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Cuca: o bom treinador pode nos dizer algo sobre o futebol

Silas foi um ótimo jogador de meio-campo. Fez parte dos Menudos do Morumbi, aquele time do São Paulo Futebol Clube com Müller, Careca e Sidney que encantou a todos, vencendo um Brasileiro e dois Paulistas entre 1985 e 1987. Foi ídolo também no San Lorenzo, na Argentina, além de ter atuado bem em Portugal e na Itália. Depois da aposentadoria, tornou-se treinador e logo no início da carreira fez uma marcante campanha na Série B em 2008 com o Avaí, classificando-o para a primeira divisão do ano seguinte. Em Florianópolis a imprensa tentou chamá-lo de Paulo Silas, somando-lhe o prenome para uma designação que corresponderia à nova condição de treinador. Ao contrário de outro ex-jogador que passou pela capital de Santa Catarina no mesmo ano, mas para dirigir o Figueirense, Alexandre Gallo, com o avaiano a coisa não colou, e Silas seguiu sendo chamado como nos tempos em que chegou a vestir a 10 da seleção brasileira.

O nome composto pode não ser o único marcador da nova função, há os que vestem terno à beira do campo, como Vanderlei Luxemburgo (que, no entanto, viaja com o agasalho do clube) ou os que se apresentam em jeans e camiseta, como o próprio Silas. Uma vez vi o ex-goleiro Leão orientando o time em roupa social, mas calçando chuteiras a fim de não escorregar no gramado molhado. Diego Maradona trajou terno e sapatos para orientar a seleção argentina em 2010, na Copa jogada na África do Sul, mas, mesmo assim, tratava a bola com carinho quando ela chegava perto da área técnica e era presenteada com a categoria de seu pé esquerdo.

Nada disso basta, no entanto, para mudar o ethos de jogador para treinador, ainda que talvez possa ajudar a convencer os outros, e especialmente a si mesmo, que agora a função é outra, assim como as responsabilidades. Tenho a impressão de que, para alguns, essa transição pode ser difícil. É o caso de Cuca, que foi um bom jogador e é um ótimo técnico, com títulos importantes e um histórico de montagem de excelentes equipes que, finalmente, foram campeãs sob a orientação de outros. Quem sabe a dificuldade esteja, ainda, em deixar de ser um tipo de futebolista que já não cabe nos dias de hoje, seja dentro ou fora das quatro linhas.

Cuca na final da Libertadores da América de 2020. Foto: Ivan Storti/Santos FC.

No último final de semana, dirigindo o Santos, Cuca uma vez mais fez das suas, desta vez no Maracanã, ao se embolar com Marcos Rocha, lateral do Palmeiras, em uma situação fora do campo, já nos acréscimos da final da Copa Libertadores da América. A bola saíra em lateral, chegando próxima ao treinador, que a segurou, talvez para ganhar algum tempo e esfriar o jogo que, tudo indicava, iria para a prorrogação. O resto da história todos sabem, o gol do Alviverde aconteceu dois minutos depois, em momento de posicionamento equivocado do Peixe. Não é possível afirmar que um fato ocasionou o outro, mas dá para dizer que o imbróglio promovido pelo treinador não ajudou o seu time.

Não foi a primeira vez que Cuca agiu mal com uma bola fora de campo em uma Libertadores. Em 2011, na primeira rodada de eliminatória simples, depois de ter feito a melhor campanha na fase de grupos, o Cruzeiro perdeu em casa para o Once Caldas. O jogo estava por acabar e Cuca tentava não tardar a cobrança de um lateral para a sua equipe. Para isso, em movimento inverso ao da semana passada, mas com a mesma dose de irresponsabilidade, deu uma cotovelada no atacante Wason Rentería, que fora, aliás, campeão do torneio em 2006 jogando pelo Internacional. Foi, como no último sábado, expulso.

São conhecidas as arengas de Cuca nos famosos rachões, jogos nem sempre muito amistosos, que os jogadores disputam como recreação às vésperas de uma partida oficial, eventos em que podem atuar fora de suas posições em campo. Foi em um deles, em 2004, que o clima esquentou com Rogério Ceni, então goleiro do São Paulo. Cuca parece gostar de seguir jogando, ainda hoje ele atua no futebol amador em Curitiba, ultimamente nos sêniores dos Amigos do Macaris, de São José dos Pinhais, com outros ex-profissionais da bola. Ótimo, mas a mentalidade boleira raiz, na impossibilidade de ser extinta, deveria ficar lá mesmo, nos campos secundários da região metropolitana de Curitiba.

Cuca joga de goleiro em treinamento do Santos. Foto: Ivan Storti/Santos FC.

Há algo mais. No último sábado, o treinador do Santos envergava uma camiseta com a imagem da Virgem Maria estampada. Conhecido pelas superstições diversas e pela devoção à santa, não surpreendeu ninguém. Ao vê-lo lembrei-me que na final da Libertadores de 2013, enquanto o Atlético Mineiro disputava nos pênaltis o título contra o paraguaio Olimpia, Cuca rezava ajoelhado na beirada do campo. É evidente que cada um pode professar a fé no que bem entender, o que corresponde a um princípio de liberdade e é direito constitucional. Não é disso que se trata. O Galo tinha um ótimo time, muito bem montado. Cuca, ademais, fora o grande responsável pelo ressurgimento de Jô e de Diego Tardelli e, principalmente, de Ronaldinho Gaúcho, cujo irmão e empresário, Assis, jogara com ele no Grêmio. Ou seja, o resultado de seu trabalho todos nós víamos no campo, assim como tem acontecido com o Santos na atual temporada.

Sei o quanto o esporte, o futebol em particular, é eivado de crenças de todo tipo, mas penso que em momento decisivo, como na disputa de 2013, o recado aos jogadores poderia ser outro: “treinamos, temos bons cobradores de pênalti, Victor é um especialista em evita-los. Confiemos em nossas possibilidades”. Afinal, de que vale trabalhar tanto, se a interferência do além vai determinar a diferença entre o campeão e o vice?

Gostaria que Cuca, um treinador que admiro, valorizasse mais o próprio trabalho. O esporte não precisa de destemperos, tampouco do excesso de crendices que lhe espanam o brilho e, ao contrário do que parece, não o tornam mágico. O encantamento está no jogo e em seu aspecto imponderável, assim como em nosso esforço em controlar as ações. É o equilíbrio e o desequilíbrio entre esses dois aspectos que tornam uma partida de futebol tão fascinante, e é só tendo isso em consideração que faz sentido não apenas torcer, mas admirar o jogo de bola.

Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2021.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Cuca: o bom treinador pode nos dizer algo sobre o futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 13, 2021.
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