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“Futebol-Arte” na Alemanha: a exemplo do Bayer Leverkusen

A vitória da seleção de futebol de Alemanha na Copa do Mundo de 1954 é conhecida popularmente como O Milagre de Berna. O epíteto se deve à surpreendente vitória contra os húngaros, que além de terem uma constelação de craques (Kocsis, Puskás, Czibor, entre outros), jogavam um futebol taticamente inovador. Um timaço. A conquista foi marcante também porque tratou-se da última ocasião em que a equipe alemã atuou de forma unificada, mesmo com o país dividido em dois havia já cinco anos.

Milagre de Berna
Cena de O Milagre de Berna. Fonte: Reprodução

Se milagres existissem, provavelmente não seriam destinados ao time alemão, de forma que foi mesmo fruto do esforço de Sepp Herberger e seus dirigidos a vitória na capital da Suíça. Ademais, o pensamento mágico, em sentido estrito, não é o forte dos teutônicos. Há, no entanto, uma espécie de melancolia que liga os habitantes do Norte da Europa às fantasias sobre o Sul, o que certamente inclui os países latinos do continente velho, mas ainda com mais força as nações que estão abaixo (ou acima?) da Linha do Equador. A alegria e a habilidade dos corpos livres estariam por aqui, de modo que viveríamos em um manancial de talentos que, quase que espontaneamente, emergiriam para contrastar com o organizado, porém mecânico futebol europeu. A contraparte de nosso jogo-de-cintura seria a pouca mobilidade dos europeus.

A narrativa acima é eficaz, embora seja antes reforço de uma tradição inventada do que expressão de uma realidade empiricamente verificável. O Brasil é enorme, o futebol é muitíssimo praticado, são centenas de clubes que disputam os campeonatos profissionais, o que torna esperável que jogadores sejam revelados aos montes por aqui. Além disso, há tradição e com ela se reproduz e se fortifica uma cultura de formação.  E há alemães, além de holandeses, irlandeses e outros norte-europeus, com muita habilidade com a bola.

Bayer Leverkusen
Fonte: Wikipédia

É no contexto dessa melancolia que se coloca a reiterada presença de jogadores brasileiros em times europeus, sendo exemplar o caso do Bayer 04 Leverkusen, o bom time alemão que, vez por outra, complica a vida dos grandes da Bundesliga – campeonato que, aliás, tende a ter um único protagonista, o poderoso Bayern München, cada vez mais distante dos seus concorrentes (o nome dos clubes é semelhante, mas a realidade é muito diferente). Pequena cidade industrial nos arredores de Colônia, Leverkusen é conhecida por ser sede da gigante farmacêutica Bayer, e pela equipe de futebol que lhe corresponde. Desde os anos 1980, os brasileiros são contratados para, segundo uma vez disse Rudi Völler, dar um toque de criatividade ao time. Dirigente do clube nos anos noventa, antes de ser alçado ao cargo de treinador da seleção alemã vice-campeã mundial em 2002, ele foi, como jogador, campeão da Copa de 1990. Era um bom atacante, técnico e rápido.

Völler repetia naquela ocasião uma imagem ainda hoje comum sobre o futebol brasileiro, a da mitologia do futebol-arte. Não por acaso, os primeiros contratados pelo Leverkusen eram meias ofensivos, como o pioneiro Tita, jogador de seleção e de muitos títulos pelo Flamengo, seu time formador, assim como pelo Grêmio e pelo rival Vasco da Gama, tendo atuado ainda no México, na Itália e na Guatemala. Com ele o time da Bayer foi campeão da Copa da UEFA 1988/89. Ou como o recém-repatriado da China, Renato Augusto, que do rubro-negro carioca foi para a Alemanha com status de camisa 10, mas que teve que aprender, segundo ele mesmo conta, a marcar e acompanhar os avanços dos laterais, fazendo o que lá chamam de Zweikampf, a batalha de um contra um.

Rudi Völler
Rudi Völler em 2016. Foto: Wikipédia

Não foram os únicos. O Leverkusen foi a porta de entrada da Alemanha para Paulo Sérgio, atacante campeão brasileiro pelo Corinthians em 1990 e mundial pela seleção em 1994, que ainda chegaria ao Bayern München para ser vencedor de quase tudo. O percurso do lateral-direito Jorginho foi mais ou menos semelhante. Vindo do Flamengo e igualmente campeão na Copa jogada nos Estados Unidos, desembarcou na região do Reno para atuar no meio-de-campo, cumprindo o percurso de muitos jogadores habilidosos que saíram da beirada do gramado para ganhar espaço e armar o jogo de seus times. Não foi muito diferente do que aconteceu com Zé Roberto, que deixou o flanco defensivo esquerdo para brilhar como armador do Leverkusen, depois de despontar na Lusinha e passar por Real Madrid e Flamengo. Como os outros, acabou chegando também ao poderoso time da Bavária.

O mesmo destino de Zé Roberto teve o zagueiro Lúcio, que jogou com ele em Leverkusen e depois também em Munique, ele que foi um dos bons zagueiros brasileiros que passaram pelo Bayer. Juan e Roque Júnior também jogaram (bem) lá, assim como os volantes Zé Elias e Emerson, o que mostra que não só de brasileiros que atuam como meias e atacantes (como, além dos já citados, França e Paulo Rink) vive o time da Bayer. Com exceção da de goleiro e de lateral-direito, o time teve jogadores do País Tropical em todas as posições do campo.

Até mesmo Marquinhos, o maior ídolo do Avaí Futebol Clube, atuou pelo Bayer Leverkusen, mas com pouco sucesso e apenas em uma partida oficial. Com boas passagens depois por São Paulo e Santos, o Galego brilhou mesmo no seu time do coração, em que atuou, entre idas e voltas, por mais de uma década. Um ídolo local. E já está bom.

Paulinho
Foto: reprodução redes sociais

Em Leverkusen joga hoje um brasileiro, o Angriff (atacante) Paulinho. Campeão olímpico, o número 7 presta suas homenagens ao Candomblé enquanto vai formando uma sólida carreira na Alemanha, sendo festejado pelos gols e apoiado pelo clube em momentos difíceis, a exemplo do da recuperação da grave lesão no joelho. A ele o Bayer dedicou um bonito documentário: Never stop fighting – Paulinho: da ruptura do ligamento cruzado ao retorno.

Paulinho, guerreiro como Oxóssi. Longa vida para os brasileiros em Leverkusen.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. “Futebol-Arte” na Alemanha: a exemplo do Bayer Leverkusen. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 51, 2021.
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