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5 toques de obras ficcionais brasileiras sobre futebol, por Elcio Cornelsen

Neste mês, compartilhamos as indicações de Elcio Loureiro Cornelsen, professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que atua no Programa de Pós Graduação em Estudos Literários. Elcio é líder do FULIA – Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes (FALE/UFMG), fundado em 2010, assim como é docente credenciado junto ao Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer, da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional (EEFFTO/UFMG), onde já orientou diversos trabalhos na área.

Elcio possui uma vasta produção dedicada à literatura germânica, assim como apresenta, uma igualmente profícua, publicação de textos dedicados ao futebol e aos esportes. Ele atuou como organizador de coletâneas, a exemplo de Futebol, linguagem e artes (2015), Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer (2015), Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer – volume II (2017) e Futebol – fato social total (2020) e foi um dos autores de Pequeno dicionário do futebol alemão e brasileiro (2014). Tem artigos e capítulos publicados sobre relações entre esporte e totalitarismo, biografias de jogadores e hinos de futebol em Minas Gerais e no Brasil e em Portugal.

No Ludopédio, Elcio Cornelsen tem mais de uma dezena de textos publicados na seção arquibancada como parte da coluna regular mantida pelo núcleo FULIA, além de ter sido um dos pesquisadores enfocados pela série de entrevistas mantida pelo portal.

Em sua lista, ele indica cinco obras ficcionais brasileiras sobre futebol. Vamos aos toques do convidado:

1º Toque: o romance “A saída do primeiro tempo”, de Renato Pompeu (1978)

Capa do livro a saída do primeiro tempo de Renato PompeuSe há um escritor que se destacou na literatura brasileira por escrever obras que versam sobre o tema do futebol, sem dúvida, esse escritor é Renato Pompeu (1941-2014). O autor do famoso romance “Quatro olhos” (1976), que retrata o contexto de repressão da ditadura civil-militar brasileira, escreveu um conto intitulado “Memórias de uma bola de futebol” (2002), em que a bola, na qualidade de protagonista, narra suas memórias, e também publicou o livro “Canhoteiro. O homem que driblou a glória” (2003), uma biografia sobre o jogador José Ribamar de Oliveira (1932-1974), o “Canhoteiro”, do São Paulo Futebol Clube e da Seleção Brasileira nos anos 1950. Mas, sem dúvida, seu maior destaque, quando o tema é o futebol, é o romance “A saída do primeiro tempo” (1978). Em um ensaio publicado em 2012, o escritor discorre brevemente sobre o processo de elaboração do romance:

[…] comecei imediatamente a escrever, ainda em outubro de 1977, dois textos sobre futebol. Um deles era um romance sobre um “espectro”, o espectro da Ponte Preta, na forma do espírito de uma preta velha e gorda que vagava pelos ares de Campinas e tocava de leve a testa de seus habitantes, provocando pequenas alterações nas atitudes, nos pensamentos e no comportamento deles.

Outro texto era uma tese, que eu julgava entre filosófica e científica, sobre o futebol […]. Assim nasceu meu segundo livro e meu segundo romance, A saída do primeiro tempo, lançado em 1978. (POMPEU, 2012, p. 182-183)

A tese central que compõe o romance “A saída do primeiro tempo” propõe uma relação intrínseca entre futebol e sociedade, a partir de uma leitura que relaciona o futebol com o universo do trabalho, e também com o lazer. Todavia, evitando o reducionismo, Pompeu ressalta que, em sua tese, a percepção do futebol se estabelece no plano simbólico.

Por sua vez, o “espectro” da Associação Atlética Ponte Preta, time de coração do escritor, assume uma função estruturante na narrativa, uma espécie de fio condutor que entretece as histórias das diversas personagens, tipos humanos da cidade de Campinas. Aliás, a grande quantidade de personagens no romance produz um efeito de “coletividade” diversificada, na qual o protagonista é o “espectro”. E são essas diversas histórias de pessoas comuns em seu cotidiano que emolduram a tese científica sobre o futebol, parte central do romance.

2º Toque: o romance “A colina dos suspiros”, de Moacyr Scliar (1999)

Moacyr Scliar (1937-2011), um dos grandes nomes da Literatura Brasileira, que ocupou a cadeira 31 da Academia Brasileira de Letras, também rendeu sua homenagem ao futebol, ao publicar em 1999 a obra “A colina dos suspiros”. Famoso pela publicação de romances como “O exército de um homem só” (1973), “O centauro no jardim” (1980), “A majestade do Xingu” (1997) e “A mulher que escreveu a Bíblia” (1999), o escritor e médico de saúde pública contempla os leitores com uma narrativa humorada, que já se revela na primeira frase do livro: “Como Roma, Pau Seco foi construída sobre colinas, mas aí termina toda a semelhança” (SCLIAR, 1999, p. 5).

Em “A colina dos suspiros”, o tema do futebol surge através de duas agremiações que dividem a cidade de Pau Seco, o microcosmo em que a ação transcorre: o Pau Seco Futebol Clube e, respectivamente, o União e Vitória. O que distingue os times em termos de topografia são as colinas em que se localizam seus estádios: a Colina de São Pedro (União e Vitória) e a Colina dos Suspiros (Pau Seco). Essa distinção é associada ao tema da morte, uma vez que nas proximidades do estádio do Pau Seco se localiza o cemitério.

A narrativa de “A colina dos suspiros” se estrutura a partir de relatos narrados em terceira pessoa do singular, em que predomina o narrador heterodiegético, ou seja, um narrador que não é parte da história narrada. Enquanto o União e Vitória é um time vencedor, o Pau Seco Futebol Clube é um time desafortunado, a começar por seu estádio:

“Não era um grande estádio. Não primava pela beleza. Muito menos pela conservação: gramado muito maltratado, arquibancadas – de madeira – em péssimo estado. Uma situação que refletia a do clube” (SCLIAR, 1999, p. 7).

E o que move a narrativa é, justamente, a localização do estádio, próximo do cemitério. Em uma cena lúgubre e, ao mesmo tempo, hilária, uma partida de futebol e um enterro acontecem simultaneamente, sendo este esvaziado, uma vez que muitos davam desculpas para irem ao estádio para torcerem pelo Pau Seco contra o seu arquirrival da Colina de São Pedro.

Sem dúvida, “A colina dos suspiros” é mais um exemplo da maestria de Moacyr Scliar, cujo traço humorístico é uma marca registrada de sua obra, em um universo do futebol comum a várias localidades pequenas espalhadas pelo Brasil afora, em que a rivalidade clubística move seus habitantes.

3º Toque: o romance “Segunda divisão”, de Clara Arreguy (2005)

Capa do livro Segunda Divisão de Clara ArreguyUm romance que merece destaque especial na série literária brasileira é, sem dúvida, “Segunda divisão” (2005), da jornalista e escritora mineira Clara Arreguy (1959*). Uma das principais características dessa obra é a estrutura narrativa que produz um efeito de polifonia, no sentido postulado por Mikhail Bakhtin em “Problemas da poética de Dostoievski” (2013), pois além de apresentar a partida entre dois clubes fictícios da Segunda Divisão – o Santa Fé, de Belo Horizonte, e o Arapiara, do ABC Paulista – a partir das diversas perspectivas das personagens, o discurso indireto livre intensifica esse efeito, em que se mesclam a voz do narrador onisciente em terceira pessoa e a voz/os pensamentos das personagens – os treinadores e jogadores de ambas as equipes, e também o árbitro – Heriberton – e uma jornalista – Magda Shoe – que cobre o confronto.

Sem dúvida, em termos estéticos, um dos grandes méritos do romance “Segunda divisão” se situa na complexidade de sua construção narrativa. O narrador onisciente também apresenta digressões, como a seguinte, em que o futebol aparece como metáfora para o jogo da vida:

Brasileiros ou não, os atletas refletem, como um espelho, as batalhas que o povo empreende – pela sobrevivência, pela ascensão, pelo aperfeiçoamento, pela superação. Caem e voltam, uns dão a volta por cima, outros morrem na praia ou no meio do caminho. (ARREGUY, 2005, p. 127)

Ressalta-se que não há apenas um narrador, que permanece soberano ao longo do romance, mas sim vários narradores: um narrador onisciente em terceira pessoa do singular; personagens narradores, como os jogadores Vadão, Cesinha, Sergivan e PC, do Santa Fé, e Andrezinho e Carlos José, do Arapiara; há ainda um capítulo estruturado dialogicamente, em que mais duas personagens recebem voz: Mimi, a que não entende de futebol, e Magda Shoe, a Leninha, jornalista esportiva; um personagem narrador inominado, que faz promessas para o Santa Fé sagrar-se campeão. Outras personagens são apresentadas pelo narrador em terceira pessoa: entre elas, o jogador Renato, do Arapiara, e o treinador Marconi, do Santa Fé. Tal pluralidade narrativa expressa, ao longo dos capítulos, a expectativa daqueles diversos atores e coadjuvantes que estão envolvidos nas partidas finais da Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Trata-se, pois, de um dos mais bem sucedidos romances de futebol já publicados no Brasil.

4º Toque: o romance “O drible”, de Sérgio Rodrigues (2013)

Capa do livro o Drible de Sérgio RodriguesOutro ótimo exemplo de como se lidar, ficcionalmente, com o jogo em si é o romance “O drible”, do escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, publicado em 2013. Por assim dizer, Sérgio Rodrigues torna o que poderia ser um entrave na narrativa justamente a força de seu texto. Logo no início do romance, o escritor opta pelo imagético do videoteipe, e por uma cena em especial: o quase-gol de Pelé na semifinal da Copa de 1970, disputada entre as seleções do Brasil e do Uruguai em 17 de junho daquele ano. No texto da “Introdução” do romance “O drible”, há toda uma digressão sobre o tempo e uma tentativa de se apreender visualmente o lance como momento sublime que culmina com uma frustração pelo gol perdido. A distância temporal de 26 anos daquela partida leva a personagem Murilo, um jornalista esportivo que presenciara a partida no Estádio Jalisco, em Guadalajara, a dissecar o lance inusitado com o auxílio de um aparelho videocassete, conforme a seguinte passagem do texto:

“O lance não deve ter mais de dez segundos, mas com as interrupções de Murilo enche minutos inteiros enquanto ele narra sem pressa, play, pause, rew, play, o que na época foi narrado com assombro.” (RODRIGUES, 2013, p. 9)

Noutra passagem do texto, temos não só a distensão temporal do lance, mas também a própria distorção da imagem na tentativa de se segmentar o tempo em busca dos detalhes para uma cena inusitada:

“Na TV, enquanto os dois borrões lentamente se fundem, a bola, um descalabro, passa por eles. Como se eles fossem porosos, o espírito esquecido de que é carne no ato mesmo, antecipando o videoteipe” (RODRIGUES, 2013, p. 11-12).

Portanto, em “O drible”, o tempo é a categoria fundamental na produção de narrativas que procuram dar conta do jogo em si, variando desde a narrativa rápida até aquela que provoca a distensão temporal, formas de traduzir em palavras o que é da ordem do corpo em movimento. Em meio a isso tudo, estabelece-se uma relação em crise entre pai – Murilo Filho – e filho – Murilo Neto, o “Tiziu”, que cobra do pai informações sobre as circunstâncias em que teria ocorrido o suicídio da mãe, quando Neto ainda era criança. Obra de uma engenhosidade literária ímpar, “O drible” evidencia a potencialidade do tema do futebol para se lidar com situações extremamente complexas, seja em seu sentido literal, seja como metáfora do jogo da vida.

5º Toque: o romance “O último minuto”, de Marcelo Backes (2013)

No romance “O último minuto” (2013), do tradutor, crítico literário e escritor gaúcho Marcelo Backes (1973*), a narrativa se estrutura a partir de uma estratégia engenhosa: no primeiro capítulo, instaura-se uma cena dialógica em que o narrador em primeira pessoa do singular é incumbido pelo protagonista, Iánic, o João Vermelho, a ouvir sua história. Tal estratégia, por assim dizer, situa os limites mesmos da visão do narrador em posição de “escuta”, cuja onisciência é limitada pelo próprio horizonte do protagonista que, aliás, se encontra em uma prisão, aguardando a condenação por um crime, cujas circunstâncias não são reveladas até esse ponto do romance. O mesmo ocorre com o futebol, cujo papel na vida do protagonista é importante, por este ter sido treinador de futebol, e por ter tentado a carreira no Sport Club Internacional de Porto Alegre, mas fracassara por uma lesão séria. Ao longo dos capítulos seguintes, o leitor toma conhecimento também de seu fracasso no casamento, e de sua “fuga” para a Suíça, onde tenta arrumar um emprego.

A trajetória de Iánic tem vários capítulos: após fracassar como jogador Junior, devido a uma lesão, e de ter treinado uma equipe juvenil no interior do Rio Grande do Sul, o protagonista viaja para a Suíça, para trabalhar como limpador de estábulos, mas acaba indo treinar um time da segunda divisão do campeonato suíço, do qual seu patrão era conselheiro. Após algum sucesso com o clube, Iánic regressa ao Brasil, treina uma equipe da terceira divisão no Rio Grande do Sul, e depois assume o posto de treinador da equipe de Juniores do Fluminense, no Rio de Janeiro. Cada vez mais, Iánic vai se desgostando dos rumos que o futebol mercantilizado e globalizado tomou. O treinador assume uma postura autoritária diante de seus comandados.

Ao longo do romance “O último minuto”, há uma série de digressões de Iánic sobre futebol, seja seu caráter “religioso” e “ritualístico”, seja sua mercantilização e o uso político, ou mesmo outros temas como o racismo, a ascensão social e a relação do futebol com traços nacionais e identitários. Em tais digressões, o futebol surge também como uma espécie de “apaziguador” de conflitos políticos. Mas dentre as digressões, parece haver uma central para se esclarecer o enigma em torno de Iánic: a regra da “morte súbita”, que leva o narrador a buscar definições em uma enciclopédia. Este, aliás, parece afeito ao universo do futebol, e até mesmo desconhecedor de suas regras. O que lhe parece ocupar de fato são as dificuldades para tentar escrever uma “biografia” sobre o protagonista. Do mesmo modo que em “O drible”, o futebol não apenas é parte significativa da vida do protagonista de “O último minuto”, como também lhe permite compreende-lo em seu sentido metafórico, em meio aos sentidos da vida e da morte.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elcio Loureiro Cornelsen

Membro Pesquisador do FULIA - Núcleo de Estudos sobre Futebol, Linguagem e Artes, da UFMG.

Raphael Rajão

Autor de A bola, as ruas alinhadas e uma poeira infernal: os primeiros anos do futebol em Belo Horizonte (1904-1921). Graduado e mestre em História pela UFMG. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Escola de Ciências Sociais FGV CPDOC. Atualmente pesquisa o futebol de várzea em Belo Horizonte.

Como citar

CORNELSEN, Elcio Loureiro; RIBEIRO, Raphael Rajão. 5 toques de obras ficcionais brasileiras sobre futebol, por Elcio Cornelsen. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 6, 2021.
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