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Jogo de bola, jogo do bicho, dinheiro manchado de sangue

Quando eu era criança e começava a me interessar por futebol, a presença do Bangu no noticiário era escassa e secundarizada em relação aos quatro grandes do Rio de Janeiro, assim como também ao América, que disputava campeonatos ainda com algum sucesso. O clube de Moça Bonita era mencionado junto a outros de menor porte, a exemplo de Bonsucesso, Madureira, Campo Grande, São Cristóvão e Olaria, todas agremiações que quase sempre frequentavam a parte de baixo da tabela de pontuação da Taça Guanabara e do Campeonato Carioca.

As leituras que eu fazia sobre história do futebol falavam, no entanto, de um time glorioso. Vários de seus jogadores haviam sido convocados para seleção brasileira, como Zizinho – o destaque da Copa de 1950 – e o campeão mundial, em 1962, Zózimo. Ambos compunham uma galeria que tinha, entre outros, Paulo Borges, em 1966, e viria a ter Marinho, duas décadas depois. Foi o penúltimo que me fez simpatizar com o Bangu, clube em que atuou antes de transferir-se para o Corinthians. Em sua estreia, em seis de março de 1968, no Pacaembu, o Timão venceu o Santos, de Pelé & cia, por dois a zero, com um gol seu e outro do centroavante Flávio Minuano. Eram 11 anos sem triunfos contra o Peixe pelo Campeonato Paulista. O astro da noite costumava dizer que aquela fora sua mais notável atuação em uma partida de futebol. Nunca o vi jogar, mas tive um time de futebol de botão no qual sua esfinge se destacava como meia-atacante, embora fosse ponta-direita na vida real.

O Bangu foi responsável pela primeira vez em que fui ao Maracanã para assistir a uma partida de futebol, em 2019, a convite de Leonardo Soares de Silva de Melo e Antonio Jorge Gonçalves Soares, em noite tranquila e bonita de duelo contra o Vasco da Gama. Em meio aos banguenses, não pude deixar de notar a imagem do pequeno roedor subaquático estampada nas camisetas, uma homenagem a Castor de Andrade. O caráter pitoresco da referência àquele que foi o patrono do clube encobre o que todos sabemos: o homem que entrava armado no campo de futebol, ladeado por seus capangas, e pagava atletas profissionais com dinheiro em espécie, era um dos criminosos mais poderosos do Rio de Janeiro.

Castor de Andrade
Enredo da Unidos de Bangu homenageou Castor de Andrade em 2021. Foto: Divulgação

Em um de seus momentos de maior relevo, em meados dos anos 1980, o Bangu chegou a contar com Paulo César Carpegiani como treinador, ele que poucos anos antes liderara o Flamengo na conquista do Brasileiro, da Libertadores e da Copa Intercontinental. Dentro do campo, jogadores como Mauro Galvão, Neto, Perivaldo e Arturzinho figuraram no forte plantel que, em diferentes versões, chegou longe, inclusive à final do Brasileirão em 1985. Foram anos de sucesso tanto do time quanto da marca, por assim dizer. O tom galhofeiro da imprensa ao tratar da presença de Castor de Andrade como benfeitor não raro tornava-se cínico, ao mostrar toda aquela ostentação de poder e dinheiro criminoso sustentando um time de futebol – o que, aliás, igualmente acontecia com a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel.

Há uma reportagem da TV Globo, de 1981, que é muito elucidativa em relação ao conteúdo e ao espírito daquele tempo. Por meio dela ficamos sabendo, por exemplo, que a concentração do time se realizava em uma casa especialmente destinada a este fim e que se denominava Toca do Castor, em clara alusão não apenas ao dito-cujo, mas, como paródia, a um dos mais famosos centros de treinamentos de então, em que a seleção brasileira costumava hospedar-se, a Toca da Raposa, do Cruzeiro. Como treinador do grupo, lá estava Moisés, que foi um bom zagueiro, chegando até mesmo ao selecionado nacional, mas que se orgulhava da própria violência contra os atacantes adversários. Com ele, Marinho, o ótimo ponta-direita convocado por Telê Santana em 1985, na preparação para a Copa, e também Cláudio Adão, o centroavante cuja juventude no Santos foi marcada pelo peso de ser um possível sucessor de Pelé. Não chegou a tanto, claro, mas fez bela carreira como artilheiro.

Pois bem, foi Cláudio Adão que conseguiu com seu sogro, o produtor de cinema Luiz Carlos Barreto, que se fizesse uma projeção privada na Toca do Castor do filme O Rei do Rio (1985), protagonizado por Nuno Leal Maia, Nelson Xavier e Milton Gonçalves, e dirigido por seu cunhado, Fábio Barreto. O enredo é sobre dois amigos que deixam de sê-lo ao disputarem o domínio do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Meses antes, um outro trabalho cinematográfico não apenas fora exibido, como tivera sua estreia na mesma casa, com direito à presença da estrela Zezé Motta. Era Águia na cabeça (1984), de Paulo Thiago, drama sobre o encontro entre corrupção política e a loteria clandestina criada pelo Barão de Drummond em fins do século XIX. Ou seja, tudo a ver com Castor, fazendo com que as coisas ficassem entre o descaramento e o escárnio. Tem algo disso em nós, a cada riso que emanamos quando nos parece engraçado o que é, na verdade, crime.

Em 1989, o Botafogo, cujo principal dirigente era o bicheiro Emil Pinheiro, foi campeão carioca depois de 21 anos sem títulos. No ano anterior, o mesmo Marinho que chegara ao selecionado, se transferiu para o Fogão junto com o meia e atacante Paulinho Criciúma e o zagueiro Mauro Galvão. O negócio realizado entre os dois times (lembremos: havia ainda a lei do passe) teria envolvido a transferência do controle de pontos do jogo do bicho, acertada entre o Doutor Castor e o Seu Emil.

Não é novidade a presença de dinheiro sujo no futebol. A lavagem de recursos escusos e a corrupção em apostas aparecem no noticiário esportivo com lamentável frequência. Isso se é que há moeda limpa no capitalismo, em que as notas (ou os números na tela do celular) sempre vêm manchadas com o sangue de quem trabalha. É bom gostar de futebol, mas não é bom esquecer o que, muitas vezes, o torna possível.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Jogo de bola, jogo do bicho, dinheiro manchado de sangue. Ludopédio, São Paulo, v. 177, n. 9, 2024.
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