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Marcelinho Carioca: glórias de moldura triste

Na minha infância, quando meu irmão e eu aprendemos com meu pai a gostar de futebol e ser corintianos, um dos jogadores que eu admirava era Vaguinho, que viera do Clube Atlético Mineiro para amargar anos sem títulos no Timão. Talvez pelo apelido em diminutivo, ou porque jogava na ponta-direita (uma posição que me parecia curiosa, de ataque, mas não para necessariamente fazer gols), ou simplesmente porque me parecia técnico e habilidoso (o que de fato era), não sei, gostava do camisa 7. Quando ele finalmente chegou a campeão paulista, em 1977, foi o autor do único gol do Corinthians na segunda partida contra a Ponte Preta, mas, saindo do banco (Osvaldo Brandão preferia Adãozinho para marcar os avanços de Odirlei, lateral adversário), levava nas costas o número 15.

O Corinthians teve outros jogadores que com a 7 brilharam, entre eles Fabinho, autor da jogada e do passe decisivo para Tupãzinho, autor do gol que selou o título brasileiro de 1990, contra o São Paulo de Telê Santana. O número agora é de Luan, o bom atacante que ainda não mostrou tudo o que pode.

Mas não há qualquer dúvida que o grande atacante pela direita do alvinegro veio do Rio de Janeiro ainda jovem, depois de formar-se jogador profissional no Flamengo e ser lançado a campo pelo mesmo Telê Santana que comandara o São Paulo supercampeão do início da última década de noventa. Ele fez parte de uma geração excelente de jovens profissionalizados no Flamengo, o time campeão da Copa São Paulo de Futebol Junior em 1990.

Nélio, Junior Baiano, Paulo Nunes e Djalminha eram da mesma safra que foi rapidamente deixando o clube para ganhar prestígio em outras paragens. Marcelinho ganhou o sobrenome de Carioca para diferenciar-se daquele que começou a ser chamado de Paulista, médio-volante de bons recursos técnicos oriundo da base do Alvinegro. Em São Paulo, foi apontado pelo Datafolha em 1995 como o mais belo jogador em ação no campeonato estadual. Surpreendido pela notícia reagiu: “Mais bonito? Eu? Tá de sacanagem”!

Corinthians campeão da Copa do Brasil em 1995. Foto: CBF/Divulgação/Arquivo Placar

O garoto capaz de bater com força e precisão na bola, apesar do pé número 36, fez fama no Corinthians, onde ajudou o time a levantar oito títulos, tendo sido decisivo muitas vezes e feito gols maravilhosos. Um deles mereceu uma placa na Vila Belmiro, golaço frente ao goleiro Edinho, filho de Pelé, pelo torneio regional de 1996. O próprio Rei avalizaria a homenagem ao corintiano na casa santista. Outro, novamente contra o time da Baixada, foi na semifinal do Paulista de 2001, no último lance do jogo, um chute preciso de fora da área depois do corta-luz de Ricardinho.

Também colecionou atritos. Uma vez saiu de campo lentamente, movendo a cabeça de um lado para o outro, mostrando contrariedade ao ser substituído e expondo Oswaldo de Oliveira. Escutou poucas e boas quando passou pelo técnico rumo ao banco de reservas. Os mais famosos, no entanto, envolveram Vanderlei Luxemburgo.

O primeiro em 1998, quando o Corinthians rumava para o segundo título brasileiro de sua história e o treinador, que acumulava o cargo no Timão com o da seleção brasileira (para a qual já o convocara), o afastou alegando indisciplina. Líderes do time, como Freddy Rincón e Ricardinho (sim, eles mesmo, que também tiveram suas diferenças com o atacante) intercederam na contenda e Marcelinho foi reintegrado.

O segundo quiproquó entre eles aconteceu em 2001, na madrugada do segundo jogo da decisão da Copa do Brasil, contra o Grêmio quando teria acontecido até uma reunião com todo o elenco para colocar as coisas, não se sabe bem o quê, em pratos limpos. É muito provável que o intento, se é que era esse mesmo, tenha fracassado. O tricolor, treinado por Tite, dominou o jogo e, implacável, venceu por 3 a 1 no Morumbi, sagrando-se campeão. O primeiro jogo, em Porto Alegre, terminara em empate por dois gols.

Marcelinho com a taça do I Mundial de Clubes da FIFA. Foto: CBF/Divulgação/FIFA

Há alguns anos Marcelinho se formou em jornalismo, o que é um feito e tanto para quem ficara tanto tempo longe da escola, profissional de futebol que foi desde menino. Há algumas semanas ele fez um amistoso encontro com o Presidente Jair Bolsonaro, a quem presenteou com uma camiseta do time em que mais brilhou. Messias vestiu-a, ao contrário do que fizera algum tempo antes, em uma live com seguidores. Não gostei da atitude daquele que foi o jogador corintiano que eu melhor vi atuar, rivalizando com o goleiro Cássio. Rivellino certamente foi superior, mas eu era muito criança quando ele deixou o Parque São Jorge, depois da derrota na final do Paulista de 1974, contra o Palmeiras. Não tenho qualquer admiração pelo mandatário brasileiro e vê-lo aos sorrisos com o grande camisa 7 foi desagradável.

Minha simpatia por Marcelinho encolheu, mas não por sua trajetória, seus feitos geniais e inesquecíveis. Vivemos um momento em que com frequência recusa-se em bloco as realizações de um artista por erros e mesmo crimes que possa haver cometido. Tudo o que construíram não atenua a gravidade do que tenham feito, e, então, cada um que responda por seus atos. Mas é bom considerar o que os Antigos diziam, que a obra (de arte) sobrevive ao tempo e oferece a possibilidade de, por isso, termos história. Que siga na memória o que o grande jogador fez em campo. A obra há de ser maior que o artista.

Ilha de Santa Catarina, setembro de 2020.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Marcelinho Carioca: glórias de moldura triste. Ludopédio, São Paulo, v. 135, n. 14, 2020.
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