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“Agora a gente tem que ganhar pra ficar maneiro no filme, né?!”

12 de novembro – 19h – Pizzaria em Nova Veneza

“Agora a gente tem que ganhar pra ficar maneiro no filme, né?!”, foi o que disse, em tom de empolgação, um dos oito jogadores-cineastas, enquanto decidia qual das quatro pizzas do seu prato seria devorada.

Pensei comigo: tá aí uma coisa que eu nunca vou entender enquanto pesquisadora, a fome que dá depois de jogar uma partida decisiva.

Pensei comigo mais uma vez: se vamos fazer um filme eu quero que tenhamos um final feliz.

É clichê, eu bem sei. Mas é a imagem que permanece, e isso me fez pensar comigo pela terceira vez, enquanto tentava a muito custo acompanhar o campeonato silencioso de quem come mais pizzas em um rodízio.

Imagem em movimento
Foto: sti1999/Depositphoto.

***

Quando escolho um filme procuro sempre por imagens que me envolvam na trama, que me absorvam junto dela para que eu esqueça da minha própria imagem, e me perca nas paisagens que chegam a cada nova cena. Existe algo do tempo da vida que entra em pausa quando se aperta o play. Durante aquele momento, o que há para ver e sentir é a imagem e apenas ela. Contudo, é preciso querer ver. Forçar ver. Ver com outros olhos. E nem sempre a gente quer ver, muito menos com olhos e pensamentos reflexivos. Por isso talvez a imagem tenha se tornado uma busca por um tipo específico de entretimento, que não exige a participação ativa do pensamento.

Ainda assim, perdida em pensamentos pela terceira vez naquela pizzaria, ao lado de garçons que se apavoravam com a fome que dá depois de jogar uma partida decisiva, me vi sonhando com o final feliz do nosso filme. Fui surrupiada pela lógica do cinema de entretenimento…

***

“Uma imagem vale mais do que mil palavras”, afirmaria Confúcio, mesmo muito antes da era do “eu” e da propagação da “selfie” (autorretrato) como registro imagético de paisagens que têm o ego como âmago na produção da memória.

A imagem é o que permanece.

Figueirense
Equipe do Figueirense conversa antes da partida. Foto: Eduarda Moro.

Nem sempre fiel ao que retrata, no entanto, é no que foi retratado que ancoramos o pensamento. Assim tem sido também no futebol contemporâneo, que foi tomado pela imagem. Seja na transmissão, no VAR, nas redes sociais ou nos inúmeros documentários e séries sobre os casos de sucesso dos jogadores milionários (vide “Neymar: o caos perfeito”; “Maradona: conquista de um sonho”; “Beckham”, entre outros), a imagem é fenômeno estruturante do futebol globalizado.

Aqueles que vivem nas proximidades dos gramados conseguem observar de perto o efeito da espetacularização do futebol nos corpos dos jovens-jogadores em formação. Se a imagem é o que permanece, é nela que se apoia também a identidade coletiva do jogador de futebol brasileiro. Nesse contexto, a imagem não se limita mais a apresentação apenas por meio das melhores jogadas compiladas em DVDs e vídeos online como um ‘currículo’ para os clubes. A imagem, agora, ultrapassa o campo e se infiltra nos perfis de redes sociais, repletos de fotografias de jogos e treinos que parecem mais como um ensaio fotográfico posado nas quatro linhas.

Foi lendo o texto “um espetáculo produzido para ser filmado“, de autoria do professor Alexandre Vaz, que surgiu a inquietação e a necessidade de pensar sobre as imagens posadas e, quase que idênticas, dos jogadores com quem tenho trabalhado.

Se o futebol é um espetáculo produzido para ser filmado, cabe analisar as questões que se colocam nas entrelinhas. Enquanto consumidores do futebol-espetáculo, nossa experiência está ancorada por discursos imagéticos. Discursos produzidos por uma estética dominante, pensados e enquadrados para nos capturarem. A performance extrapola o sentido contido no aspecto esportivo, transcendendo sua significância original e primária para uma performance que é estética: a performance imagética.

É aqui que o texto encontra com as palavras de Lucas Klein, doutor em educação e coordenador técnico das categorias de base do Figueirense. Por muito tempo, Sócrates foi o único doutor que vi em campo, agora encontrei com outro pensador das quatro linhas.  Lucas vê o esporte com aqueles olhos reflexivos dos quais falei antes, os olhos de quem quer ver e se força a ver, pois acredita no potencial de transformação socioeducativa que ainda respira nos centros formativos. Pedi a Lucas que me contasse sobre o que seus olhos têm visto neste lugar de quem vive o futebol que ninguém mais vê:

“- Vejo que tem uma grande diferença em jogos da base e jogos do profissional. É muito diferente estar em um jogo que tem transmissão […], estar em um jogo que tem público ou não tem público. Todas essas questões que afetam o desempenho, com certeza afetam também na forma com que o jogador se porta perante um jogo que é transmitido e tem cobertura e um jogo que não tem. Longe de ser ingênuo de achar que existe uma essência em um jogo sem essa cobertura (imagética), mas eles se comportam de forma diferente, isso é nítido. […] Eu vejo ainda que cada vez mais (o futebol) está sendo explorado comercialmente. Temos jogos do sub-9, sub-11, sub-13 que contam com cobertura, transmissão, venda de fotos”.

Esse parece um fenômeno do futebol globalizado que mais repercute na identidade coletiva do jogador, pois ela é reforçada pelo próprio sujeito em formação: a presença de fotógrafos que são contratados para registrarem os atletas. Afinal, não adianta jogar futebol se não é possível fazer ver que se é jogador de futebol, certo?!

As redes sociais servem agora como uma espécie de virtualidade técnica, que atestam por meio das imagens a estética de boleiro. Performar o futebol é ação necessária para quem decide jogar o jogo. E é justamente por isso que se faz necessário olhar com mais atenção para a questão da imagem. Olhar a imagem com outros olhos, olhos reflexivos.

Lucas complementa:

“- Os meninos se preocupam as vezes em sair bem (na foto) na hora do aquecimento, na hora do hino ou em um lance, para depois fazer uma postagem em agradecimento,  geralmente à Deus que deu o dom para ele de jogar futebol. Nesse sentido mostram que estão menos preocupados com relação ao próprio desempenho e a performance da equipe”.

Estão preocupados com a performance imagética.

Há anos acompanhando o futebol pelas beiradas, dentro e fora das quatro linhas, percebemos o impacto da imagem na vida de quem sonha em viver da bola. Entre ser e ter é importante que o parecer sustente a identidade, por vezes tão estereotipada, do jovem que sonha em se tornar jogador.

Repito: a imagem é o que permanece.

Repito, novamente: se a imagem é o que permanece e se vamos fazer um filme, eu quero que tenhamos um final feliz! Quero mais ainda, quero que tenha samba, assim como aquele que os meninos tocavam no ônibus, após deixarmos os garçons da pizzaria em Nova Veneza desesperados com a fome que dá depois de jogar uma partida decisiva.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

MORO, Eduarda. “Agora a gente tem que ganhar pra ficar maneiro no filme, né?!”. Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 26, 2023.
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