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O grito de um torcedor: estão matando a massa do Galo?

Tiago Filizzola Lima 9 de abril de 2024

Quem acompanha o Galo nas arquibancadas percebeu que muita coisa mudou de alguns anos para cá. A mais visível delas é a casa que nos abriga nos momentos de alegria e de dor. Considerando nossa história recente, colecionamos alguns estádios. Passamos pelo saudoso Mineirão antes da reforma, pelo Independência, jogamos na Arena do Jacaré por um tempo, retornamos ao Mineirão depois das reformas para a Copa do Mundo de 2014 e hoje temos um terreiro para chamar de nosso, a Arena do Galo.

Desses lugares, o que mais me marcou foi o Mineirão pré-reforma da Copa do Mundo de 2014. Lá, ao lado do meu pai e da minha irmã, pude ter os primeiros contatos com aquilo que seria uma das coisas mais importantes da minha vida: a massa do Galo.

Longe de ver grandes jogadores em campo e de disputar títulos, o mais lindo que eu via naquelas tardes e noites no Mineirão era a torcida do Galo. Uma torcida apaixonada, preta e branca nas cores da camisa e na pele. Isso foi o que sempre me encantou. Lembro de sempre apostar com meu pai, antes dos jogos, qual seria o público presente no Mineirão e, na maioria das vezes, nos surpreender quando Tião das Rendas – folclórico radialista da rádio Itatiaia que anunciava o público das partidas – anunciava a tamanha loucura de uma torcida que, acumulando sucessivos fracassos, ainda surpreendia enchendo as arquibancadas do gigante da Pampulha.   

De lá para cá, foram centenas de jogadores, treinadores e dirigentes que passaram pelo clube e que em nada abalaram o que essa instituição tem de maior: a atleticanidade. Das alegrias mais masoquistas de um atleticano, a minha era de ter a certeza de que por mais fracassada que fosse uma temporada, na próxima, estaria na arquibancada vivendo tudo aquilo à flor da pele, como se o coração esfacelado pelas derrotas não fosse nada perto do prazer e do orgulho de ser atleticano.

Aquela torcida sofrida da primeira década dos anos 2000 conquistou a América em 2013, fomos campões da Copa Libertadores. Em 2021, as ruas de Belo Horizonte foram tomadas para comemorar um título que não festejávamos desde 1971, o campeonato brasileiro. Como foi lindo fazer e ver a nossa festa. Comemoramos por nós e pelos amigos e familiares que sonharam por anos voltar a levantar o caneco do brasileirão, mas que não puderam ver a festa ou, quem sabe, festejaram em algum outro plano.

Talvez, essa volta por cima tenha sido a redenção do povo atleticano, um povo marcado pelo sofrimento e por uma loucura incurável que estamos fadados a carregar do berço até o caixão. Gosto de pensar assim, mas nas minhas últimas visitas à Arena do Galo me preocupo com o que é, para mim, a verdadeira essência do Galo: sua torcida.

Torcida Atlético Mineiro
Fotos: Pedro Souza / Atlético / Flickr

Desde que começamos a jogar na nossa nova casa, em 2023, muito se fala sobre a acústica do estádio que, dentre alguns problemas da construção, é um dos piores. É inevitável não se questionar sobre o que está acontecendo com a nossa torcida frequentadora de estádio. Onde está aquela massa que aterroriza qualquer adversário? Aquela que, de forma doentia, não para de apoiar nem um segundo se quer? Aquele coro de torcedores que deixa qualquer mosaico, jogos de luzes, lanternas de celulares, fumaças, fogos de artifício e outras intervenções no chão? A acústica da Arena do Galo está matando a nossa torcida? É essa pergunta que me tira o sossego e me motiva escrever.

Repito, a acústica da Arena é uma atrocidade, mas não acredito que seja ela a única culpada do que nos passa. Ao assistir Flamengo e Galo, em outubro de 2022, no Maracanã, me assustei com o silêncio dos rubro negros. Mesmo com eles vencendo de 1×0 comentei com quem estava ao meu lado o quão silenciosos estavam os flamenguistas. Até onde eu sei, a acústica do Maracanã nunca foi um problema para os times que jogam lá. O problema é outro – e é o mesmo que nos atinge.

Vivemos no Brasil, de forma tardia, um forte processo de elitização do futebol. Nesse bojo, a arenização dos nossos estádios é apenas um tentáculo de um projeto que afasta as camadas populares das canchas e que busca tornar o futebol um setor cada vez mais lucrativo para poucos. Nesse processo, pouco importa a festa de milhares de malucos e malucas nas arquibancadas, pouco importam as cores da camisa, o mascote, os cantos de amor e apoio ou ódio aos rivais. O que realmente importa nesse novo modelo é o dinheiro.

Pelo dinheiro e por um projeto elitista, as arquibancadas de concreto que antes tomavam conta dos estádios, hoje são, quando são, pequenos setores atrás dos gols. O que me parece estrategicamente dimensionado para que a partida de futebol possa abrigar o maior número de clientes nas cadeiras, mas sem parecer que a partida de futebol virou um enterro.

Eduardo Galeano é autor da famosa frase: “Não há nada menos vazio do que um estádio vazio”(GALEANO, 1995, p. 20). Certa vez, concordei. Mas hoje precisamos adaptá-la. Não há nada menos vazio do que uma arena cheia. Se Galeano uma vez disse que “Não há nada mais mudo do que as arquibancadas sem ninguém” (GALEANO, 1995, p. 20), foi porque, à época, ele não conhecia o silêncio do futebol moderno no continente latino americano.

Na Arena do Galo, a acústica é um problema, mas o conserto arquitetônico por si não resolve o problema que atinge o Galo e outros clubes brasileiros – como Flamengo, Palmeiras, o finado Bragantino, Corinthians, Athletico e outros. Não é só um problema acústico. É um problema de quem hoje é autorizado a frequentar estádios, seja pelo preço do ingresso, da comida e do transporte, pela repressão policial, pela arquitetura da arena, pela violência. Aqui não me refiro unicamente a violência física policial ou grupos de torcedores que brigam, mas também à violência simbólica, aquela invisível que faz com que alguém não se sinta à vontade em frequentar determinado espaço, já que não se sente pertencente a ele, bem-vindo(a).

É um problema de quem dirige os clubes sem considerar a história centenária que os forjou. No caso do Galo, sem entender que o Clube Atlético Mineiro não é nada mais nada menos do que a torcida do Galo. Aquela mesmo que faz tremer o Mineirão cantando “Time de preto, de favelado, mas quando joga Mineirão fica lotado”.

É necessário pensar os rumos que toma a nossa atleticanidade nos tempos atuais. Se vencer, vencer, vencer é o nosso ideal, devemos perseguir a vitória, mas nunca abandonar quem nós somos, atleticanos(as), forjados(as) no amor incondicional e não por uma relação clientelista. Por mais que documentos oficiais digam o contrário, os(as) verdadeiros(as) donos(as) do Galo somos nós, a massa, e a massa não estão à venda.

Se dizem que o(a) atleticano(a) é maluco(a), talvez a minha loucura seja sentir saudades de uma época que tínhamos a metade dos títulos que temos hoje, mas tínhamos a nossa identidade intacta. Espero que não me interpretem mal, sei que pela efusão dos sentimentos posso ter cometidos excessos nesse texto. Mas talvez o excesso passional seja o que esteja faltando para nós. O problema não é só acústico, não é de qualidade técnica daqueles que entram campo, mas sim que lentamente estão destruindo nossa atleticanidade. Nosso problema é um projeto para o Atlético que não representa o Atlético.

Para finalizar, tomo emprestado as palavras do atleticano Fred Melo Paiva “[…] o Atleticano tem a força do injustiçado. Quanto mais apanha, sua torcida mais cresce. O Atlético é a Palestina do futebol – não desiste nunca, e contra uma artilharia pesada reage nem que seja no bodoque.” (PAIVA, 2021? apud ANDRADE; MAGALHÃES, 2021, p. 1). Talvez tenha chegado mais uma hora da gente reagir.

Referências

ANDRADE, Lucas; MAGALHÃES, Artur de Abreu. O Galo é resistência e alvinegro por naturezaLudopédio, São Paulo, v. 142, n. 58, 2021.

GALEANO, Eduardo. Futebol ao Sol e à Sombra. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1995. 264 p. ISBN 85.254.0516-7.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

LIMA, Tiago Filizzola. O grito de um torcedor: estão matando a massa do Galo?. Ludopédio, São Paulo, v. 178, n. 9, 2024.
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