Na primeira vez em que ouvi falar de Mário Jorge Lobo Zagallo, eu era muito criança. Foi durante a Copa do Mundo de 1974, disputada na então Alemanha Ocidental (RFA), em que o quarto lugar alcançado pela seleção foi interpretado no Brasil como um retumbante fracasso. Pudera, o time defendia o tricampeonato conquistado em 1970, e no grupo que se concentrava na Floresta Negra, próxima a Munique, havia vários remanescentes da vitoriosa campanha, que se mesclavam a novos valores, como Luís Pereira, Marinho Chagas, César Maluco, Leivinha, Paulo César Carpegiani, Nelinho. Entre os titulares de quatro anos antes, no entanto, apenas Piazza, Jairzinho e Rivellino estavam presentes. Do último se esperava, na ausência de Pelé, de quem herdara a camisa 10, que fosse o grande destaque. O treinador dirigira o time no México, assim como em terras teutônicas.

Meu pai e seus primos, todos paulistas convictos, ecoavam a imprensa do estado mais rico do país, que a cada dia destacava que o grande problema da seleção era a excessiva presença de cariocas, a começar pelo técnico. De fato, logo depois do torneio na Europa ele foi substituído por Osvaldo Brandão, de longa trajetória em times de São Paulo, em especial no Corinthians e no Palmeiras. Zagallo, por sua vez, se mandou para o Oriente Médio, onde fez história comandando a equipe do Kuwait, até voltar em 1978 para dirigir o Botafogo.

Foi no time de General Severiano, ainda que não só nele, que Zagallo venceu muito, primeiro como jogador e depois como joveníssimo treinador, bicampeão carioca em 1967 e 1968. Era um timaço aquele, com linha de ataque formada por Rogério, Gerson, Roberto, Jairzinho e Paulo Cézar Caju, todos presentes na convocação para a Copa de 1970, ainda que o primeiro tenha sido cortado por contusão sofrida nos últimos dias de preparação. Mas, dez anos depois, quando voltou do Oriente Médio, a situação era outra, mesmo que a equipe fosse muito boa, e que novamente o craque Paulo Cézar estivesse presente. Quando assumiu o comando, o time vinha invicto desde o ano anterior, périplo suspenso apenas quanto se completariam 53 partidas sem derrota. A interrupção não se deu sem ironia, tampouco isenta de certa polêmica.  

Zagallo Botafogo
Zagallo quando defendia o Botafogo. Foto: Fundo Correio da Manhã/Wikipédia.

Foi em uma derrota por 0 x 3 frente ao Grêmio, pelo Campeonato Brasileiro, em 20 de julho de 1978, que a invencibilidade malogrou. O toque irônico foi que dois dos gols do triunfo sulista foram do ponta-esquerda catarinense Renato Sá, que entretanto seria decisivo também no ano seguinte, justamente atuando pelo alvinegro: em 2 de junho de 1979, o Botafogo venceria o Flamengo por 1 x 0, impedindo que o Rubro-negro ultrapassasse a marca de jogos seguidos sem derrota que havia sido alcançada no ano anterior. O Fla estava há exatos 52 jogos sem perder e o algoz daquela tarde de domingo, no Maracanã, foi o mesmo Renato Sá, com um gol aos 9 minutos da primeira etapa.

A polêmica, por sua vez, ficou por conta de um amistoso contra o Uberlândia, em 5 de março do mesmo 1978. A peleja em Minas terminou em empate por 2 x 2, ou melhor, ficou inconclusa, já que ao final foi marcado um pênalti contra os cariocas, mas que não chegou a ser cobrado. O time visitante reclamou muito e, vendo que a invencibilidade estava seriamente ameaçada, abandonou o campo. “Zé, a gente tem que dar um jeito e sair do campo. Isso está armado”, teria dito Paulo Cézar Caju para o Zagallo, segundo contou, anos depois, o meia Mendonça. PC e o treinador lideraram a retirada, pouco importando os gritos de “Fujão” que a torcida local passou a entoar quando se deu conta de que os alvinegros não voltariam do vestiário.

“Há coisas que só acontecem ao Botafogo”, escreveu o grande Paulo Mendes Campos sobre seu time do coração, depois de uma vitória espetacular contra o Fluminense em 1957.

A frase elogiosa foi ganhando caráter negativo, dada a instabilidade sazonal das equipes que o clube foi formando principalmente a partir da década de 1980. O ano de 2023, em que o Campeonato Brasileiro parecia ganho, mas no qual apenas o quinto lugar foi alcançado, acabou dando azo ao mantra. O esporte é possivelmente uma das práticas culturais em que iluminismo e pensamento mágico se entrelaçam com mais facilidade. Entre as modalidades, o futebol se destaca. Se o Santos foi rebaixado no ano subsequente à morte de Pelé, o Bota deixou escapar entre os dedos, pouco antes do falecimento de Zagallo, uma taça para a qual talvez já procurasse lugar em sua galeria.

O próprio treinador combinou, como lhe foi possível,racionalidade e mito em sua longa e exitosa trajetória. Atento aos detalhes nos esquemas que propunha, foi um dos pioneiros na insistência em treinos táticos, algo que o ex-jogador, cronista e comentarista Tostão costuma valorizar. Ele mesmo, no entanto, destaca que em 1998, durante a Copa na França, quando Zagallo outra vez dirigia o escrete, as sessões de treinamento eram muito semelhantes às de 28 anos antes. Por outro lado, a considerar o que disse certa vez o idealizador do programa de adaptação à altitude mexicana realizado pela seleção de 1970, Lamartine Pereira Da Costa, o treinador não tinha grande apreço por essa preparação científica. Como se sabe, o longo processo de aclimatação foi, todavia,fundamental para o sucesso da “amarelinha”.

Zagallo
Único tetracampeão do mundo, Mario Jorge Lobo Zagallo, morre aos 92 anos. Foto Lucas Figueiredo/CBF

Em paralelo, Zagallo sempre cultivou superstições ligadas ao número 13. Há mesmo um curioso detalhe sobre o obituário publicado pela Folha de S. Paulo que, como costuma acontecer em relação a pessoas famosas, já estava esboçado havia algum tempo. Quanto? Sim, 13 anos. Isso nunca teve a ver, no entanto, com o partido que leva o mesmo número nas urnas. É triste que a camisa da seleção, que o treinador tão bem conhecia, tenha virado símbolo de reacionarismo nos últimos anos.

Reacionarismo, aliás, que sempre o rondou, cercado de militares nas comissões técnicas de 1970 e 1974, e portador de um discurso nacionalista constrangedor, daqueles do tipo “Brasil acima de tudo”. Foi Zagallo um dos principais agentes do discurso segundo o qual o país teria uma superioridade atávica no futebol, fantasia que gostamos de cultivar, mas que não resiste aos fatos. É frustrante, além disso, vê-lo no documentário Passe livre (Oswaldo Caldeira, 1974) manifestando-se sobre a luta de Afonsinho, que reivindicava o direito de exercer sua profissão onde melhor lhe aprouvesse, como se ele, então treinador do Flamengo, nada tivesse a ver com a questão.

Por tudo isso, saber de Zagallo é também acompanhar um tanto da história do futebol e, por consequência, do Brasil. Campeão em quatro copas do mundo em diferentes funções, como treinador ele armou aquela que foi provavelmente a melhor seleção nacional de todos os tempos: a de 1970, em que todos recuavam e muitos atacavam; na qual o médio-volante Wilson Piazza foi transformado em zagueiro, melhorando demais a saída de bola; a que era o time em que Pelé reinava, mas muitos brilhavam. Segundo vários jogadores que com ele trabalharam, não havia preleção melhor do que as dele. Então é isso. Valeu, Zagallo.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Zagallo (1931-2024): Lado b. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 13, 2024.
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