Completei 31 anos essa semana.

31 é um número mais sério do que 30, mais adulto. Mas não mais que 8 – depois a gente volta pra isso!

Ainda assim, não me sinto mais adulta agora, mesmo com 31 sendo um número mais sério que 30. Na verdade, sinto que nunca estive tão perto da infância quanto agora, trabalhando com imagens.

As imagens parecem forçar um retorno a sentimentos correlacionados ao tempo em que foram registradas. Desde que assisti “Adriano, Imperador”[1], série biográfica do craque Adriano, tenho revisitado minhas memórias de infância, tal qual ele fez no documentário, mostrando como desde pequeno o Imperador foi tomando espaço na vida do Adriano.

Eu tenho uma coleção de memórias guardadas em caixas de sapato, que moram na casa dos meus pais. Percebo que as memórias fazem par com o espaço territorial que habitam. É com os pés que caminho, mas são os retratos que guardo em meu coração que me levam mais longe. Não poderia haver melhor lugar para guardar memórias do que uma caixa de sapato. A trajetória de uma vida precisa dos dois: andanças e afetos. 

Das memórias de infância filmadas pelo meu pai, com a câmera Panasonic comprada no Paraguai, tem uma em específico que me fez pensar sobre meus 31 anos. Com um bichinho virtual em uma das mãos e vestindo uma camiseta do São Paulo, apareço no centro do vídeo filmado em plano médio. Ao lado da árvore de natal pergunto sobre o dia 25 de dezembro, deixando escapar a janelinha no meu sorriso que dias antes me rendeu um real pelo dente caído.

Na vida demora tempo até que se aprenda o poder que mora nas imagens de infância. Eu mesma precisei chegar aos 31 e conhecer o camisa 8 para aprender.

***

Pensava que 31 seria o número mais sério que eu conheceria esse ano, mas Léo Moura me ensinou que não. É 8! 8 é o número mais sério que conheço. Maduro, posturado, adulto, mais adulto que eu e meu número 31. O 8 de Léo Moura demarca uma passagem sobre a qual escrevi em minha dissertação, a passagem do homo sapiens aos “homines futibolenses”.

Explico.

Desde que começamos o projeto do filme – leia aqui – pedi para que os 8 jogadores-cineastas procurassem por suas memórias de infância, na tentativa de fazer pensar sobre a questão norteadora da ideia: “como nos tornamos aquilo que nos tornamos?”. Dias depois recebi no whatsapp dois vídeos do jogador, que me remeteram a uma música que marcou minha infância…

…E que tocava no rádio do preparador físico em uma dessas idas ao CT, registradas em diário de campo.

Parecia cena arranjada de filme, em que uma coisa cabe tanto na outra que só poderia ter sido produzida para ser assim. Mas a vida tem dessas às vezes, sabe brincar de ser obra de arte.

A música em questão é Boys don’t cry, da banda The Cure.

“Meninos não choram” tocava e conversava comigo, enquanto eu dividia espaço com dois boys, indo ao encontro de outros vários na Palhoça, para cartografar.

No videoclipe de Boys don’t cry vemos a representação infantil dos três músicos do The Cure à frente, tocando seus respectivos instrumentos. O fundo da imagem é permeado pelas sombras dos artistas em idade cronológica real. Não poderiam ser mais metalinguísticos do que isso.

Meninos quase não choram, mas homens… Homens não podem chorar!(?). Homens não choram e não poderiam cantar e dizer sobre chorar, por isso mesmo aparecem como sombras ao fundo, dando lugar de fala as suas representações infantis; porque mesmo que boys don’t cry, ainda há um pequeno espaço na infância para nossos deslizes emocionais mais instintivos.

Meu apego as memórias de infância talvez viva aí.

Existe algo de muito profundo da vida que mora na infância. Uma inteligência afetiva que é inteligente por não saber nomear ou enquadrar o afeto, uma inteligência que gagueja, mas que vai sendo modulada no percurso, deixando de ser espontânea, passando a ser civilizada. Passamos a aprender a sentir, ao invés de aprender com o sentimento. Esse processo parece ser ainda mais acelerado e intenso na formação de um menino-jogador, tal como aconteceu com Léo Moura, o camisa 8.

No vídeo abaixo, Léo, com 11 anos, é entrevistado em um pós-jogo no qual seu time sofreu uma derrota.

O menino aparece com uma postura corporal mais solta, as mãos falam também, mas as palavras gaguejam quando são suas e saem discursivamente melhores quando faladas em tom coletivo, já demonstrando sinais da incorporação do homines futibolenses. Ainda assim há espaço para deixar viver seus afetos tristes e espontâneos, percebidos principalmente após curtas pausas entre as falas:

“A gente pelo menos classificou… Agora é erguer a cabeça e ir pro estadual e tentar ganhar” (sic).

O entrevistador percebe o menino triste e tenta motivá-lo.

Léo continua: “É, aqui é muito legal e… agora… – Léo parece se dar conta que suas palavras, não são seus sentimentos sinceros – Ah, não é legal perder, claro que a gente queria ganhar. E agora… erguer a cabeça e bola pra frente” – Léo utiliza das palavras que conhece no meio, as palavras prontas (sic).

No vídeo seguinte Léo, agora com 13 anos, dá sua segunda entrevista gravada.

O camisa 8 parece ter 31. É posturado, braços em forma de “v” na cintura, tal como viu tantos outros camisas 8 fazendo também. Não há mais espaço para gaguejar afeto, não há mais espaço para “…”.

“Foi uma vitória muito importante pra nós seguir vivo no campeonato” (sic) – e sai do quadro, sem tempo para a imagem e sem espaço para a individualidade.

***

Mais do que a urgente pergunta que buscamos responder, “como nos tornamos aquilo que nos tornamos?”, talvez seja ainda mais urgente a necessidade de perguntar o que a formação de atletas, no Brasil, tem feito – em todos os aspectos que compreendem esse processo e não apenas o psicossocial – para que cada vez se torne mais difícil responder a primeira questão sem ceder ao falseamento coletivo que mora no “a gente”, que fala do outro porque na realidade quase não há mais espaço para responder e saber do eu que vive quando a chuteira não está nos pés.

Continua..?

[1] (Paramount, 2022 – de Amanda Baião)

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Como citar

MORO, Eduarda. O camisa 8. Ludopédio, São Paulo, v. 174, n. 10, 2023.
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