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O caso de Oreco e o ocultamento de questões raciais no futebol em sua cidade natal (Santa Maria, RS)

Waldemar Rodrigues Martins, já ouviu falar nesse nome? E Oreco? É um apelido que soa conhecido? Pois bem, Waldemar Rodrigues Martins, apelidado de Oreco,  é simplesmente o primeiro jogador gaúcho a ser campeão de uma Copa do Mundo pela Seleção Brasileira de Futebol. O título veio no ano de 1958 na Suécia, ao lado de Pelé e Garrincha.

Oreco tem uma história que merece destaque, ainda mais por ter nascido, no ano de 1932, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, Santa Maria, e ter ganhado o mundo. Ainda mais por ter sido um jovem que com apenas 13 anos quase foi impedido de realizar seu sonho de jogar em um clube de futebol. O motivo? Ser negro. Veremos não apenas seu ocultamento, mas a invisibilidade das questões raciais no meio futebolístico da cidade, como se a ideia da democracia racial tivesse vingado e o racismo no futebol sequer existido no contexto santamariense.

Chamado de versátil, Oreco experimentou diversas posições dentro de campo, foi zagueiro, lateral direito, ponta esquerda, centro médio, mas profissionalmente firmou-se como lateral-esquerdo. Além de ter jogado pela Seleção Brasileira, atuou pelo Esporte Clube Internacional de Santa Maria,  Sport Club Internacional de Porto Alegre, Sport Club Corinthians Paulista em São Paulo. Também teve passagens pelo México, Colômbia e os Estados Unidos, falecendo em 1985 aos 52 anos, vítima de um ataque cardíaco, praticando o esporte que tanto lhe trouxe sucesso.

A questão que queremos destacar, além da trajetória brilhante do atleta santamariense, é que antes de alçar esses voos em grandes clubes, quase houve um empecilho. Na cidade de Santa Maria, no ano de 1945, Oreco quase foi proibido de jogar em seu primeiro clube, o Esporte Clube Ideal, por racismo. Quem conta sobre o ocorrido é Carlos  Lopes, um dos fundadores do time:

“Oreco é um caso todo especial. Ele lutou muito para entrar no Ideal, pois havia preconceito racial, ou seja, havia relutância em aceitar jogadores negros. O  capitão Leobaldo e sua esposa, dona Maria, não queriam pretos no time. A amizade com outros jogadores fez com que Oreco fosse se aproximando e, com o tempo, aceito no time. Inclusive morou muito tempo com o capitão e sua esposa, tão querido ele se fez de todos. Foi o primeiro jogador negro a jogar no Ideal. Depois, com o tempo, esse preconceito caiu e outros jogadores de cor entraram no time (…)” (LUZ, p.11, 1994). (Grifos meu).

Oreco
Oreco, à esquerda, com Vergara (no centro) e Florindo (à direita). Fonte: Divulgação arquivo/Internacional

Essa entrevista se encontra no livro de Candido Otto da Luz (1994) e, apesar de ser um trecho impactante, nada mais é dito sobre preconceito racial ou sobre as dificuldades que o Oreco teria enfrentado por ser negro e jogador de futebol, em Santa Maria ou em qualquer outro lugar.

O Esporte Clube Ideal foi o primeiro clube oficial de Oreco. O time foi o primeiro pontapé para que um menino negro do interior do Rio Grande do Sul pudesse se tornar campeão do mundo pela Seleção Brasileira. Mas, nitidamente, há um silêncio sobre sua cor, sobre a discriminação e o caso de racismo ao qual tão novo ele teve que passar em seu primeiro clube como jogador. Analisando o depoimento, percebemos que o fundador do time não fala em uma proibição explícita de jogadores negros, mas usa o termo “relutância” a fim de amenizar o racismo e a quase recusa do clube em aceitar Oreco. No Ideal, Carlos Lopes deixa nítido em sua fala que Oreco foi pioneiro enquanto jogador negro, tendo ajudado para que o “preconceito caísse” e outros entrassem no time.

Apesar de não deixar explícito, entendemos que essa “relutância” em aceitar negros acontecia em outros clubes de futebol da cidade na época, mas pelo depoimento não obtemos  mais informações sobre o assunto. O que temos de informação por essa fonte  é que seguindo  os moldes de outros lugares do país, na cidade de Santa Maria também existiu a proibição, ou  relutância, segundo depoimento citado, de aceitarem jogadores negros.

Procurei maiores evidências sobre a existência de casos de racismo na trajetória de Oreco, não com o intuito de colocar em xeque a  palavra de Carlos Lopes, mas de ter maiores bases para o argumento. Assim, busquei na  Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional seu nome e por ser um jogador conhecido com passagens em diversos clubes do país e do mundo, várias ocorrências foram ligadas ao seu nome, mas com relação a escalação dos jogos, notícias sobre as especulações de seu destino no futebol, algumas entrevistas…No entanto, nenhuma nota ou frase que citasse o jogador ligado a questões raciais, de forma positiva ou negativa.

Nessas notícias dos jornais ele é constantemente elogiado e citado como “o médio  santamariense, o mais completo jogador gaúcho em sua posição…” e “um dos melhores  craques nacionais”. Em uma entrevista completa para o Jornal do Dia (RS) o jogador é  questionado sobre várias questões pessoais e profissionais, revelando sobre seu passado, presente e desejos de futuro no futebol. Ele reconhece seu início do Clube Ideal, mas não se estende em muitas informações sobre o time, sua passagem por ele ou questões raciais.

Não que o próprio Oreco tivesse que se posicionar, falar sobre o racismo ou relembrar esse passado. Pensando sobre uma suposta democracia racial no futebol que existia na época, não é surpresa estar diante de um silenciamento sobre o assunto em jornais hegemônicos daquele momento, já que a ideia formada era de que vivíamos em uma harmonia racial no país.

Falando ou não sobre o caso e questões raciais no futebol, Oreco fez história. Ele era um menino negro que saiu do interior do Estado e foi negociado a um clube da capital, que jogou em grandes times do Brasil e exterior e além disso, foi campeão da Copa do Mundo pela Seleção Brasileira em 1958 (sendo o único gaúcho da delegação) e merece ter sua trajetória visibilizada. Infelizmente, na sua própria cidade, essa história não é.

Não sou eu que estou afirmando que Oreco não é reconhecido nem mesmo em Santa Maria. Em um dos maiores bairros da cidade, Tancredo Neves, há um ginásio poliesportivo com seu nome. Porém, Nara Ilha Rodrigues (2019) analisou o processo de esquecimento/invisibilidade da trajetória de Oreco no município e através de um questionário realizado com alunos de uma escola pública Estadual, localizada próximo ao ginásio que recebe o nome do jogador na cidade, pode-se constatar o apagamento da memória do mesmo. Pouquíssimos/as estudantes sabiam quem era o jogador e o significado do nome do ginásio.

Esse questionamento sobre o “caso Oreco” teve seu início na minha pesquisa de dissertação de mestrado que procurou entender a criação de dois clubes negros de futebol que faziam parte de uma rede negra da cidade de Santa Maria no começo do século XX e que ainda não possuíam muitas informações sobre suas existências. Porém, pensar sobre esses clubes também é analisar o racismo no futebol santamariense e perceber de que forma ele se mostrou: teria sido por meio de impedimentos e exclusão? Foi uma surpresa (me pego pensando se foi mesmo) perceber que há uma cortina espessa ocultando o assunto na história da cidade. Ou seja, não se debate sobre questões raciais no futebol santamariense. Se não fosse o relato do quase impedimento de Oreco pelo Esporte Clube Ideal em 1945, caso citado anteriormente e que não foi problematizado na referida obra, não teríamos quase nada de informações sobre.

Nos trabalhos de Candido Otto Luz, pesquisador memorialista sobre os clubes de futebol na cidade, que já lançou sete livros sobre o tema, não há maiores menções sobre conflitos raciais, exceto pelo do Oreco. A maioria de suas pesquisas foram realizadas em diversos documentos e periódicos de Santa Maria e região. Na leitura e procura de trabalhos acadêmicos, relatos de memória, fontes dos jornais encontramos apenas mais uma menção, que não possui contexto. Será que essa questão racial não foi um problema para o futebol na cidade?

Há um silenciamento até mesmo em relação a um debate muito comum na história das rivalidades do futebol brasileiro, como o pioneirismo na inclusão de jogadores negros em seus elencos. Nas redes sociais, rodas de conversa, mesas de bar, regularmente surge esse assunto com as torcedoras e torcedores defendendo seu clube e tentando afastá-lo de qualquer pecha racista. Em algumas regiões do Brasil, diversos times requerem a problemática alcunha de serem o “primeiro clube que abriu as portas para jogadores negros[1]” e apesar dessa disputa ser forte no Rio de Janeiro, ela tem sua importância no Rio Grande do Sul, com o clássico GreNal. Em Santa Maria, existiam desde o começo do século XX dois clubes rivais, Riograndense e Inter SM, mas esse tema do pioneirismo nunca esteve em debate, pelo que pude perceber.

A invisibilidade do tema é perigosa, por vários motivos, mas principalmente por fazer  parecer que em Santa Maria prevalecia a lógica da democracia racial. A clássica questão levantada por Mario Filho, de que no final: “O futebol apagará a linha de cor. O clube esquecendo-se que tinha preto no time, o preto esquecendo-se, de não lembrar mesmo, que era preto” (FILHO, 2003, pg. 342). Por isso, é importante analisarmos os contextos e entrelinhas.

Oreco
Oreco, a esquerda, e Aldo, a direita. Fonte: Revista do Esporte

Localizada em um Estado historicamente embranquecido, Santa Maria, ainda assim, teve uma atividade negra muito forte, com cerca de 30 organizações negras[2]. Entre essas, o Sport Club Rio Branco e o Club Foot Ball 7 de Setembro, clubes de futebol. Sendo o primeiro chamado de “clube de epiderme menos branca de Santa Maria[3]”.

Somente pelas suas existências não podemos afirmar uma exclusão de negros no futebol da cidade, afinal, a escolha por não participar de outros clubes e formar outro, com maioria negra, poderia ter sido dos próprios idealizadores. Mas outras evidências nos mostram que o racismo fazia sim parte da vida esportiva da cidade, apesar de camuflado. Esses três pontos estão mais detalhados em minha dissertação, mas resumidamente são:

1) A presença de “menores” praticando o futebol nas ruas e sendo vistos como “vagabundos” e “vadios” pelas colunas jornalísticas da época, afirmando que o ambiente público não era lugar para se praticar tal esporte e dizendo que os menores realizavam uma baderna, quebrando janelas, vidros e as lâmpadas. Provavelmente, muitos desses menores eram meninos negros. Percebemos isso por pesquisas que tratam sobre infância no período na cidade Brunhauser (2018), Lisiane Cruz (2017) e também pela referência dos Boletins da congregação da Escola São Miguel de Santa Maria, uma escola confessional marista que chegou na cidade no começo do século XX, e que resolveu se aproximar dos alunos por um método que chamasse a atenção e segundo eles “a bola foi o chamariz”. Antes, os boletins chamavam as crianças de “pequenos vagabundos das ruas” e “esgarrados e vadios” e depois os citam como “batalhão de pretos” que invadiam o pátio da escola para jogar o futebol;

2) Os dois clubes mais conhecidos da cidade no começo do século XX, já citados, tendo em um primeiro momento de sua criação, somente jogadores brancos e enegrecendo seu elenco em meados da década de 1970. Percebemos esse fato por meio da análise das imagens dos clubes. É nítida a pouca quantidade de jogadores negros em seus quadros nos seus inícios, somente aumentando anos depois, pela década de 1960 e 1970, quando esses clubes acirram também, sua rivalidade. Aumento de competitividade e profissionalização são alguns dos motivos que devem ter levado ambos os clubes a contratarem jogadores negros.

3) A Liga Santamariense de Futebol agindo com seus mecanismos de exclusão, podendo impedir o ingresso de clubes populares ou negros. Essa agência aparece quando Prestes (2019) encontra menções de taxas, obrigatoriedade em ter campo de futebol (próprio ou alugado) e a não aceitação de analfabetos como membros da liga.

Essas três evidências, além do “caso Oreco”, foram resultados de uma pesquisa que olhou para além de fontes oficiais, procurando nas entrelinhas e questionando esses ocultamentos sobre o racismo no futebol de Santa Maria.

Ao olhar para a história de Oreco não tem como esquecer do detalhe de sua cor, que o fez ser discriminado tão cedo no futebol e na vida. Fico pensando que outras crianças e jovens negros (lembremos que Oreco tinha apenas 13 anos na época do ocorrido) podem ter sido impedidos de entrarem em alguns clubes de futebol da cidade e terem ido parar jogando nas ruas e praças, chamados de vadios e vagabundos.

Apesar de abertamente as fontes não deixarem explícito ou de os memorialistas não relatarem, a cidade de Santa Maria não passou incólume do racismo no futebol. Precisamos revisitar essa história, problematizar as fontes e demonstrar não só que ele existiu, mas de que forma agiu nas trajetórias negras, como na de Oreco.

Notas

[1] SANTOS, Ricardo Pinto dos. Pretos, não te enganes, no esporte nenhum branco lutou por ti. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 1, 2021.

[2] GRIGIO, Ênio; BRUNHAUSER, Felipe Farret; OLIVEIRA, Franciele Rocha de; RODRIGUES, Luiz Fernando dos Santos da Silva; LIMA, Taiane Anhanha. Organizações Negras de Santa Maria: primeiras associações negras do século XIX e XX. Santa Maria: GEPA UFSM, 2020.

[3] LIMA, Taiane Anhanha. Clubes negros de futebol em Santa Maria no pós-Abolição (1916-1932). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, 2023.

Referências

BRUNHAUSER, Felipe Farret. Menores populares na Primeira República (Santa Maria, 1917-1921). Trabalho de Conclusão do Curso de História – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2018.

CRUZ, Lisiane Ribas. “A infância abandonada é a sementeira do crime”: o julgamento de menores pela Comarca de Santa Maria (1910-1927). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2017.

GRIGIO, Ênio; BRUNHAUSER, Felipe Farret; OLIVEIRA, Franciele Rocha de; RODRIGUES, Luiz Fernando dos Santos da Silva; LIMA, Taiane Anhanha. Organizações Negras de Santa Maria: primeiras associações negras do século XIX e XX. Santa Maria: GEPA UFSM, 2020.

LIMA, Taiane Anhanha. Clubes negros de futebol em Santa Maria no pós-Abolição (1916-1932). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria, 2023.

LUZ, C. O da. Registros do Futebol Santa-Mariense, Vol. 1: Oreco. CP&S Comunicação,  1994.

PRESTES, Richard Nozário. A liga santamariense de foot-ball: futebol em Santa Maria na primeira metade do século XX. Trabalho de Conclusão do Curso de História – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019.

RODRIGUES, Nara Medianeira Ilha. O jogador que nomeou o ginásio: reflexões sobre a (in) visibilidade negra de Waldemar Rodrigues Martins (Oreco) em Santa Maria. Trabalho de Conclusão do Curso de História – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2019.

SANTOS, Ricardo Pinto dos. Pretos, não te enganes, no esporte nenhum branco lutou por ti. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 1, 2021.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Taiane Anhanha Lima

Historiadora e torcedora do colorado. Atualmente mestranda no Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da UFSM. Membro do Stadium (Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas) e do GEPA (Grupos de Estudos sobre o pós-Abolição). Os interesses de pesquisa são: pós-Abolição, futebol e mulheres torcedoras.

Como citar

LIMA, Taiane Anhanha. O caso de Oreco e o ocultamento de questões raciais no futebol em sua cidade natal (Santa Maria, RS). Ludopédio, São Paulo, v. 172, n. 23, 2023.
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