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Além do país do futebol

José Paulo Florenzano 9 de outubro de 2023

A cada tropeço da Seleção Brasileira em Copas do Mundo o mal-estar volta a se instalar no assim chamado País do Futebol, reavivando a discussão sobre uma identidade que inicialmente nos foi atribuída pelos europeus, depois foi assumida e reivindicada por nós mesmos como autoidentidade, para, mais recentemente, ser rechaçada como um estereótipo que distorce e reduz a nossas potencialidades como nação.

A expressão “País do Futebol”, como se sabe, encerra um conjunto de representações interligadas. Em primeiro lugar, presume o caráter inato do talento do jogador brasileiro; em segundo lugar, assinala o lugar central do futebol na vida coletiva; por fim, evoca a hegemonia do Selecionado Nacional nas competições internacionais. Tais significados e estereótipos, no entanto, excluem, ocultam ou remetem para o fundo do quadro os grupos minoritários cujas presenças perturbam ou subvertem a hierarquia de poder instituída em nossa sociedade.

Um breve retrospecto nos permite mostrar o modo pelo qual os embates travados pelos grupos minoritários se inscrevem na trajetória do selecionado nacional, explicitando os conflitos e as tensões que envolvem esse símbolo da nacionalidade. Recuando um pouco no tempo, pensemos inicialmente nos mundiais realizados no Brasil e na Suécia no século passado. Se, na Copa de 1950, os formadores de opinião responsabilizaram os atletas negros pela derrota (Barbosa, Juvenal e Bigode), retratando-os no papel de bodes expiatórios; na Copa de 1958 as matérias e reportagens diluíram a identidade negra dos atletas que tiveram um papel decisivo na conquista (Garrincha, Didi e Pelé), celebrando em vez disso a identidade nacional. Noutras palavras: na vitória exaltava-se o “futebol mestiço”, na derrota, culpava-se o jogador negro.[1]

1958
Seleção brasileira na Copa de 1958. Fonte: Wikipédia

A conquista do tricampeonato, mais adiante,  não apenas confirmava aos olhos do mundo a condição do Brasil como País do Futebol, como ensejava à ditadura militar a dupla oportunidade de celebrar o mito da democracia racial e  de cimentar a ideologia da integração nacional. Todavia, dois anos depois, por ocasião da realização da Mini Copa (torneio organizado pela então CBD para festejar o sesquicentenário da Independência), a Seleção Brasileira, por não contar no elenco com um único atleta em atuação no futebol gaúcho, viu-se implacavelmente vaiada em Porto Alegre, como se se tratasse de uma equipe estrangeira. [2]

Todavia, sem subestimar à época a força dos regionalismos esportivos, o principal eixo de conflitos durante os anos setenta encontrava-se sem dúvida alguma na militarização do futebol brasileiro. As Copas de 1974 e 1978, com efeito, levaram às últimas consequências a utopia autoritária, submetendo o selecionado nacional a um modelo de organização concebido à imagem e semelhança da caserna. O processo da militarização, porém, não foi desenvolvido sem resistência. Ao contrário, articuladas aos movimentos de oposição da sociedade civil, as lutas sociais dos atletas profissionais, no início dos anos oitenta,  trilharam os caminhos convergentes da Democracia Corinthiana e da Seleção da Abertura, cujo elo de ligação residia por sua vez na figura revolucionária de Sócrates.   

No entanto, a derrota do Brasil na Copa de 1982, e o revés da campanha pelas Diretas-Já, em 1984, abriram caminho para a reação conservadora no país, tanto no plano político através do continuísmo da Nova República, quanto no plano esportivo mediante a exaltação do Futebol Força. O corolário desta conjunção de fatores que incluía, ainda, a debacle na esfera econômica, foi o êxodo dos nossos principais artistas para o calcio. Esta emigração, por sua vez, estabeleceu uma divisão no selecionado nacional entre os brasileiros, isto é, os que atuavam no país, e os brasiliani, ou seja, os que jogavam na Itália. A conquista do tetracampeonato, porém, logo tornaria obsoleta esta divisão. Ocorria em 1994, no contexto da globalização, ela resgatava a autoestima do País do Futebol.

Na passagem para o século XXI, enquanto questões históricas que haviam balizado a trajetória do selecionado brasileiro pareciam superadas e relegadas ao esquecimento, questões emergentes irrompiam no cerne do símbolo nacional, redefinindo, uma vez mais, a identidade do profissional da bola. Com efeito, depois do sportsman, no período amador; do boleiro, no regime profissional; do soldado, na utopia militar; e do cidadão, na redemocratização; emergia, agora, o atleta de Cristo, incumbido da missão política de desfazer a aliança histórica tecida entre a prática do jogo e o povo de santo.

O País do Futebol, desse modo, adquiria novas feições religiosas, inconfundivelmente evangélicas, cujas mensagens, a partir dos anos 2000, propagavam-se de inúmeras formas: desde a formação em círculo dos jogadores, ajoelhados, orando no centro do gramado após a conquista do pentacampeonato, em 2002, até  o uso, por baixo do uniforme verde e amarelo, da camisa branca com a inscrição I Belong to Jesus!,  exibida por Kaká na Copa das Confederações, em 2009, na África do Sul.[3]

Contudo, quando a hegemonia parecia consolidada, sobreveio o declínio do selecionado brasileiro. Os 7 a 1 infligidos pela Alemanha, em 2014, representaram para muitos analistas e torcedores a morte simbólica do País do Futebol. Visto, porém, sob o prisma perspectiva do selecionado feminino, a questão adquire uma nova configuração. Com efeito, partindo das margens do campo futebolístico, no começo dos anos noventa, a navegação social das mulheres inscrevia novas interrogações no símbolo da nacionalidade, problematizando a noção de País do Futebol.

De fato, às questões sociais (amadores x profissionais), raciais (brancos x negros), políticas (militarização x democratização), nacionais (brasileiros x “estrangeiros”), religiosas (atletas de Santo x atletas de Cristo), explicitavam-se doravante as de gênero, questões que. a rigor, sempre estiveram presentes, porquanto camufladas pela proibição da prática do futebol imposta às mulheres pelo famigerado decreto lei de 1941.

Saídas de um longo período de clandestinidade, durante o qual viram-se obrigadas a recorrer às mais diversas técnicas de camuflagem para driblar a vigilância exercida pela polícia moral -, as atletas tornaram-se portadoras dos valores democráticos de uma prática inclusiva, igualitária e autônoma.[4] Nesta trajetória histórica, desnaturalizaram a ideia do talento inato e exclusivo do jogador masculino e, pouco a pouco, vão ocupando um lugar estratégico no coração simbólico da cultura nacional.

Brasil torcida
Torcedores(as) se reúnem no bar Nossa Arena para acompanhar a estreia da seleção brasileira de futebol feminino contra o Panamá, na Copa do Mundo 2023. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil.

A campanha, porém, aquém das expectativas, na Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia, em 2023, trouxe à lume, novamente, o debate sobre a nossa crise de identidade. Mas enquanto discutimos se o Brasil está deixando de ser, já foi ou não é mais o País do Futebol -, o devir-atleta prossegue o trabalho de desterritorialização, ultrapassando as fronteiras simbólicas dentro das quais se pretende fixar os significados do jogar bola em uma trama semântica tecida a partir das categorias de gênero, raça, nação, religião e classe.[5]


Notas

[1] Florenzano, José Paulo. O circo do futebol: personagens, tramas e estereótipos. Revista Espaço Plural, nº 29, Vol. 14, p.314-337, Toledo, 2013. 

[2] Guazzelli, César Augusto Barcellos. Futebol em tempos de ditadura: o Rio Grande contra o Brasil. Aurora: Revista de Arte, Mídia e Política, nº 9, p.84-103, São Paulo, 2010.

[3] Rial, Carmen. O “ovo do diabo”: os jogadores de futebol como os novos missionários da diáspora das religiões brasileiras. In: A diáspora das religiões brasileiras. Cristina Rocha e Manuel A. Vásquez (orgs.) São Paulo, Ideias & Letras, 2016.

[4] Silva, Giovana Capucim da. “Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação(1965-1983)” Dissertação de Mestrado, História, Universidade de São Paulo, 2015. Bonfim, Aira Fernandes. “Football feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941)”. Dissertação de Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Fundação Getúlio Vargas, 2019.

[5] Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, Vol. 4. 2 ° ed. São Paulo, Editora, 34, 2012

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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. Além do país do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 9, 2023.
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