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A Copa do Nordeste é um paradoxo perfeito

A Copa do Nordeste é o maior e melhor campeonato de futebol do mundo.

Vai saber, mas acho que baixou em mim Alberto Caeiro, o heterônimo do poeta português Fernando Pessoa, que um dia escreveu sobre o Rio Tejo e como ele, em que pesasse ser o rio mais belo dentre todos, não era mais belo que o rio de sua aldeia.

 É isso. É possível que a Copa do Nordeste seja o maior e melhor campeonato de futebol do mundo, nas vistas de um nordestino como eu, apenas porque, afinal, é o nosso campeonato.

A competição que gira em torno de nossos clubes, nossos estádios, nossos costumes. Em que somos os protagonistas, em que lembramos de nossas origens, de nossas identidades, em que brigamos pelo invejável título de reis do nordeste.

Mas, também, a Copa do Nordeste tem o seu valor porque, desde que foi retomada, em 2013, se manteve com excelente nível técnico. E já são sete campeões diferentes em oito edições. A taça já foi parar em cinco dos nove estados da região nesse curto período.

Dá para entender o tamanho disso tudo?

“Nós somos os campeões do Nordeste” gritado em cinco sotaques diferentes. Cinco dialetos próprios. Cinco formas diferentes de expressar a nordestinidade de cada um. E isso em apenas oito anos, o que mostra todo o equilíbrio do campeonato. Algo cada vez mais raro, mas sempre muito salutar para o futebol.

Copa do Nordeste
Foto: Daniel Guimarães / CBF

Numa região historicamente vítima de preconceitos, eis que surge uma copa que reinventa, ressignifica, reposiciona o Nordeste no cenário futebolístico (mundial). Para além das quatro linhas, para além do campo onde o embate esportivo se realiza, o futebol redimensiona o Nordeste, inclusive, para os próprios nordestinos.

A propósito, a Copa do Nordeste é um paradoxo perfeito. Ideal para se entender a região em toda a sua complexidade.

A mesma competição que apresenta o Nordeste como uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008) para o resto do país, coesa e estrategicamente reunida em defesa de sua identidade, é a competição que, internamente, escancara da forma mais cristalina possível toda a sua heterogeneidade. Toda a sua diversidade. Toda a sua rivalidade.

É bonito de se ver. É bonito de acompanhar o comportamento dos torcedores dos clubes nordestinos nos diálogos de todos os dias.

São duas posturas completamente antagônicas.

Uma de apologia e ufanismo ao Nordeste no discurso para não nordestinos. Outra que simplesmente implode a ideia de Nordeste no discurso entre os próprios nordestinos.

Porque, em bom nordestinês, no interior de nosso próprio território, “é arenga para se torar” durante a realização do Nordestão.

A unidade nordestina é um mito, afinal. Fala-se muito em sotaque nordestino, em culinária nordestina, em música nordestina, em futebol nordestino, sempre assim, no singular, mas isso só existe no campo das ideias, no discurso de um e de outro. Ora como posicionamento político, ora para reforçar preconceitos.  A prática, contudo, é completamente diferente.

Alagoanos, baianos, cearenses, maranhenses, norte riograndenses, paraibanos, pernambucanos, piauienses e sergipanos têm rivalidades mútuas, discordâncias irreparáveis, incômodos que os tornam, não raro, inconciliáveis. E a Copa do Nordeste, mais do que qualquer outra competição, ajuda a escancarar essas distinções.

Nove povos distintos, representados por 16 clubes, que, durante dois ou três meses, se provocarão, se digladiarão por meio de cânticos, coros, gritos de guerra, piadas. Escolherão cirurgicamente as supostas características negativas de cada um (no futebol ou fora dele) e usarão isso para provocar. Para ofender mesmo. Para acirrar rivalidades históricas e insanáveis.

Alguns são mais rivais do que outros. E, em regra, a proximidade geográfica é fundamental para potencializar as desavenças. Quanto mais próximos, mais fortemente marcada as diferenças. Ademais, simplesmente não tem essa de se abraçar para, em uníssono, se declarar nordestino “com muito orgulho, com muito amor”. Longe disso. A ideia de identidade nordestina, repito, é implodida durante o Nordestão, por mais contraditório que isso possa parecer.

Até que, um dia, a competição invariavelmente chega ao fim, consagrando um novo campeão. E, logo depois, haverá de ser iniciado o Campeonato Brasileiro em suas diferentes séries.

É hora de se reposicionar. De parar de olhar apenas para dentro de si e se voltar a todos os demais. É hora de resgatar a identidade nordestina frente aos não nordestinos. É hora de se defender de forças externas, enfim.

E é por isso que um torcedor do Botafogo-PB, por exemplo, odeia do fundo de sua alma o Sport Recife no primeiro semestre, e depois vibra como um rubro-negro ao ver que o clube do estado vizinho se salvou do rebaixamento. Como aconteceu em 2020, oras.

Copa do Nordeste 2020
Copa do Nordeste de 2020. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

As desavenças nordestinas são resolvidas entre os nordestinos. Diante de todos os demais, a saída é marcar posição, ocupar espaços, povoar as séries principais com o maior número de clubes nordestinos possíveis.

É isso! No mais, não me venham dizer que o Bayern de Munique é o melhor time do mundo. Como isso poderia ser possível, se o clube nunca venceu uma Copa do Nordeste em sua história?

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Phelipe Caldas

Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, mestre em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPB. É escritor e cronista, com quatro livros já publicados. Integra o Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e de Sociabilidade (LELuS/UFSCar) e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (Guetu/UFPB). É membro-fundador da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme).

Como citar

CALDAS, Phelipe. A Copa do Nordeste é um paradoxo perfeito. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 17, 2021.
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