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Grandes carreiras, pequenas ideias: declarações mais que infelizes contra Vini Jr. e Aranha

1. Perguntado certa vez sobre quem seria o responsável pela cobrança de pênaltis na seleção de futebol do Paraguai, o lateral-direito Chiqui Arce, que no seu clube, o brasileiro Palmeiras, era o encarregado pelos tiros-livre de onze metros, não titubeou: “Si está Chilavert, lo patea Chilavert”. Referia-se, com respeito, ao famoso arqueiro do país vizinho, José Luis Chilavert, conhecido pela segurança embaixo das traves, assim como pelos gols marcados. Antes de Rogério Ceni, era o artilheiro mundial entre os arqueiros. A bela carreira como jogador profissional de futebol inclui títulos em equipes de quatro países diferentes, com grande destaque para dez anos no Vellez Sarsfield, da Argentina, pelo qual foi campeão da Libertadores em 1994, evitando o tri consecutivo do São Paulo, e da Copa Intercontinental, derrubando o Milan.

Eleito em três ocasiões o melhor goleiro do mundo, Chilavert liderou a equipe paraguaia na Copa do Mundo de 1998, na França. Os guaranis deixaram a competição apenas depois de perderem para o time da casa por um a zero, nas oitavas-de-final, com gol do hoje treinador nacional Laurent Blanc. O time era dirigido por Paulo César Carpegiani e além de Arce, trazia outro jogador conhecido dos brasileiros, o zagueiro Carlos Gamarra, que durante o torneio não fez sequer uma falta. A forte defesa contava ainda com Celso Ayala, campeão da Libertadores pelo River Plate em 1996, e Pedro Saraiba, que também atuou pelo time argentino.

2. Quatro anos antes, quando se apresentou para os treinamentos da seleção brasileira que disputaria a Copa de 1994, nos Estados Unidos, o atacante Bebeto andava mal-humorado. Então jogador do La Coruña, seu time alcançara o vice-campeonato espanhol, mas o gosto era amargo porque o título escapara na última partida. Enfrentando o Valencia, em casa, o Depo precisava vencer para assegurar a primeira conquista nacional, mas o jogo não saiu do zero. No último minuto, um pênalti ficou a cargo do zagueiro sérvio Miroslav Đukić, que o desperdiçou. Não foram poucos os que condenaram o brasileiro por não ter assumido a responsabilidade da cobrança, ao que ele não parou de responder, impaciente, que não era a principal opção, nem mesmo a segunda, já que havia recentemente perdido duas penalidades seguidas. O primeiro cobrador, repetiu várias vezes, era outro brasileiro, mas que havia sido substituído. Ele se referia ao volante e zagueiro Donato.

Não eram muitos, principalmente naqueles anos sem internet e com precária televisão a cabo, que conheciam Donato Gama da Silva, que atuara por América, Vasco e Atlético Madrid antes de tornar-se ídolo em La Coruña, onde, anos depois de aposentado, ainda vive. Ele teve uma carreira sólida, com muitos títulos no portfólio, inclusive o da Liga em 1999/2000, quando, de cabeça, fez o primeiro dos dois gols na partida contra o Espanyol, a que sacramentou a conquista. Com a cidadania ibérica, esteve em 12 partidas pela seleção, atuando inclusive na Eurocopa de 1996.

Vini Jr
Jogadores de futebol, Comitê Técnico e torcedores homenageiam Vinicius Junior, futebolista do Real Madrid, que sofreu racismo na Espanha na La Liga. Foto de thenews2.com/Depositphoto

3. Chilavert e Donato têm algo em comum, além de terem sido excelentes jogadores de futebol profissional. Ambos foram muito infelizes ao se manifestarem sobre as agressões racistas que Vinicius Jr. vem sofrendo, e que ganharam outra dimensão depois da contundente entrevista que o atacante brasileiro concedeu antes do recente amistoso entre a seleção nacional e a do país onde exerce sua profissão, a Espanha. O primeiro disse ao brasileiro, por meio de sua conta em uma rede social, que ele não deveria ser “maricón”. Com tal gesto, fez eco ao que bravateou o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, segundo o qual era preciso, durante a pandemia de covid-19, não ser “marica” e enfrentar o vírus. Por falar em presidência, Chilavert foi candidato ao posto no ano passado, depois de deixar-se fotografar sorrindo com Javier Milei, o mandatário argentino. Como esperado, ostentava uma plataforma ultraconservadora, mas, por sorte, não recebeu sequer um por cento dos votos, o que mostra um discernimento por parte dos paraguaios que brasileiros e argentinos não chegaram a ter.

Donato, por sua vez, disse que Vini Jr. deveria perdoar e esquecer os insultos, e que eles são “uma maneira de tentar provocá-lo. Eu, se estou jogando contra ele, o chamo de negro para provocá-lo” . Na história recente do futebol brasileiro o ex-jogador, que é negro, não está sozinho. Vanderlei Luxemburgo, por exemplo, não viu racismo no episódio de injúria racial por parte de uma torcedora do Grêmio contra o goleiro Aranha, do Santos, em 2014. Para ele tratou-se de falta de educação motivada pela tensão do jogo na Arena, mas não de racismo. Destacou ainda que seriam normais expedientes como esse para desestabilizar o adversário. Juntou-se ao então treinador do Flamengo o gremista Luiz Felipe Scolari, que pouco antes da partida seguinte contra o Santos, referindo-se à imprensa, disparou: “Eles vão cair na esparrela do Aranha de novo?”

4. É sempre importante escutar a voz das vítimas, e seria ótimo que Chila e Donato, Luxa e Felipão, lessem a carta pública de Aranha ao corintiano Rafael Ramos, acusado de injúria racial contra Edenílson, do Internacional, em 2022. Lá pelo meio do texto, ele é lapidar na síntese do que teve que enfrentar depois de levantar a bandeira antirracista: “O racismo me infernizou até o final. No Avaí, de Florianópolis, onde pendurei as chuteiras em novembro de 2018, pensei que teria sossego. Doce ilusão… Enquanto disputava o campeonato catarinense, aturei muita afronta de torcedores rivais. Eles não me ofendiam com termos racistas, mas faziam alusão à atitude que tomei contra os gremistas em 2014: “Aranha chorão! Aranha criador de caso! Aranha treteiro!” Ele segue, então, para fechar com um recado não apenas para Rafael, mas para todos nós: “Se por acaso você derrapar e disser uma bobagem para alguém, admita logo. Não finja que nada aconteceu. Assuma o erro e peça desculpas”. É isso.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Grandes carreiras, pequenas ideias: declarações mais que infelizes contra Vini Jr. e Aranha. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 8, 2024.
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