a paz ao invés de buscá-la por uma mudança profunda. Na qual mais uma vez a direita faz um jogo duplo de negociar em público pelo governo, mas sempre reprimir nas sombras através de militares e sobretudo paramilitares. Evidente que nessas condições as FARC’s e as esquerdas em geral não conseguiram negociar de forma minimamente confiável a entrega das armas e o retorno à vida civil enquanto força partidária. Nesse sentido, outra organização político-militar, o ELN, segue atento e consciente que a paz não é apenas um desarmamento unilateral mas uma retomada de justiça social por um compromisso sólido.
Em suma, ironicamente trágico também sob uma perspectiva histórica de longa duração que mesmo após uma década do fim da Guerra Fria a Colômbia foi o país sul-americano que mais radicalizou a mistura da submissão a Washington com anticomunismo como se a polarização não tivesse terminado ainda. Passados cerca de três meses do caso Javier Ordoñez, sem esquecer do mote inicial da análise desse texto, fica mais uma vez a lição da persistência das lutas por direitos humanos no continente. Nas quais muitas vezes é preciso um ‘aguante‘ de meses ou anos para avançar em poucas demandas (vide as mais ousadas como a desmilitarização da Policia Nacional e o fim de sua tropa de elite “Escuadrones Mobiles Anti Disturbios”) para tentar uma reparação histórica diante da contrarrevolução permanente. A também recente prisão domiciliar do ex-presidente Uribe, embora sob acusação de corrupção de ‘colarinho branco’, ao menos trouxe a tona a todo esse acúmulo de lutas populares a palavra de ordem “genocida” ou “paraco” (paramilitar).

Os presidentes Ivan Duque Marquez (Colômbia) e Donald Trump (EUA) em 2018. Foto: Wikipédia

E onde o futebol entra na questão?

Se a contradição é um traço recorrente nos países latino-americanos, há duas décadas o futebol colombiano vivia um grande momento dentro e fora de campo oposto à sociedade e à política. Em 2001, sediou e ganhou sua primeira Copa América. Fora de campo, na mesma época foi iniciado em diversas cidades, principalmente em Bogotá, o chamado “barrismo social”. Ou seja, o maior movimento social de base de torcedores que destoa (nesse caso positivamente) do restante do continente. No sentido de uma autoconsciência dos hinchas que toda sua energia (ou “aguante”) pode não só estar a serviço do amor ao clube nos 90 minutos de uma partida. Mas devem se aproximar ao poder público para reivindicarem direitos, a outros movimentos sociais e até mesmo a hinchas rivais para tentarem reduzir conflitos entre si e terem em mente que o adversário em comum é na verdade a marginalização.

Ao longo da década de 2000 o “barrismo social” cresceu tanto em cada cidade que no final dela conseguiu um reconhecimento institucional para influenciar nas legislações para o tema da violência no futebol. Claro que não é um processo consolidado nem isento de ser aperfeiçoado. Usando a figura de parágrafos anteriores, é possível afirmar que o futebol também possui a sua própria massa falida: os “muleros”. Ou seja, os membros mais jovens das barras que se arriscam nas aventuras de percorrer o país na caçamba de caminhões e ônibus nas partidas de seus clubes. Sendo os membros mais difíceis de se organizar no ‘barrismo social’ e em um cenário parecido com a migração forçada dos camponeses pelo vínculo com a terra e a própria vida valerem cada vez menos após serem tão espoliados…

Mesmo com essa conquista em sua forma democrática, o conteúdo das políticas públicas para a questão da violência no futebol ainda precisa de alerta dos hinchas, pois seu adversário em comum é a repressão do Estado paramilitar. É possível que o agravamento da violência no campo, como analisado acima, tenha atenuado a percepção popular da violência policial urbana contra hinchas justamente por ser a mais rotineira. (Assim como o futebol na maioria nos principais países do mundo a violência policial também é bem rotineira). Simplesmente porque a polícia que reprime movimentos populares nas ruas não pode ser a mesma responsável pela segurança dos estádios sem repetir os mesmos vícios. (Obs: como premissa teórica, a policia é o estado de exceção já normalizado, pois é acionado para uma situação excepcional. Mas quando ela é resolvida a policia continua em cena!) Mesmo com a demanda do ‘barrismo social’ pela retirada de policiais dos estádios, a desconfiança dos hinchas com o poder público segue grande. Pois não se sentem seguros de denunciar um abuso policial, uma vez que alegam o risco de terem seus endereços rastreados pelo cadastramento das barras e sofrerem represálias.

Por fim, cabe uma menção dos últimos anos, que aproximam a dimensão de dentro e fora de campo, quando alguns dos craques históricos da seleção colombiana, o goleiro Higuita e o meia Valderrama, também deram o seu “aguante” e demonstraram enfáticos apoios públicos tanto ao “barrismo social” quanto à tentativa de reconversão das FARCs à vida civil através de um partido político e até mesmo de uma equipe de futebol. Pois sabem do potencial de mobilização popular e coletiva que o esporte tem.

Fica como lição que não existe uma ‘essência’ terrorista na guerrilha como tampouco existe uma ‘essência’ criminosa na hinchada. Uma vez que ambas são criminalizadas por um complexo dispositivo de poder estatal e paramilitar. Por fim, sobre o título desse texto, a seguir um video de cumbia com um dos temas musicais que embalam as ultimas jornadas de lutas políticas e futebolísticas pelo continente…

Referências

DOS SANTOS, Fabio Luis Barbosa. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). Editora Elefante, 2019.

HYLTON, Forrest. A Revolução colombiana. editora UNESP, 2010.

http://espndeportes.espn.com/especial/_/id/4134634/como-los-rebeldes-de-las-farc-dejaron-las-armas-y-ahora-juegan-futbol

https://www.brasildefato.com.br/2020/10/14/artigo-e-se-falarmos-sobre-os-direitos-humanos-na-colombia?fbclid=IwAR2yZ3TZLhqSMF30WbPCV85r1GygtrT1aNm8xQAkPGCGHRrmRcww9H9uiBE

https://www.brasildefato.com.br/2020/09/21/quais-as-origens-da-violencia-na-colombia

https://www.brasildefato.com.br/2019/05/20/senadora-colombiana-fala-sobre-novo-desafio-das-farc-agora-como-partido-politico

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. “Ya vas a ver, las balas que nos tiraron van a volver”: futebol e violência policial na Colômbia. Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 41, 2020.
Leia também:
  • 177.19

    Brasil e Colômbia: dois casos de intolerância religiosa clubística no futebol

    Amarildo da Silva Araujo, Hernan Gilberto Tovar Torres
  • 176.14

    Estádio Alfonso López Pumarejo e Estádio Nemesio Camacho (El Campín): as praças esportivas dos Jogos Bolivarianos de 1938

    Eduardo de Souza Gomes
  • 170.23

    Del Futbol indígena al fútbol profesional. Uniformar revisión en Colombia y Brasil

    Hernan Gilberto Tovar Torres, Danilo da Silva Ramos