Há pouco mais de seis anos, em fevereiro de 2013, jogaram o Club San José e o Sport Club Corinthians Paulista pela Copa Libertadores da América, em Oruro, Bolívia. Durante a partida, que terminou com igualdade de um gol no placar, morreu Kevin Espada, um menino de quatorze anos, nas arquibancadas do Estádio Jesús Bermúdez.

A morte foi causada por um foguete sinalizador disparado por alguém em meio à torcida visitante, o que levou à prisão temporária de doze torcedores brasileiros, indiciados como autores ou cúmplices do homicídio. Dias depois, no Brasil, um adolescente disse em entrevista ao programa semanal Fantástico, da Rede Globo de Televisão, ter sido o autor do disparo, sem que houvesse a intenção de atingir os torcedores do San José. Os corintianos, tanto o jovem quanto os detidos no país vizinho, eram filiados a torcidas organizadas de futebol.

Imagem do setor da arquibancada em que estava a torcida corinthiana em Oruro, Bolívia. Foto: Divulgação/Agência Corinthians.

Apesar da necessidade jurídica de individualização da culpa, torcidas organizadas, clube e mainstream do futebol foram também responsáveis pelo crime. As organizadas permitem que integrantes seus portem armas nos estádios e fomentem o ódio a adversários. O Corinthians, cujas relações umbilicais com as torcidas são conhecidas, teria que ter feito naquela ocasião mais do que lamentar, decretar luto e dizer que tudo foi um acidente. Em respeito à memória do menino e à sua família, deveria ter se retirado da Copa Libertadores da América. Simples assim. Era a atitude digna a ser tomada.

O episódio voltou-me à memória há algumas semanas, ao ler que um modelo havia morrido de forma fulminante em plena passarela do principal evento de moda do Brasil, a São Paulo Fashion Week. A semana de moda seguiu, como também em 1972, depois do sequestro e assassinato de onze atletas israelenses, os Jogos Olímpicos de Munique tiveram prosseguimento. Uma justificativa edificante seria a de que o esporte deve prosseguir como resposta ao terror, que não deve se deixar abalar por ele. Mas, todos sabemos que não é isso que está em jogo.

Não se trata de criminalizar as associações de torcedores, que podem ser importantes espaços de identificação e sociabilidade. Mas é inaceitável que apoiadores de um time ainda hoje possam agredir treinadores, ameaçar atletas, montar emboscadas, marcar batalhas campais contra torcedores adversários. Que tenha que haver policiamento ostensivo dentro e fora do estádio, assim como escolta policial para grupos de torcedores que se deslocam pelas ruas da cidade, já é mostra de que algo não vai bem.

Frequentar estádios de futebol é uma experiência que às vezes pode sugerir a excitação da aventura, a fantasiosa construção de nós contra eles, algo visível nas ofensas e ameaças que torcedores locais com frequência desferem para adversários, sempre que estes estejam do outro lado da grade que separa as torcidas. Melhor que assim seja do que de fato se chegue às vias de fato, mas isso não faz com que o espetáculo seja menos deprimente e ridículo.

Como boa parte dos esportes, o futebol é uma forma apaziguada da guerra, da qual herdou formas e vocabulário. Com ele nos emocionamos e podemos vencer sem humilhar o oponente e perder sem que nossa honra seja atingida. Nem todos pensam ou agem assim. A maioria dos torcedores, no entanto, não compartilha dos atos de selvageria. Quando muito, repete em uníssono os insultos ao time e à torcida oponentes, geralmente arguindo a suposta falta de virilidade dos adversários ou vociferando palavras que emulam a violação das mulheres da “tribo” inimiga. Os impropérios são ouvidos também em gritos de torcedoras, que incorporam o machismo e o belicismo dos homens. Coreografias, mantras, roupas e pinturas nos rostos: temos o cenário de uma simulação das batalhas primitivas.

Naquele mesmo desgraçado 2013 em que Kevin foi morto, torcedores organizados do Palmeiras agrediram jogadores de seu clube no Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, e, para fechá-lo com chave de ouro, pôde-se presenciar cenas de barbárie na Arena Joinville, ao final do Campeonato Brasileiro de Futebol. O Atlético (hoje Athletico) Paranaense jogava contra o Vasco da Gama no Norte de Santa Catarina porque cumpria pena de perda de mando de campo devido a confusões protagonizadas por sua torcida. A irresponsabilidade dos organizadores da partida, manifestada na falta de segurança na Arena, que deveria incluir a adequada separação entre os torcedores das agremiações, por pouco não leva a partida para o rol das catástrofes inesquecíveis.

Briga entre torcedores de Vasco e Athletico na última rodada do Camp. Brasileiro de 2013. Foto: Youtube/Reprodução.

É preciso acabar com a cultura violenta que rege muitas torcidas organizadas. Escolas de ódio em que jovens aprendem, a partir de irracionais fantasias, a odiar adversários e a se orgulhar das pancadarias. Isso nada tem a ver com a paixão pelo futebol e pelo clube, mas pelo coletivismo masoquista que parece oferecer uma frágil proteção: jovens frustrados, adultos infantilizados, despolitizados. Narcisistas, criminosos que encontram na horda, no grito e na violência corporal uma triste razão para viver. 

Certa vez, chegando ao estádio do Figueirense, em Florianópolis, um amigo e eu fomos momentaneamente impedidos de seguir porque não estávamos com a camiseta do time local. Fomos vistos como torcedores adversários passando por território vedado a estrangeiros. De roupa comum, e portando carteiras de sócio-torcedor, saíramos de uma reunião de pesquisa e, reagindo à interdição, dissemos que vínhamos do trabalho direto para o jogo. Pelo menos a coisa terminou em anedota, ao ouvirmos que por termos estudado pouco não alcançáramos o posto que nosso interlocutor ocupava em uma empresa de telefonia. Nela ele cumpria expediente apenas até às 14 horas, de forma que sempre havia tempo de passar em casa, fazer um lanche e vestir a camiseta do time do coração. Pelo menos a partida disputada naquela noite de quarta-feira foi bem jogada, fazendo valer a ida ao campo.

Coqueiros, Florianópolis, junho de 2019.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Faz seis anos: 2013, para não repetir. Ludopédio, São Paulo, v. 120, n. 1, 2019.
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