As ciências sociais não têm caráter profético, mas auxiliam na visualização de futuros possíveis. Cansei de alertar, tanto da escalada de violência, entre torcedores argentinos e brasileiros, quanto da irresponsável omissão das autoridades. No dia 10 de agosto, fiz um fio no Twitter falando que as tretas entre torcedores da Argentina e do Brasil estavam entrando em outro patamar de agressividade[1]. Também repeti a preocupação após os incidentes acontecidos na final da Copa Libertadores, entre Fluminense e Boca[2]. Em consequência, as lamentáveis cenas ocorridas no Maracanã no último jogo entre as duas seleções eram tão previsíveis como evitáveis. O que se segue é a crônica de um drama anunciado.

Ignorando a rivalidade histórica, a escalada anunciada e as advertências escritas, os organizadores da partida entre Argentina e Brasil pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026 decidiram que era uma boa oportunidade para colocar as duas torcidas juntas e misturadas. Pior ainda, 24 horas antes do jogo descobrimos que barras argentinas e torcidas organizadas brasileiras estariam no mesmo setor. Um convite à confusão.

Torcidas Brasil e Argentina
Conflito entre torcidas do Brasil e da Argentina.

Frente à inação das autoridades, junto com a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (ANATORG) organizamos uma reunião com representantes de barras argentinas e torcidas organizadas brasileiras para dividir os setores na arquibancada. Isso foi respeitado. Repito: sem mediação de autoridade nenhuma. Torcedores e pesquisadores auto-organizados.

Já dentro do estádio, não sei exatamente como e quando a briga começou. Aparentemente foi quando parte do público brasileiro começou a vaiar o hino argentino e jogar alguns copos de cerveja. Os torcedores argentinos reagiram. Teve uma breve confusão que não parecia ser muita coisa. Porém, o Batalhão Especializado de Policiamento em Estádios (BEPE) resolveu intervir e tudo piorou. 

O que se vê nas imagens são golpes generalizados contra todos os torcedores argentinos, nenhum contra os brasileiros, embora a animosidade inicial para lutar fosse mútua nas duas torcidas. Muitos argentinos brigaram, outros se defenderam da melhor maneira que puderam, alguns fugiram e os demais tentaram acalmar as águas. TODOS RECEBERAM CACETADAS. Quebraram o braço e o dedo de outro torcedor. Vários foram suturados. Mais de dez feridos, todos argentinos.

Justamente porque tive que mediar entre as duas torcidas na prévia do jogo, porque falo português e porque já estava aí no meio, tentei separar. Há vídeos e fotos que provam isso. Só apanhei cacetadas da polícia. Terminei com 5 pontos na cabeça e cheio de hematomas nas costas. Todos os feridos foram presos. Sem importar o que tivéssemos feito, fomos acusados de “promoção, prática ou incitação da violência”. Na delegacia, os policiais esculacharam a gente, tiraram selfies rindo de nós, observaram as radiografias do garoto quebrado e riram na cara dele. 

Nenhum de nós, detidos, tivemos práticas racistas. Contudo, parte da imprensa brasileira disse o contrário, uma acusação grave e falsa. Fomos acusados pela polícia de gerar tumulto – também falso – não pelo racismo. Sim, há uma argentina acusada de racismo, mas ela enfrentou um processo diferente e foi solta vários dias depois. Ela precisa ficar no Brasil até o seu julgamento acontecer. 

Em suma, tentei mediar em uma luta inevitável, uma batalha que já nasceu perdida. Abriram minha cabeça, perdi o jogo, acabei na prisão e, ainda por cima, tiraram dinheiro de mim. Nós, detentos, tivemos que desembolsar 200 reais. Isso é chamado de ‘transação penal’. Você paga, você sai. Se não pagar, vai a julgamento.

Para explicar por que aconteceu isso tudo temos que compreender que há raivas acumuladas de um e outro lado. O racismo argentino gera ódio no Brasil. Um ódio que em nome do antirracismo se transforma em xenofobia quando cai na generalização de que “todos os argentinos são racistas”. Esta generalização legitima uma violência excessiva. Inocentes são tratados como culpados. Lembremos: apenas uma pessoa foi acusada de racismo durante a partida. 

A polícia brasileira faz o que sabe fazer melhor: reprime indiscriminadamente. O problema é que muitos brasileiros legitimam essa repressão em nome do antirracismo – causa justa e necessária. É curioso: em nome da tolerância, o Brasil está se tornando um país profundamente xenófobo. E não só para os argentinos. 

Brasil x Argentina
Ao fundo é possível ver as torcidas dividindo o mesmo espaço no Maracanã. Foto: Staff Images/CBF.

Aqui quero ser categórico: Argentina é um país profundamente racista. Já falei disso no fio do Twitter citado. Os argentinos não dão para a questão do racismo o peso que ela merece. Questão muito grave. Em todos os jogos que envolvem times argentinos contra brasileiros tem algum caso de racismo dos primeiros para os segundos.

Porém, como já disse, o antirracismo brasileiro se mistura com xenofobia por dois motivos: primeiro, pela generalização que fazem de alguns argentinos para toda a nação. Mas também pela hipocrisia de apontar fora ignorando dentro. Porque justamente a xenofobia faz isso, olhar para o vizinho para não olhar no espelho. 

Só na semana que antecedeu o jogo, no Brasil, segundo o Observatório da Discriminação Racial no Futebol aconteceram os seguintes casos de racismo: Paulinho, do Atlético-MG, foi alvo de intolerância religiosa após gol contra o Flamengo; o fotógrafo do Vitoria (da Bahia) denunciou insultos racistas na Arena Condá no jogo contra Chapecoense; um adolescente foi vítima de injúria racial, durante uma partida de futebol, no antigo Campo da Vigilância, na avenida Pero Vaz de Caminha, no bairro Bom Retiro, em Ipatinga (Mina Gerais).

Os argentinos, por sua vez, consideram-se vítimas. Porque não percebem a gravidade do seu racismo. E também porque são objeto duma violência física que não entendem como recíproca. Ofendidos, espancados, feridos e presos… eles juram vingança. E assim a espiral de violência continua o seu curso normal.

Os responsáveis pela segurança do evento – CBF, FIFA, CONMEBOL, BEPE, MARACANÃ – fazem declarações ridículas e passam a bola uns aos outros. Ninguém assume a responsabilidade. O pior que isso não acontece só entre argentinos e brasileiros. Nas últimas semanas também houve casos de xenofobia de peruanos contra venezuelanos[3] e racismo de bolivianos contra peruanos[4].

A violência tem fronteiras. Existem limites nacionais, regionais, raciais, étnicos, religiosos e de gênero que transformam as rivalidades em inimizades. Também existem limites sobre o que é tolerável e o que é inaceitável. Norbert Elias (2001) referiu-se a isso como “limiares de tolerância”, ou seja, aquelas agressões que as sociedades aceitam ou rejeitam publicamente. Ambos os tipos de fronteiras devem ser pensados de forma relacional. Que violência suportamos entre argentinos e brasileiros? Que agressões não aceitamos entre peruanos e venezuelanos? Qual é o limite tolerável entre bolivianos e peruanos? Se as autoridades competentes não assumirem a responsabilidade que lhes cabe em relação a estas fronteiras, a passagem do drama à fatalidade trágica é inevitável.

Referências Bibliográficas

ELIAS, Nobert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


[1] A violência entre torcedores argentinos e brasileiros | Nicolás Cabrera | Twitter

[2]CABRERA, Nicolas. Cinco teses sobre a rivalidade Argentina-Brasil a partir da Final da Libertadores 2023Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 7, 2023.

[3] Venezuela denuncia ‘sequestro’ de avião de sua seleção no Peru | Por AFP via Gazeta Esportiva

[4] “Quem não pula é cholo”: os cantos racistas dos torcedores bolivianos contra o Peru em La Paz | Observatório da Discriminação Racial no Futebol

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Nicolas Cabrera

Nicolás Cabrera é doutor em Ciências Antropológicas pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC) e bacharel em Sociologia pela Universidade Nacional de Villa Maria (UNVM). Atualmente é bolsista pós-doutorado da FAPERJ/CNPq no Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sob a orientação do Ronaldo Helal. Pesquisa temáticas ligadas à violência, segurança e esporte na América Latina.Tem publicado os livros “Que la cuenten como quieran: pelear, viajar y alentar en una barra del fútbol argentino” (Prometeo, 2021); “Uno hace lo que puede, ¿no? Visualidades en tiempos de pandemia” (2021); “No me olvides II: Historias de vida de inmigrantes” (2011). Também colaborou em diversos capítulos de livros e artigos científicos nacionais e internacionais. Além das suas atividades acadêmicas, trabalha com o jornalismo, a crônica e a fotografia.

Como citar

CABRERA, Nicolas. As fronteiras da violência. Ludopédio, São Paulo, v. 175, n. 5, 2024.
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