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Freddy Rincón: força nos campos, testemunha da história

Para Karen, Luz Mireya, Sandra, William – colombianos queridos

Em setembro de 1993, a prestigiosa revista esportiva El Gráfico, da Argentina, publicava uma de suas mais icônicas edições, com uma capa inesquecível onde, sobre um fundo preto, se lia o resultado de um jogo e, em letras garrafais, a palavra que não deixava dúvidas, com maiúsculas e ponto de exclamação: Vergüenza. Abaixo dela, um conjunto de frases curtas dando conta do mesmo fenômeno ocorrido poucos dias antes: a seleção de futebol nacional, em partida pelas eliminatórias para a Copa do Mundo que seria jogada no ano seguinte nos Estados Unidos, fora derrotada de forma implacável pelo selecionado colombiano. Para piorar as coisas, o revés acontecera em casa, no estádio do River Plate, o Monumental de Nuñez.

Naquela noite de domingo, dia 5, o time então bicampeão da Copa América, e que tinha Gabriel Batistuta no comando do ataque, Diego Simeone e Fernando Redondo no meio-campo, Oscar Ruggeri na defesa e Sergio Goycochea sob o arco, sofreu cinco gols, sem conseguir sequer marcar um, sendo completamente dominado pelos comandados do Maestro Francisco Maturana. Se a defesa colombiana foi suficientemente sólida para passar invicta (Óscar Córdoba era um goleiro excelente, que brilhou, entre outros, no Boca Juniors), a dupla de ataque formada Faustino Asprilla e Adolfo Valencia era de uma eficácia tremenda, tendo sido responsável por três dos tentos da partida. Atrás deles, jogavam dois craques, Carlos Valderrama e Freddy Rincón – este, aliás, abriu a goleada ao final do primeiro tempo, indo às redes novamente no segundo.

Foi, no entanto, melancólica a campanha colombiana no Mundial de 1994, terminada ainda na fase de grupos. O resultado não apenas contrariou as expectativas criadas pelo desempenho nas eliminatórias, mas também as que vinham da Copa anterior, disputada na Itália. Em 1990 a Colômbia avançara para a oitavas-de-final depois de buscar o empate contra a Alemanha, no derradeiro momento da última partida da primeira fase. O jogo sem abertura de placar até os 43 do segundo tempo, quando Pierre Littbarski colocou os teutônicos, que venceriam o torneio, à frente. O resultado tiraria os cafeteiros da competição, mas quatro minutos depois, em uma jogada construída por Valderrama, a bola chegou a Rincón que, avançando em diagonal pela direita, concluiu, como costumava acontecer, com precisão. Mais de 30 anos depois, ainda me emociona o gol e a comemoração do então jovem atacante, muito técnico e já com uma força impressionante.

Rincón esteve por mais de uma década na seleção da Colômbia, primeiro como meia avançado pela direita, depois como volante, posição para a qual foi deslocado por orientação de Vanderlei Luxemburgo, no Corinthians, onde chegou em 1997. Nessa posição, foi um dos melhores que vi jogar. Marcava e armava com a mesma eficiência, jogando de uma área à outra, tão bom na saída de bola quanto no passe, inclusive naquele final, para o gol. Não raro, decidia uma partida com o arremate ao gol, sempre forte e bem colocado. Depois de ter atuado em seu país natal, na Europa e no grande rival corintiano, o Palmeiras, Freddy foi o capitão do alvinegro em uma de suas melhores versões, a do time bicampeão brasileiro (1998/1999), vencedor do Paulista (1999) e do Mundial (2000). Fez com Vampeta uma dupla de volantes como poucas que se viu jogar no Brasil.

Além de parceiro nos gramados, Vampeta foi amigo. Segundo o próprio Rincón contou certa vez, o brasileiro foi a única pessoa do meio futebolístico a visitá-lo durante os quatro meses em que ficou detido no cárcere da Polícia Federal, em 2007. Acusado de lavagem de dinheiro e associação ao narcotráfico – havia uma participação dele em uma empresa no Panamá, de propriedade um amigo de infância ou juventude que era narcotraficante – foi, finalmente, inocentado. Jogador do América de Cali no começo da década de 1990 e astro da seleção colombiana em seu momento mágico, Freddy incorporou, junto com toda sua geração, a presença do crime no futebol.

Foi na mesma Cali, em 2014, que vivi uma situação inusitada. Convidado para uma conferência, fui jantar com colegas do local em uma agradável região da cidade e, no bonito restaurante, deparei-me com um cartaz que dizia ser proibido o ingresso com armas de fogo. O choque só não foi absoluto porque vivo em um país em que a violência é constituinte da história. Para não irmos muito longe, basta dizer que o ex-Secretário Nacional de Cultura, Mario Frias, costumava trabalhar armado[1]. Stricto sensu, não se trata de ilegalidade, já que ele detém a necessária autorização para o porte de arma, mas dá para imaginar a cena do responsável máximo pelas políticas culturais brasileiras com uma pistola na cintura em seu local de trabalho?!

Há uma semana Rincón foi homenageado no estádio do Corinthians, em Itaquera, Zona Leste da cidade de São Paulo, pouco antes e no intervalo da partida contra o Avaí, pelo Campeonato Brasileiro. O jogador morrera fazia poucos dias. Foram momentos bonitos os mostrados nos telões, assim como as manifestações da torcida. Que fiquem, então, as melhores memórias de um dos grandes que vestiram a camisa do clube e, principalmente, da seleção de seu país. Junto com elas, a necessária reflexão sobre a responsabilidade do futebol com o presente e o destino de uma nação. Certamente não é das maiores, mas pode ser relevante. Isso vale para a Colômbia, tanto quanto para o Brasil. No mais, que El Coloso descanse em paz.

Rincón

Ilha de Santa Catarina, abril de 2022.

[1] Mario Frias anda armado, grita e assusta funcionários da Cultura

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Freddy Rincón: força nos campos, testemunha da história. Ludopédio, São Paulo, v. 154, n. 30, 2022.
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