Para Danielle Torri, Thor Veras e Raone Augusto, flamenguistas que não o viram jogar.

E para Marcelo Tadeu,flamenguista que viu tudo.

Em 1977, a seleção brasileira de futebol estreou nas eliminatórias da Copa do Mundo que seria disputada no ano seguinte na Argentina, enfrentando o selecionado colombiano, em Bogotá. A partida foi ruim, o placar não saiu do zero e instalou-se uma crise que levaria à demissão do técnico Osvaldo Brandão. Duas semanas depois, contra o mesmo adversário, mas no Maracanã, o time da casa goleou por 6 x 0. O escrete agora era dirigido por Cláudio Coutinho, do Flamengo. A diferença se mostrou notória não apenas no placar, na escalação e no selecionador, mas no ímpeto. Em Bogotá o time entrou em campo caminhando, no Rio de Janeiro o percurso do túnel ao meio do campo foi feito correndo.

Boa parte da imprensa esportiva paulista não gostou nada da troca de comando na seleção. Saía um técnico campeão com os clubes do estado e com longa tradição no meio, para a entrada de um profissional carioca, oriundo da preparação física e da Escola de Educação Física do Exército, e ainda por cima capitão paraquedista reformado. Vivíamos sob ditadura que, justo naquele ano, começava sua abertura, “lenta, gradual e segura”, nas palavras do idealizador do processo, General Golbery do Couto e Silva. A não convocação de vários atletas de equipes de São Paulo só irritou ainda mais os repórteres e comentaristas. Entre outros, os corintianos Givanildo e Wladimir, vice-campeões brasileiros no ano anterior, etitulares na primeira partida, que não apareceram na lista para o jogo no Brasil, entrando Toninho Cerezo, do Galo, e Marinho Chagas, do Fluminense, em seus lugares. Luiz Pereira, que jogava pelo Atlético de Madrid, e Carlos Alberto Torres, que vinha atuando de zagueiro pelo Flamengo, foram incorporados ao grupo, assim como Manga, veterano goleiro do Internacional de Porto Alegre, que voltava à seleção depois de mais de dez anos, para a suplência de Leão, do Palmeiras.

Cresci em ambiente futebolístico que considerava o esporte jogado em São Paulo como superior ao praticado no Rio de Janeiro. Quando comecei a acompanhar o futebol com mais afinco, naquele 1977, a rivalidade era muito intensa. Lembrava-se da Copa de 1974, que teria sido perdida pela rivalidade entre cariocas e paulistas, e ainda da maior vaia que já se ouvira no Brasil, a destinada a Paulo Cézar Lima ao substituir Pelé em uma partida preparatória para a Copa de 1970. No meio disso tudo, sobravam críticas para o craque que vestia a camisa 10 do Flamengo, e 8 da seleção (a 10 era de Rivellino). Era Zico, tratado como jogador que só rendia, e fazia gols, no Maracanã.

Sim, era uma injustiça. Primeiro porque não era verdade, segundo porque a comparação com outros estádios não cabia, uma vez que tanto o Rubro-negro quanto a seleção brasileira atuavam muito no principal palco do futebol brasileiro. Naquelas mesmas eliminatórias, em 14 de julho, os brasileiros fizeram 8 x 0 nos bolivianos, na casa do adversário, e Zico fez metade dos gols. Lembro-me daquela partida como a primeira em que assisti pela televisão com transmissão em castelhano, já que estava com a família na Argentina. Foi um show do Galinho de Quintino, que seria o grande líder do Flamengo nos anos de ouro do time, campeão em todas as esferas, da Taça Guanabara à Copa Intercontinental, entre 1978 e 1983.

Zico
Arthur Antunes Coimbra, mais conhecido como Zico foi um dos grandes nomes do Flamengo nos anos 70-80. Pela seleção brasileira disputou três Copas do Mundo (1978, 1982 e 1986). Essa ilustração faz parte da Série Grandes jogadores que não ganharam uma Copa do Mundo. Ilustração: Francisco Carlos S. da Silva.

Zico foi um atacante completo, como Messi, ainda que sem chegar a tanto. De qualquer forma, em comparação com o astro argentino, cabeceava melhor e era mortal nas cobranças de falta, jogada que treinava obsessivamente. Há quem diga que a busca da perfeição foi herdada do pai, alfaiate. Pode ser, já que em outra atividade que também exige muita precisão, a cobrança de pênalti, o 10 também era mestre. Tão bom, aliás, que costumamos destacar as pouquíssimas cobranças em que o goleiro saiu vitorioso.

Na pequena Florianópolis da minha infância, os anos 1970 e 1980 foram repletos de futebol do Rio de Janeiro, transmitido pela Globo e pela TV Educativa, mas também capturado pelas câmeras do Canal 100, que assistíamos no cinema de sábado à tarde, antes que começasse o filme principal. Doval, Luisinho Lemos, Cláudio Adão, Nunes, todos centroavantes que fizeram duplas infernais com Zico, que na volta ao Flamengo para ser campeão em 1987, depois do sucesso na italiana Udinese, atuou armando o jogo para Renato e Bebeto, os dois jovens e rápidos atacantes do time.

Dizem que quando Zico atuava nas divisões inferiores do Flamengo, muita gente ia ao Maracanã para assistir às partidas preliminares e testemunhar o nascimento do craque que, à época, era conhecido como o irmão de Edu, atacante do América. Foram também anos em que o franzino jogador se tornou atleta, em um dos pioneiros casos bem acompanhados pela fisiologia do exercício. Chegou-se a dizer que ele não passava de “jogador de laboratório”. Bobagem.

Também com Sócrates, na seleção, Zico fez uma dupla das melhores, com o primeiro como centroavante ou ambos como pontas-de-lança. Amigos, atuaram juntos também no Fla, no final da carreira do Doutor. Pretendiam também jogar juntos no Corinthians, completando o ciclo em queforam ídolos, individualmente? Não sei, mas aqui e ali se especulou sobre isso. Sei que ele teria sido muito bem-vindo no Timão, onde a 10, de Rivellino, lhe cairia bem.

Sócrates morreu cedo, já há mais de dez anos, enquanto Zico segue vivo e alegre. Longa vida ao Galinho, nos seus 70 anos. E memória eterna aos feitos desses dois gênios.

Ilha de Santa Catarina, março de 2023.  

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Zico, 70 anos. Ludopédio, São Paulo, v. 165, n. 11, 2023.
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