“Fazendo dinheiro como eu sempre quis

Com as camisa de time que eu sempre quis

Tô legal, tô feliz”

(Camisa de Time – Clara Lima)

A camisa de um time de futebol é equiparada por muitos a um manto, envolto pela sacralidade do torcer e expressando a vinculação entre sujeitos e instituições. Ela carrega todo um sentido, o que é, inclusive, uma forma de demonstrar e legitimar o torcer daqueles que a vestem com o máximo respeito e a responsabilidade que esse símbolo exige. Por tudo isso que mencionamos, em alguns contextos, as camisas também são vistas como troféus – quando “conquistadas” diante de um rival no intuito de “diminuir” ou “destruir” o outro -, tornando-se alvos e objetos para a destruição simbólica do adversário. De acordo com Toledo (2019), “camisas de futebol são mais do que meros adornos ou fardamentos indicativos da prática distinta do futebol no reino dos esportes. Revelam, obviamente, algo para além da condição de suporte para a exposição de signos, escudos, cores, marcas e logotipos de patrocinadores. Obviamente, também não são meras indumentárias no sentido de aderirem aos corpos de maneira inerte (…)”. Entretanto, ela marca, de certo modo, os contornos que definem quem é ou não parte daquele grupo de apaixonados por um clube. Pode parecer estranho começar a refletir sobre as camisas de times, mas é importante levar isso em conta, uma vez que, ao estabelecer certas padronizações, certos tamanhos e preços para as camisas, alguns sujeitos são pensados como torcedores, enquanto outros esquecidos.

Por conta das formas tão específicas de lidar com algo que transcende a noção de uma simples roupa, para muitos, uma das discussões que tomou conta da internet – principalmente das redes sociais -, no mês de maio de 2022, foi o uso da camisa de futebol para outros fins que não entrar em campo ou ir ver o jogo do clube do coração nos diversos espaços que contemplam essa atividade. Para citar alguns exemplos, bares e estádios são lugares em que encontramos com facilidade – quase como uma obrigação – torcedores vestidos com as camisas de seus times. E aí não importa se é a que acabou de ser lançada, ou aquela antiga que carrega afeto e superstição, não é mesmo?

Nem sempre! Essa regra pode parecer universal em um país que se orgulha de fazer do futebol sua principal referência, mas a gente deve se lembrar dos inúmeros atravessamentos que se costuram nas camisas presentes na “pátria de chuteiras”. Retomando uma questão importante já mencionada: algumas pessoas são contempladas na construção dessa camisa-símbolo de determinados times. Esses torcedores, que carregarão o manto, não são escolhidos à revelia e por isso temos padronizações, preços, marcas, entre outras especificações que também estão inscritas na camisa.

Uma vez que a lógica de mercado se faz importante para os clubes de futebol, as feminilidades, nem sempre contempladas nessa expressão do torcer, passaram a ser lidas como um público lucrativo para a venda de assessórios-símbolo. Deste modo, os clubes passaram a investir em camisas consideradas “apropriadas” para pessoas lidas dentro da lógica da feminilidade hegemonizada: mais justas, menores, mais curtas.

Grenal
Fonte: Reprodução Grêmio Oficial

As reverberações no cotidiano das “mulheres” (principalmente cisgêneras e brancas), que passam a acessar as camisas de time são inúmeras e transcendem, de certo modo, a própria vivência do torcer. Como exemplo disso, podemos mencionar o projeto que une moda e futebol, com o objetivo de incentivar “mulheres” a usarem roupas de time fora do estádio. A suposta ideia é fazer com que as torcedoras se sintam à vontade e arrumadas ao vestirem as camisas dos times do coração, uma vez que, nas lógicas de gênero, essa camisa carrega certo tom de “desleixo” e despreocupação com as aparências. Por isso, inclusive, existe também uma publicação de um manual para o “homem” moderno usar uma camisa de time para “sair”, sem parecer despreocupado com a forma como está se vestindo.

Sobre isso é bom lembrar que marcadores raciais, de classe, de gênero, de sexualidade, entre outros, entrelaçam-se no que é desleixo ou não, e até mesmo nas definições de quem pode usar as camisas dos clubes do coração e seguir sendo lido como arrumado e bem-vestido. Nem quando o símbolo é reduzido à lógica da moda, ele é tido como um elemento que nos iguala enquanto sujeitos que torcem. Uma outra polêmica pode nos ajudar a pensar sobre essas questões…

Alguns estabelecimentos que designam dress code[1] parecem não concordar com a ideia dos projetos descritos acima de que há formas diversas de trajar o manto do time do coração. No mês de maio de 2022, Cláudia Silva foi impedida de entrar em um bar em São Paulo por estar usando a camisa do Corinthians. Além de diversos pontos que possam caracterizá-la ou referenciá-la, Cláudia foi casada com o jogador Jô, ex-atacante do Corinthians — time cuja camisa era utilizada. Diante do ocorrido, para dizer no mínimo desconfortável, Jô lançou mão das redes sociais para denunciar a situação e acabou levantando debates outros de suma importância e que se entrelaçam ao relato. Nas discussões os pontos de vista eram diversos: algumas pessoas apontaram o caso como algo que não merece tanta atenção, pois a regra do bar é essa e deve ser seguida por todas as pessoas que desejem frequentar o espaço, já outras pessoas, entre muitas reflexões sobre o assunto, levantaram a discussão do uso da camisa como uma vestimenta, independentemente da ocasião ou lugar. Além disso, um outro ponto é importante de se pensar, que vai ao encontro do que Jô colocou na exposição do caso: o dress code exigido seria usado como justificativa para impedir o acesso de qualquer pessoa ao estabelecimento? Isso se daria de forma igual independente de quem traja a camisa do clube?
Fonte: Fábio Soares/Futebol de Campo

De forma mais explícita, a questão de gênero e raça não seriam importantes para pensar nessa construção discursiva que traça quem pode e quem não pode trajar de forma “adequada” e “estilosa” tais vestimentas? Será que outras tantas não são lidas de formas preconceituosas que esvaziam inclusive o sentido do amor pelo clube? O dress code não carrega marcadores sociais da diferença antes de ser um simples elemento de vestuário e regra de etiqueta?

Observar quais os discursos são produzidos, dando sentido em torno de um elemento comum em cenas diversas, com efeitos que muitas vezes têm pontos de toque, nos sinalizam para formas como as lógicas sociais são forjadas e reiteradas. Além disso, ao focalizar determinado contexto podemos entender muito sobre como esses processos estão implicados na nossa subjetivação. Dizendo de outro modo, entendemos que a camisa de time revela uma série de elementos sobre quem pode usar a camisa de time, como esta pode ser usada, e como essas pessoas que trajam as camisas-símbolo são reconhecidas – a partir de elementos circunscritos ou não à lógica do futebol. Evidenciando que este último não se trata apenas de um esporte e muito menos pode ser lido como dissociado do que é chamado de “sociedade”.

As camisas de time, assim como o próprio futebol, também estão inseridas em uma lógica mercadológica. Assim, os preços para a aquisição deste símbolo do torcer, geralmente, são pouco acessíveis aos torcedores, o que tem como um dos efeitos, numa tentativa de romper com essa restrição de uso, as camisas “falsificadas”, entendidas como parte de um “mercado paralelo” da produção.[2] Além dos valores financeiros, o torcedor/a que usa a camisa “oficial” acredita estar investindo, até mesmo ajudando o clube ao comprá-la, e por esse motivo, muitas vezes acaba indo contrário ao torcedor que encontra alternativas para declarar o seu amor ao clube. Todo esse jogo, mantém lógicas desiguais em que o status de quem tem poder aquisitivo para adquirir esses produtos é valorizado e reiterado como o desejável, apesar de não ser um ponto de igualdade entre nós, que torcemos. Uma estratégia criada pelos clubes para o incentivo a compra de camisas anualmente e que, querendo ou não, reiteram o jogo mercadológico supramencionado, é o aumento de opções de camisas, que apesar de apresentadas com menores preços, ainda estão fora da realidade de boa parte da população trabalhadora brasileira. Como exemplos destas temos as camisas de treino; camisas que carregam projetos comemorativos – nos quais campanhas de marketing são realizadas no intuito de fazer o torcedor/a acreditar que ele faz “parte” do clube e que será “mais torcedor” se adquirir tais produtos – e, até mesmo algumas linhas veiculadas aos próprios clubes de reprodução de camisas antigas.

Quais imaginários são produzidos e revestem as pessoas que traçam e explicitam sua vinculação com os esportes? Quem são essas pessoas? Até que ponto proibir o uso de uma determinada camisa não diz de uma marginalização de alguns sujeitos que vivenciam o futebol para além dos estádios, bares e jogos? Perguntar sobre isso é fundamental, para entender as lógicas discursivas contidas nas tessituras sociais. Principalmente quando lembramos que ainda há a tentativa de separar o futebol de outros âmbitos da vida, sustentando uma série de preconceitos, violências e marginalizações como parte do “tom jocoso” (GASTALDO, 2010) e do torcer.

Assim, uma camisa – elemento que parece simples – além de desencadear múltiplas discussões, evidencia a impossibilidade de seguir argumentando a existência de “um dentro” e “um fora” do futebol, distante das lógicas sociais e cuja participação é mediada por simples escolha. Porque, ainda que haja a tentativa de exaltar o uso das camisas de time como elemento da moda cotidiana, devemos lembrar que não é qualquer pessoa que pode usar uma camisa de time e sair ilesa. Em algumas não cabe no corpo, em outras não cabe no bolso, e há, ainda, aquelas em que o pedágio pelo uso é a desconsideração de sua existência como sujeito. Ainda que o time estampado seja o mesmo, nem a camisa, nem o torcer,[3] parecem nos colocar em pé de igualdade.

Notas

[1] Dress Code refere-se ao “código de vestimenta” estabelecido por diferentes instituições no intuito de orientar quanto as formas de se vestir ao frequentar determinados locais.

[2] Usamos aspas nos termos “falsificada”, “original”, “mercado paralelo”, para justamente problematizar tais discursos. Quais os seus propósitos? E os seus efeitos? Quem é contemplado pela ideia de uma originalidade dentro do sistema capitalista, que se reinventa constantemente? Enfim, poderíamos seguir elaborando uma série de perguntas, mas é justamente lembrar que o que é “falso” ou “original” são partes de uma mesma construção que visa lucro.

[3] Para entender essas diferenças da vinculação do torcer, fica a recomendação do texto Torceres, de Dantas, Anjos e Mendes (2021).

Referências

BEATRIX, Anna; BULLÉ, Jamille. Vá de Camisa: projeto une moda e futebol para incentivar mulheres a usarem roupas de time fora do estádio. Globo Esporte (Ge), 2021. Disponível em <https://ge.globo.com/blogs/coisa-do-genero/post/2021/11/10/va-de-camisa-projeto-une-moda-e-futebol-para-incentivar-mulheres-a-usarem-roupas-de-time-fora-do-estadio.ghtml>. Acesso em 09 ago 2022.

DANTAS, M. de M., ANJOS, L. A. dos, & MENDES, B. G. (2021). Torceres: Pensando Diferentes Possibilidades de Pertencimento Clubístico. LICERE – Revista Do Programa De Pós-graduação Interdisciplinar Em Estudos Do Lazer, 24(1), 477–509. 

ESPN. Família de Jô é barrada de entrar em restaurante por usar camisa do Corinthians; atacante faz desabafo. ESPN, 2022. Disponível em <https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/10308181/familia-de-jo-e-barrada-de-entrar-em-restaurante-por-usar-camisa-do-corinthians-atacante-faz-desabafo>. Acesso em 09 ago 2022.

GASTALDO, E. L. As Relações Jocosas Futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. Mana (UFRJ. Impresso), v. 16, p. 311-325, 2010.

RODRIGUES, Bruno. Como usar camisa de futebol sem parecer ridículo. Manual do Homem Moderno, S.D. Disponível em <https://manualdohomemmoderno.com.br/esportes/como-usar-camisa-de-futebol-sem-parecer-ridiculo>. Acesso em 09 ago 2022.

TOLEDO, L. H. de. (In)vestindo camisas de futebol: moda esportiva e agência na produção das emoções torcedoras. dObra[s] – revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda, [S. l.], v. 12, n. 27, p. 31–46, 2019. DOI: 10.26563/dobras.v12i27.981. 

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Anna Gabriela Rodrigues Cardoso

Doutoranda em Estudos de Linguagens no CEFET-MG

Bárbara Gonçalves Mendes

Psicóloga, doutoranda em Psicologia Social pela UFMG, pesquisadora no Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) e do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH).

Como citar

CARDOSO, Anna Gabriela Rodrigues; MENDES, Bárbara Gonçalves. Camisa de time. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 2, 2022.
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