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Um espetáculo produzido para ser filmado (futebol)

A primeira imagem emocionante de minha memória futebolística é a entrada em campo de Fluminense e Corinthians para, no Maracanã, se enfrentarem pelas semifinais do Campeonato Brasileiro de 1976. Quando as câmeras mostraram a multidão de corintianos fazendo uma festa incrível para o time, pensei ser impossível que o adversário pudesse rivalizar em recepção e apoio. Deve ter demorado um ou dois segundos para que eu percebesse que estava errado: a torcida do Flu recebeu os tricolores com uma energia equivalente, tremulando suas bandeiras coloridas e construindo uma imensa nuvem de talco, referência ao “pó-de-arroz”, como o time foi tantas vezes chamado. Há uma narração radiofônica marcante desse episódio, a de Osmar Santos, que corresponde a um discurso de esperança e amor ao futebol, cuja força só encontra correspondência, em meu registro pessoal, na locução de Victor Hugo Morales para o segundo gol de Diego Maradona contra os ingleses, na Copa do Mundo de 1986, no México. A primeira conclama cada corintiano à celebração, a segunda entroniza o mito.

Não foi sem surpresa, há anos atrás, que soube que uma partida de futebol teria torcida única. Na verdade, seriam dois enfrentamentos, cada qual com os torcedores do mandante, por ocasião de umas oitavas-de-final da Copa Libertadores da América. Entrariam em campo os times do Boca Juniors e do River Plate, formando o que na Argentina é chamado de superclassico. Clubes, Associação de Futebol Argentino, Confederação Sul-americana e forças de segurança da capital Buenos Aires, todos se declararam impotentes e se mostraram resignados frente à impossibilidade de garantir a segurança de cada estádio e seus entornos, no encontro de hinchadas adversárias. Seguindo o exemplo portenho, há algum tempo os clássicos paulistas também são jogados com apenas torcedores locais. Mais que isso, a Polícia Militar pede que não haja dois jogos dos times grandes, ao mesmo tempo, em São Paulo, já que há medo de conflito entre torcidas organizadas que se encontrem pelo caminho. Há um anticlímax nos estádios ocupados por apenas um grupo de aficionados, e isso tudo só diz sobre nossa dupla falência: educacional, já que não conseguimos ensinar para o mínimo de civilidade e a ponto de evitar esse momento de barbárie; social, já que nos é impossível garantir a segurança de cidadãos que frequentam a praça esportiva.

Torcida Fluminense
Torcida do Fluminense. Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

Faz tempo, no entanto, que a presença de torcedores no estádio significa não muito mais que a participação em um espetáculo que não é propriamente transmitido pelos meios visuais – TV, mas também canais de internet –, mas é cada vez mais feito para ser transmitido. O evento está definitivamente enquadrado e narrado, com frequência, como se fosse um programa de humor. Concorre para isso a organização do momento pré-jogo. As equipes não entram mais uma de cada lado do campo, para logo saldar torcedores dos dois flancos do estádio, como naquele Fluminense x Corinthians. Antes sim, ganham o campo uma do lado da outra, no escuro quando o jogo é noturno, ladeadas por hastes das quais saem faíscas que lembram as velas de bolos de aniversário. O ritual, que se assemelha ao que é feito nos esportes estadunidenses, remete aos anos de Pelé no Cosmos de Nova York, quando os atletas chegavam ao gramado um a um e anunciados pelos autofalantes, como em um ringue de boxe. Associam-se a isso os altíssimos preços dos ingressos, supostamente justificados pelo fortalecimento do modelo do sócio torcedor, ou mesmo porque se trata de um grande espetáculo que deve ter o preço correspondente. No primeiro caso, trata-se de uma fidelização por cima, ou seja, para quem tem recursos de sobra para o lazer; no segundo, é apenas mentira, já que de espetacular o futebol brasileiro tem tido muito pouco.

Nada mais esperado, portanto, que a Copa do Mundo Masculina de 2030 seja disputada em seis países de três diferentes continentes. Poucos estão preocupados com quem poderia ir ao estádio, até porque os ingressos habitualmente têm preços proibitivos, que permitem quase só a frequência de “torcedores de boate”, como os classifica o jornalista Mauro César Pereira: os que de fato não acompanham o futebol, que muito raramente vão aos estádios, mas que podem comprar uma camiseta oficial de seu clube ou seleção a valores exorbitantes e rechear suas redes sociais de selfs nas arenas esportivas.

Pensando bem, em uma era absolutamente mediada pela tecnologia visual, o que esperar do futebol, sobre o qual atualmente muitos aprendem jogando videogames e não propriamente o jogo de bola? O enquadramento é a ordem do dia e da noite, a produção e disseminação de imagens o imperativo categórico do tempo presente. Comparece-se a grandes shows musicais para assisti-los, de fato, pelos telões espalhados pela plateia, e então filma-se tudo, para arquivar e esquecer os filmetes precariamente produzidos. Os próprios Rolling Stones, em sua última turnê pela América Latina, estanharam a quantidade de smartphones – essa nova prótese irrenunciável para o ser humano – empunhados por milhares durante os dois espetáculos no Brasil. Os mesmos celulares iluminados, levantados por torcedores ao mesmo tempo, como caricatura de uma noite estrelada, em noites de futebol na TV. É importante pensar sobre as consequências desse processo. E quanto à Copa do Mundo, que se dane ela e sua promotora, a FIFA.

Frankfurt, outubro de 2023.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Um espetáculo produzido para ser filmado (futebol). Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 7, 2023.
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