160.22

Democracia: há quarenta anos, futebol posicionado

Em 1982, nesta mesma época do ano, estávamos também em meio a disputas eleitorais. Como esta que vivemos agora, era um pleito histórico. Depois de quase duas décadas, novamente se podia votar para prefeituras municipais (em alguns casos, não) e governos estaduais, escolha que se juntava a de vereadores, deputados, senadores. Não havia rede social e a campanha se dava, além de na televisão e no rádio, principalmente nas ruas. Embora estivéssemos sob pluripartidarismo, os partidos comunistas estavam proscritos (eles seriam legalizados apenas em 1985), e seus candidatos se abrigavam no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), agremiação que sucedia ao MDB, a oposição oficial à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que representava a ditadura, durante os anos de bipartidarismo. Sérgio Grando, por exemplo, quadro histórico do PCB que anos depois seria o alcaide de Florianópolis, foi eleito vereador.

Como a de hoje, a campanha de quatro décadas atrás foi muito violenta, com insultos entre os candidatos, uso da máquina pública, acusações infundadas e tudo mais, ao lado de denúncias corretas e justas. A situação não tinha muitos limites e, entre outros absurdos, se inaugurava obras públicas na véspera da eleição. Entre aqueles anos em que vivíamos sob o arbítrio daquele regime e os dias atuais, as coisas mudaram, mas nem tanto: depois de um período de relativa civilidade nas disputas eleitorais e governos de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, regredimos para a mentira institucionalizada, o desapego ao factual e o “debate” sobre o “banheiro unissex”.

Raí
Raí faz “L” de Lula em premiação Bola de Ouro 2022. Fonte: reprodução

No que se refere ao futebol e à participação política dos seus, a felicidade tem sido pouca, com um ou outro defendendo a democracia, como Raí e Roger Machado, enquanto vários preferem o apoio ao extremismo de direita, como Lucas Moura, Neymar e Felipe Melo. Nem sempre foi assim, não precisa ser dessa maneira.

Há quarenta anos, a propósito daquelas eleições gerais, a Placar consultou quatro jogadores, representando os estados com mais destaque no cenário esportivo, sobre seus planos se fossem eles eleitos governadores. Sócrates, Paulo Sérgio, Reinaldo e Cléo, do Internacional, responderam à demanda do editor da revista semanal, Juca Kfouri. A Placar se colocava na oposição ao regime ditatorial que vivíamos. O Almirante Heleno Nunes, que sucedera João Havelange na presidência da Confederação Brasileira de Desportes (CBD), depois transformada em “de Futebol” (CBF), não era poupado pelos editoriais e reportagens, assim como tampouco Nabi Abi Chedid, político mais que tradicional da ARENA e dirigente que foi mandatário do Bragantino, da Federação Paulista e, sem ocupar a presidência, da CBF.

Começando pelo Sul, Cléo, meio-campista do Internacional, deixou-se fotografar em frente ao Palácio Piratini, como se governador já fosse. Ensino gratuito, combate ao êxodo rural, fortalecimento do sindicado dos profissionais de futebol, faziam parte de suas preocupações, assim como o cultivo de um relacionamento mais honesto com a população. Destacando a geração de empregos no Polo Petroquímico do Sul, assinalava que o governo de então dizia que o número de postos de trabalho era muito maior do que realmente fora gerado. O atleta criado na base do Colorado mostrara coragem também em outros momentos, como quando reconheceu, em entrevista ao histórico jornalista Roberto Gigante, ter tido experiências homossexuais na juventude.

O goleiro Paulo Sérgio representou o Rio de Janeiro. Ele começara sua carreira no Fluminense, mas naquele momento brilhava no Botafogo, clube pelo qual chegou à suplência da seleção brasileira que disputara a Copa naquele ano (a do Desastre do Sarriá). Ele que, anos depois, se destacaria como arqueiro do selecionado de futebol de praia, propôs uma agenda com cinco itens: valorização da carreira do magistério, segurança pública, geração de empregos, habitação e transporte.

Reinaldo
Punho Cerrado contra o Flamengo em 1980. A marca de um Rei. Foto: Estado de Minas

Reinado, centroavante do Galo, que andou pelo PT e pelo PSB depois de deixar precocemente o futebol, vejam só, defendeu o regime de partido único, além da garantia dos direitos básicos para todas as pessoas. Representando Minas Gerais, inspirou-se no socialismo de caserna, a ponto de propor até mesmo a concessão de privilégios para os dirigentes do Estado. Não deixou de ser criticado por Juca Kfouri no editorial da revista.

Por fim, como era de se esperar, Sócrates foi a voz por São Paulo, estado para o qual apresentou um detalhado programa, que ia da reivindicação por democracia como direito (algo urgente naquele momento e atualíssimo agora) à organização do solo urbano, da segurança alimentar às condições de trabalho e ampliação de emprego, da medicina preventiva à remuneração de professores e professoras. Ele que se destacara na seleção e que ainda naquele ano seria campeão paulista pelo Corinthians, foi, como todos sabemos, o principal artífice da Democracia Corinthiana.

Diretas Sócrates
Sócrates discursa para milhares de pessoas no vale do Anhangabaú. Fonte: Reprodução TV Globo

Apoiado por Sócrates, Franco Montoro foi eleito governador do estado de São Paulo naquele pleito de 40 anos atrás. Dois anos depois, estariam juntos, com Luís Inácio Lula da Silva, Osmar Santos, Fernando Henrique Cardoso e tantos outros, no palanque das Diretas Já! Montoro, com outras figuras políticas importantes, deixaria o PMDB em 1988 para fundar o PSDB, o Partido da Socialdemocracia Brasileira. Socialdemocrata sem base operária, o que torna as coisas improváveis de cumprir seu destino, o partido foi, nas contingências da política brasileira, naufragando. Hoje é um quase nada que apoia, em parte, a extrema-direita. Quanto ao futebol, talvez vençamos o Mundial que será jogado em um país que não respeita os direitos humanos.  Nossos craques não parecem estar preocupados com isso, nós, torcedores, tampouco. O Brasil é um país constrangedor.

Ilha de Santa Catarina, outubro de 2022.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Democracia: há quarenta anos, futebol posicionado. Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 22, 2022.
Leia também:
  • 178.27

    Torcida organizada e os 60 anos do Golpe Civil-Militar: politização, neutralidade ou omissão?

    Elias Cósta de Oliveira
  • 178.26

    1974/2024: a solitária revolução portuguesa e lampejos sobre o futebol

    Fabio Perina
  • 178.18

    Hinchas, política y 24M: la Coordinadora de Derechos Humanos del fútbol argentino, emblema de trabajo colectivo

    Verónica Moreira